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Como reatar o laço social brasileiro foi um dos temas de reunião preparatória para a 5ª CNCTI

Na manhã de 6 de março, a Reunião Temática da 5ª CNCTI: Ciência Básica na Fronteira do Conhecimento organizada pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), no âmbito da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, tratou do que Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, chamou de “a questão crucial das ciências humanas na atualidade”.

A “dissolução do laço social” é uma expressão usada para explicar a crescente polarização e consequente crescimento do extremismo no Brasil e no mundo. A ascensão de uma nova onda de políticos radicais e profundamente enraizados nas redes sociais é talvez a face mais evidente do fenômeno, mas ele é percebido também na conduta das pessoas no cotidiano, no fechamento em grupos de pertencimento, que cada vez mais moldam nossas identidades.

A primeira mesa da sessão: Renato Janine Ribeiro, Helcio Trindade, Tatiana Roque e Sérgio Adorno

O cientista político e Acadêmico Helgio Trindade, ex-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em Integralismo, o primeiro grande movimento fascista brasileiro, afirmou que a nova extrema direita surgiu num ambiente de despolitização, em que os partidos políticos tradicionais perderam apelo. “Em todas essas ‘novas direitas’ está a ideia de que existe uma imposição cultural da esquerda nas mídias, a ideia do ‘marxismo cultural’ e também um foco muito forte na questão moral e da corrupção”, afirmou.

A secretária municipal de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Tatiana Roque, pesquisadora da história da ciência, lembrou que essa nova força política responde à angústias muito presentes em alguns setores da sociedade, fruto de uma crise no modelo de bem-estar social. Citando trabalhos notórios dos economistas Thomas Piketty e Daron Acemoglu, ela afirmou que o campo progressista não conseguiu dar respostas às transformações profundas no mercado de trabalho que hoje se manifestam, por exemplo, na nova classe de trabalhadores de aplicativos. “A tecnologia hoje substitui mais empregos do que gera. Diferentemente do pós guerra, quando o percentual de riqueza apropriado pelos trabalhadores era de 70%, hoje é de apenas 30%”.

Outra característica crucial da dissolução do laço social é o crescimento da violência. O filósofo e Acadêmico Sérgio Adorno, dirigente do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), afirmou que a história do Brasil se confunde com a história da violência, que só passou a ser considerada uma questão pública com a redemocratização. Ele afirmou que um dos sintomas mais perigosos da polarização é a aceitação e normalização da violência, que se torna cada vez mais cruel. “Hoje em dia, se generalizou a ideia de que é moralmente aceitável defender a violência, a ideia de que há pessoas matáveis”, disse.

A segunda mesa da sessão: Marilene Correa, Renato Janine Ribeiro, Ruben Oliven, Mara Telles e Wilson Gomes

A socióloga Marilene Correa, ex-reitora da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), abordou o tema a partir da perspectiva da região amazônica. Para ela, a ruptura nos laços de nacionalidade foi mais grave entre os indígenas, que nunca foram considerados totalmente brasileiros. Ela lembrou que a crise de saúde nos povos Yanomami continua ocorrendo. “Nos últimos governos, se instituiu nas regionalidades da Amazônia uma verdadeira ideia de Anti-Brasil, que se expressa no fracasso de políticas públicas de décadas e faz surgir o pior do Brasil profundo”, afirmou.

O antropólogo e diretor da ABC Ruben Oliven (UFRGS) especialista em antropologia urbana e identidades, criticou em parte a ideia de dissolução do sentimento nacional, já que a nação sempre foi formada por grupos conflitantes. Ele trouxe a discussão das diferentes visões de civilização existentes e fez um apelo à moderação e não desumanização do outro. “A nação está longe de ser uma coisa pacífica, ela é marcada por conflitos e está sempre num equilíbrio instável. Precisamos pensar em como manter um diálogo civilizado entre os vários grupos”.

A cientista política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Mara Telles, especialista em campanha eleitoral e comunicação política, trouxe uma discussão sobre o negacionismo científico. O fenômeno se intensificou durante a pandemia e fez surgir tentativas de criar uma “outra” ciência, subordinada a interesses políticos e religiosos. “Negacionismos são estratégias que usam da desqualificação deliberada da ciência visando fins políticos, econômicos ou morais. No cenário da pandemia, o negacionismo estratégico do governo federal estimulou o negacionismo individual de seus apoiadores”, afirmou.

Finalmente, o filósofo Wilson Gomes (UFBA), especialista em comunicação política digital e participante ativo do debate público através das redes, trouxe sua visão de como essas novas mídias distorceram o diálogo de ideias tão fundamental à democracia. Através de algoritmos que priorizam conteúdos com apelo emocional, as redes sociais contribuíram decisivamente para a tribalização da sociedade e para uma guerra de todos contra todos, gerando ódio e o desaparecimento do centro como campo político. “Até dimensões da vida que não costumavam ser desafiadas estão sendo desafiadas. É como se os dois lados estivessem esperando que o outro lado vá se retirar, isso não vai acontecer. A democracia é a arte de negociar pequenos acordos”, finalizou.

Assista ao debate na íntegra:


Confira todas as matérias sobre a reunião ABC/SBPC para a 5ª CNCTI:

Abertura de reunião ABC/SBPC abordou transição energética e segurança alimentar

Encontro preparatório para a 5ª Conferência Nacional de CT&I organizado pela ABC e pela SBPC ocorreu nos dias 5 e 6 de março no Rio de Janeiro.

Investimentos e recursos humanos qualificados para uma Revolução Tecnológica no Brasil

Os rumos da “Nova Industrialização” foram discutidos em encontro preparatório para a 5ª CNCTI realizado no Rio de Janeiro. Matéria de Daniela Klebis para o Jornal da Ciência.

Reunião preparatória ABC/SBPC para a 5ª CNCTI discutiu também a saúde brasileira

No dia 6/3, encontro abordou os temas de saúde da mulher, saúde mental e tratamentos de doenças crônicas pelo SUS.

Academia Brasileira de Ciências reitera seu apoio incondicional à Democracia

A Academia Brasileira de Ciências (ABC), desde a sua fundação em 1916, tem como foco o desenvolvimento científico, educacional, ambiental e, em especial, social do país. Ao longo dos seus mais de cem anos, a ABC passou a ampliar sua inserção na sociedade brasileira, em especial a partir do golpe militar de 1964. Durante 21 anos, o Brasil viveu uma ditadura que levou à revogação da Constituição de 1946, dissolução do Congresso Nacional, supressão de liberdades civis, criação de um código de processo penal militar que permitia a prisão e encarceramento de pessoas consideradas suspeitas, sem revisão judicial, tortura, desaparecimentos, mortes e muitos outros arbítrios.

Neste 8 de janeiro de 2024, a ABC vem a público reiterar seu apoio incondicional à democracia, à liberdade de expressão, à Constituição e aos três poderes da República Federativa do Brasil. Os atos criminosos ocorridos há um ano não se repetirão, e seus autores devem ser punidos exemplarmente após os devidos processos jurídicos.

A Academia Brasileira de Ciências repete as palavras do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Deputado Ulysses Guimarães, em discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, quando da promulgação da nova Constituição Brasileira: “A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações…”

Junto com outras entidades da sociedade civil, a ABC estará sempre alerta para que nunca mais se instale no país um regime de exceção, censura e cerceamento às liberdades.

Helena B. Nader
Presidente
Academia Brasileira de Ciências

Ato em Defesa da Democracia Brasileira

O Brasil não poderá se considerar um país democrático se não retomar as investigações de seus crimes políticos, principalmente no período da ditadura militar, e se não considerar a liberdade como um objeto de ensino, a ser difundido nas instituições educacionais. Estes foram os principais diagnósticos apresentados por diferentes especialistas no Ato de Luta pela Democracia Brasileira, um evento realizado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) nessa quinta-feira, 5 de outubro.

O debate contou com a participação da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski; da presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader; do ex-deputado federal, Alessandro Molon, do ex-deputado Hermes Zaneti, que participou da Constituinte na década de 1980, da jornalista Hildegard Angel, da presidente do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), Leopoldina Veras, do diretor executivo da ICTP.br (Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento), Fábio Guedes Gomes, e do ex-presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Ricardo Marcelo Fonseca. A mediação foi do presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro.

A ato é parte das celebrações do primeiro Dia de Luta pela Democracia Brasileira, cuja data, 5 de outubro, foi escolhida por ser o dia em que a Constituição Federal de 1988 foi promulgada. A alusão ao marco democrático foi destacada pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. “Para mim, é uma data especial, porque foi a Constituição de 1988, o processo da Constituinte, que me introduziu na política institucional”, revelou.

A ministra relembrou os embates políticos da época, principalmente em 1985, quando se filiou ao Partido dos Trabalhadores (PT) para tentar eleger o ambientalista Chico Mendes como deputado estadual, enquanto também tentou uma cadeira como deputada federal.

“Queríamos levar as questões dos povos da floresta para a nossa Constituição. Infelizmente, eu não fui eleita, mas mesmo assim nós conseguimos um artigo maravilhoso na nossa Constituição, que é o artigo 225, que estabelece que todas as pessoas têm o direito de ter um ambiente saudável. É a partir desse artigo que se deriva todo o nosso arcabouço ambiental.”

Marina Silva também elogiou a importância de se refletir sobre a democracia e entender qual a visão do País sobre se constituir um ambiente democrático: “Pensar a democracia é um esforço de compreender que a inteligência de poucos jamais substituirá a inteligência de todos, e os regimes democráticos existem exatamente para que a gente pare de ter pessoas predestinadas ao poder e à tomada de decisão, para que a gente tenha a escolha de decidir quem está mais apto para nos governar, a partir de um mandato. Lembrando que o ato de governar também não é governar para as pessoas, a gente tem que governar com as pessoas.”

Outra personalidade simbólica que participou da Constituinte na década de 1980, o ex-deputado Hermes Zaneti, afirmou que há muita alegria em ter participado deste momento histórico do Brasil, mas hoje há um desafio na implementação da Constituição.

Entre os fatores que mostram como os artigos escritos na Constituição ainda não estão presentes na realidade brasileira, o ex-parlamentar citou as 30 milhões de pessoas com fome e 70 milhões de pessoas que se encontram inadimplentes no País.

“A minha maior preocupação é que esse povo que trabalhou para a construção do texto constitucional seja também o destinatário dos benefícios, que o povo receba a estrutura social que merece.”

Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski também afirmou que pensar democracia é considerar, principalmente, a condição de vida das pessoas.

“Hoje há uma certa unanimidade em torno da ideia de que democracia significa a concretização e a efetivação dos direitos fundamentais, dos direitos humanos, compreendidos nas suas várias gerações ou dimensões. E essa concretização se dá não a partir de uma mera outorga do Estado, dos governantes, mas sim a partir das lutas sociais que reivindicam que esses direitos sejam colocados em prática.”

Presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader, apontou que o nosso desafio é trazer a democracia ao campo educacional, mostrando às novas gerações o que foram as conquistas e como tudo se refletiu na Constituição, mas também revendo a história do País e fazendo justiça a atores propositalmente esquecidos.

“Nós temos que lutar para que se imponha, em diferentes níveis, a verdadeira história do Brasil. A verdadeira história do Brasil tem que ser ensinada. E ela tem que ser ensinada pelos povos originários, pelos excluídos. Ela tem que ser ensinada para que vejam que a Constituição traz benefícios, e ensinada para mostrar que houve uma ditadura sim, uma ditadura violenta.”

(…)

O presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, iniciou sua fala explicando a estrutura das instituições, e elogiando o papel do ministro Alexandre de Moraes, que, no comando do Tribunal Superior Eleitoral, conseguiu conter as tentativas de golpe nas eleições presidenciais de 2022. “É sempre bom lembrar que as instituições surgiram no final da Idade Média com o intuito de criar barreiras ao mau governo, para evitar que o governante perverso ou louco fizesse uma devastação muito grande.”

Janine Ribeiro ponderou que a democracia tem que ser maior do que um lado político, ou seja, ela não pode ser pauta apenas da direita ou da esquerda, mas comum a pelo menos os dois partidos ou coligações mais populares, a fim de que não haja grande risco de sua extinção. “Para termos democracia precisamos ter uma certa segurança de que os partidos com mais chance de se elegerem tenham compromissos democráticos, quando um partido não tem e tem chances de ser eleito, o cenário é muito perigoso para um país. É o que acontece nos Estados Unidos, com o Partido Republicano apoiando Donald Trump, e o que ocorre em outros países, como Hungria, Polônia e Itália”, disse.

O professor da USP e filósofo também destacou o papel da Ciência nesse processo de construção da democracia. “A ciência não é magia, a ciência não pode nos salvar da insensatez, mas ela tem papel essencial para as bases democráticas. O que temos que fazer é educar: educar as pessoas para serem sensatas, para serem críticas, para defenderem e garantirem a permanência da democracia”, concluiu.

Leia a matéria na íntegra no site do Jornal da Ciência.

O “Ato de Luta pela Democracia Brasileira” está disponível no canal do YouTube da SBPC.

ABC: Webinário do Dia Nacional de Defesa da Democracia Brasileira

O dia 5 de outubro de 2023 marca o aniversário de 35 anos da Constituição de 1988, a Carta Magna que fundou a Nova República sob a égide de valores democráticos. A data foi escolhida por uma mobilização de entidades científicas, lideradas pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (ABC), para comemorar o Dia Nacional de Defesa da Democracia. O objetivo é nunca esquecermos, ou de novo anistiarmos, atentados contra o regime democrático e o Estado de Direito em nosso país.

Em comemoração, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) organizou um webinário e convidou o antropólogo Ruben Oliven, vice-presidente da ABC para a regional Sul; o professor de filosofia na Universidade Federal da Bahia (UFBA) Wilson Gomes, especialista em comunicação política e democracia digital; e a presidente da ABC, Helena Nader, professora emérita da Escola Paulista de Medicina e que teve forte atuação em defesa da ciência e da democracia quando estas estiveram sob ataque.

Ruben Oliven – Mais do que institucional, democracia é uma prática de todos

A democracia não é um produto acabado, é um processo construído diariamente, não só nas instituições mas na própria célula da sociedade, o indivíduo. Ela envolve princípios e práticas cotidianas, ao que se reivindica direitos para si sem esquecer o dos outros. Ela envolve também a relação com as próprias instituições. “Democracia envolve, por exemplo, ser tratado com respeito pelo Estado, seja pelos hospitais, seja pela polícia, seja pela Justiça”, afirmou Ruben Oliven.

O cientista político e membro titular da ABC José Murilo de Carvalho, falecido em agosto de 2023, nos lembrava que no Brasil os diferentes tipos de cidadania foram conquistados de forma muito peculiar, e ainda está em construção. As conquistas sociais vieram primeiro, com os direitos trabalhistas, por exemplo, quando não havia ainda acesso universal aos direitos políticos. Estes vieram só depois, apenas em 1988, quando pela primeira vez o voto se tornou realmente universal – até então analfabetos não podiam eleger representantes, por exemplo. Mas existe uma terceira dimensão de cidadania que ainda não alcançamos, uma dimensão cívica, de práticas que atentem realmente para o fato de que somos todos iguais perante a Lei, o que ainda não é uma realidade brasileira. “Apenas este ano acabamos com o direito à cela especial, algo que instituía que brasileiros seriam diferenciados, por sua escolaridade, mesmo na hora da prisão”, exemplificou Oliven.

Ainda existem dois Brasis, completamente diferentes. Um Brasil não branco, que está pior em qualquer índice social e econômico, que ainda precisa lutar para ter reconhecida sua própria existência particular. Democracia passa também por diversidade. O Brasil construído desde 1930 criou um modelo de brasilidade hegemônico, que deveria funcionar do Oiapoque ao Chuí, sendo naturalmente excludente. “É por isso que, quando a democracia voltou, o que se viu foi o surgimento de muitos grupos que queriam ser vistos como brasileiros sem deixar de afirmar suas diferenças, é o caso de grupos feministas, negros, LGBTQIA+, movimentos religiosos como os neopentecostais, movimentos tradicionalistas regionais e por aí vai”, disse.

Num país viciado em desigualdade, é preciso perceber que essa característica é um freio para o desenvolvimento. Nesse sentido, uma política de amplo sucesso foram as ações afirmativas nas universidades, que democratizou o acesso ao ensino. “Nossas elites precisam perceber que não podemos ser tão desiguais. A economia poderia ser maior, os mercados poderiam ser mais amplos. Precisamos pensar em como reformar nossa polícia, nosso sistema judiciário, nosso sistema tributário, nosso sistema penitenciário, com base nos mesmos valores”.

Wilson Gomes – As muitas ideias de democracia

Por ser um processo em construção, não teremos um conceito único para democracia, o que abre margem para interpretações inclusive sabotadoras. Uma grande contradição, fortuita ou não, que temos no Brasil é que até mesmo aqueles que a atacam dizem defendê-la. “Todos dizem amar, mas quando perguntamos ‘Que democracia?’ as coisas divergem. A perspectiva de momento é otimista porque resistimos, graças à reação da sociedade civil organizada, mas foi por pouco”, lembrou Wilson Gomes.

Um dos grandes temas dentro de uma democracia é o da igualdade versus liberdade política, debate em alta no país. Isso se dá pois a própria democracia dá armas para seus oponentes, permitindo que autoritários sejam eleitos e instituições capturadas e desviadas de seu propósito fundador. “Parte dos atores políticos brasileiros ainda acredita que a outra metade irá sair. Isso se manifestou com força na direita mas também está presente em setores de esquerda. É preciso aceitar logo que todos temos o direito legítimo de estar na sala”, disse.

Isso é uma distorção do conceito de democracia. A ideia de que ao ganhar uma eleição, antidemocrático é tudo que não ganhou. Governos são eleitos para servir o Estado, mas o Estado ainda existe e é ele quem institui as “regras do jogo”. “O grande problema conceitual do bolsonarismo foi esse, achar que vencer uma eleição era um salvo conduto para passar por cima de outras instituições igualmente legítimas”, avaliou Gomes.

Wilson Gomes se descreve como um cientista da democracia, pois esta é seu objeto de estudo. Por isso ele se inquieta com o fato de que logo a primeira geração brasileira a crescer em um regime de liberdade quase cometeu uma espécie de “liberticídio”. “Essa foi uma decisão tomada de forma racional ao avaliar que a democracia estava abaixo de outras prioridades, no caso o combate à corrupção, à esquerda e à política institucional”.

Helena Nader – Compreensão histórica pela defesa da democracia

O Dia Nacional de Defesa da Democracia deve ser visto como uma comemoração da sociedade e não só do Estado, esse é o objetivo das associações que o sustentam na visão da presidente da ABC, Helena Nader. A cientista, que viveu a ditadura, se questiona enquanto cidadã onde foi que a sociedade brasileira errou, e chega à conclusão de que foi na educação histórica.

“Quando conseguimos recuperar a democracia, pensamos ‘vamos olhar pra frente’. Deveríamos ter insistido em punições. Não podemos esquecer o que foi 1968, a Batalha da Maria Antônia, a Passeata dos Cem Mil, o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) organizado em Ibiúna na clandestinidade. O jovem precisa conhecer essas histórias. Não podemos esquecer os mortos e torturados.”

A falta de compreensão histórica acaba por trazer o passado de volta. “Enquanto ensinarmos que o Brasil foi descoberto, continuamos negando os povos originários, por exemplo. É preciso ensinar também à respeitar a Constituição de 1988 e o Brasil que foi fundado a partir dela”, afirmou Nader.

A presidente da ABC criticou o Projeto de Emenda Constitucional que tramita no Congresso para que o legislativo tenha o poder de não respeitar decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). “É um absurdo que algo dessa magnitude tenha sido aprovado em comissão no Senado em menos de um minuto”. Em outro ponto, Nader lembrou que defender a democracia passa também por denunciar autoritarismos externos. “Precisamos estar atentos ao que acontece na Nicarágua, por exemplo”.

Debate

Ao final, os participantes tiveram a oportunidade de conversar entre si e com Acadêmicos que acompanhavam o webinário. A questão da educação democrática foi apontada como necessária em todos os níveis. “O debate sobre polícia não deveria ser um sobre se é militar o civil, a questão é que tanto o policial militar como civil não aprende sobre democracia. O servidor que tem monopólio sobre a violência é o que mais precisa entender o que é uma democracia, e a soberania que o povo tem nela”, criticou Wilson Gomes.

Sobre democracia no ambiente universitário, Helena Nader abordou a mobilização grevista que vem se instalando na Universidade de São Paulo. “É algo legítimo, mas sinto falta de mais diálogo e pautas concretas. É preciso sempre deixar claro pelo que estão lutando”, disse.

Assista ao webinário na íntegra:

Uma data para instruir aqueles que não conheceram a ditadura

Desde 1983, quando caiu a ditadura argentina, a sociedade civil daquele país celebra um dia nacional da memória pela verdade e justiça –na data mesma do golpe que introduziu um dos piores regimes de exceção de nosso continente. Com o tempo, o 24 de Março se firmou como dia de atividades educacionais e, depois, uma lei o tornou feriado.

Uma reflexão sobre a recente tentativa de reprisar aqui os anos de chumbo levou nossas entidades a concluir que erramos ao não educar nossos jovens para o que foi a ditadura, que rima com tortura e censura. Por isso, lembrando o exemplo argentino, decidimos adotar uma data anual para educar as pessoas sobre a democracia, em especial as que não conheceram o regime ditatorial.

A proposta foi lançada pela SBPC em abril, sendo adotada por quase cem entidades, entre elas a Academia Brasileira de Ciências, a Associação Brasileira de Imprensa, a Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior e o Conselho Nacional de Institutos Federais de Ciência e Tecnologia. Uma assembleia que realizamos em fins de junho, com a presença de dezenas de entidades, decidiu chamá-la Dia de Luta pela Democracia Brasileira. Finalmente, adotamos como data o dia 5 de outubro, quando foi promulgada a Constituição Federal, a melhor de nossa História, tendo como fundo sonoro as palavras do dr. Ulysses Guimarães: Temos ódio e nojo da ditadura.

(…)

Leia a coluna completa na Folha de S. Paulo.


Renato Janine Ribeiro

Professor titular de ética e filosofia política da USP, é presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e ex-ministro da Educação (governo Dilma, 2015); escreve este artigo a título pessoal

Marcia Abrahão Moura

Presidente da Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes)

Helena Bonciani Nader

Professora da EPM/Unifesp, presidente da Academia Brasileira de Ciências e membro do Conselho Superior da Fapesp

Fábio Guedes Gomes

Professor de economia e presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal); secretário-executivo da Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento Brasileiro (ICTPBr)

Chile: 11 de setembro de 1973, nem esquecer, nem perdoar

Leia a coluna do Acadêmico Hernan Chaimovich Guralnik, publicada em 20 de setembro no Jornal da USP:

Carlos Berger Guralnik, meu primo-irmão, tinha trinta anos quando morreu. Nascido em junho de 1943, faleceu na flor da idade, em 19 de outubro de 1973, e só pôde ninar seu filho Germán por oito meses.

Esta notícia fúnebre poderia ser interpretada como mera dor pela morte precoce de um jovem e amoroso companheiro, advogado, radialista e pai recente. Certamente, o luto dos familiares seria pesado, a dor levaria algum tempo para passar e, durante o velório e o enterro, os parentes, amigos do casal e colegas de trabalho estariam juntos para dar força à viúva. A morte do meu primo Carlos, contudo, não foi acidental nem causada por doença, e tampouco houve velório ou enterro.

Começo este relato descrevendo o documento oficial da República do Chile que certifica a sua morte. Trata-se de uma certidão de falecimento emitida pelo Serviço de Registro Civil e Identificação. Esta certidão diz que, na comarca de Calama, do Departamento de El Loa, com data de 23 de outubro de 1973, na folha 316, se inscreve o falecimento de Carlos Berger Guralnik.

Nessa certidão não constam nem o nome da mãe, nem o nome do pai, o que já é estranho para um documento oficial. Consta, contudo, que o falecido era do sexo masculino, com o número da cédula de identidade 90201 do gabinete de um bairro da cidade de Santiago do Chile. Interessante notar que consta na certidão que o morto era solteiro, e não se mencionam filho ou companheira. A data de falecimento se anota como 19 de outubro de 1973, às 18h. O lugar de falecimento foi Calama, e a causa da morte consta como destruição de tórax e região cardíaca, por fuzilamento. A certidão é de 31 de outubro de 1973, e a cópia que tenho está devidamente assinada, com o selo e o pagamento de imposto correspondente.

(…)

Leia a coluna completa no Jornal da USP.

Associações científicas reiteram rejeição à tese do “Marco Temporal”

As entidades abaixo assinadas vêm mais uma vez a público alertar a sociedade brasileira para a profunda injustiça que pode ser cometida nos próximos dias, caso a esdrúxula tese do “Marco Temporal” seja aprovada, no Congresso ou no Supremo Tribunal Federal, retirando dos indígenas o direito que a Constituição de 1988 lhes reconhece às terras que ocupam tradicionalmente.

A Constituição Federal foi muito clara a este respeito, mas há alguns anos se propala a estranha ideia de que terras ocupadas “tradicionalmente” pelos povos indígenas seriam apenas aquelas que estavam sob sua posse na data da promulgação da Carta Magna. É claro que, neste caso, não seriam terras tradicionais!

Na verdade, a tese do marco temporal já foi rejeitada pelo voto do relator, ministro Edson Fachin, em 2021, ao arguir que “a Constituição reconhece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado”.

Em maio de 2023, as entidades que esta firmam divulgaram uma nota que demandava a rejeição do marco temporal e das 19 condicionantes adotadas no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Desde 2020, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), amicus curiae no Processo, vem contribuindo, com um conjunto de reflexões antropológicas circunstanciadas, para a devida análise e interpretação do tema, sobretudo no que diz respeito às dinâmicas territoriais indígenas e à tradicionalidade da ocupação.

Nova sessão está marcada para esta quarta-feira, 30 de agosto de 2023. As questões, os argumentos e a rejeição à tese apresentados pelas associações científicas permanecem. No entanto, o contexto mudou.

No Supremo Tribunal Federal, em sessão realizada em junho de 2023, o Ministro Alexandre Moraes apresentou um voto contra a tese do marco temporal. E introduziu uma novidade: a indenização do valor da terra nua, na forma de indenização prévia, nos casos de boa-fé dos ocupantes não indígenas. Este voto, apesar de negar a tese absurda do marco temporal, traz, porém, o risco de que os processos demarcatórios, já longos na sua efetivação, estendendo-se por décadas quando judicializados, tenham agora que depender de recursos orçamentários para se indenizar o valor da terra nua, previamente à desintrusão dos não indígenas.

O esbulho territorial sofrido pelos povos indígenas e a injustiça no acesso aos seus territórios no Brasil não é um tema novo, e constitui parte da formação da nação brasileira e das suas desigualdades sociais, e dos persistentes conflitos agrários e violências no campo. Os povos indígenas não são os promotores das injustiças sobre o acesso à terra em nosso país, mas suas principais vítimas. Reconhecer os seus direitos e modos de ocupação territoriais segundo seus usos, costumes e tradições é um passo necessário no sentido do respeito constitucional e da garantia de direitos em nosso país.

No Congresso Nacional, antecipando-se à retomada do julgamento pela Suprema Corte, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, com forte representação da bancada ruralista, seguindo decisão já tomada pela Câmara dos Deputados em maio passado, votou, no dia 23 de agosto, pela aprovação da tese do marco temporal (Projetos de Lei 2.903/2023 e 490/2007), acrescentando sérios problemas e impedimentos para o reconhecimento e demarcação das terras indígenas no país. O Ministério Público Federal já alertou para a inconstitucionalidade do PL e os riscos relacionados à proteção dos direitos dos povos indígenas com sua eventual aprovação.

Essa decisão do Congresso, que regulamentaria o marco temporal, à revelia de uma discussão com os próprios indígenas, infringe o direito à consulta prévia, livre e informada, garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, segundo a qual os povos indígenas e tribais têm que participar do processo de tomada de decisões administrativas e jurídicas que os afetem diretamente. Ademais, levanta feridas antigas que sugerem um tipo de poder autocrático encarnado em novo “coronelismo, enxada e voto”, já analisado por Victor Nunes Leal, ex-membro do STF, cassado pela ditadura militar.

As associações científicas seguem confiantes no respeito, pela Suprema Corte e pelo processo legislativo, aos princípios democráticos de nossa Constituição. Estas decisões não tratam apenas dos povos indígenas: elas decidem o que nós, brasileiros, somos. Somos um povo que respeita os direitos de todos, inclusive dos mais antigos ocupantes de nosso solo, um povo que se dispõe a reparar os esbulhos e injustiças que padeceram? É o que esperamos.

30 de agosto de 2023.

  • Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
  • Academia Brasileira de Ciências (ABC)
  • Academia Brasileira de Ciência Política (ABCP)
  • Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS)
  • Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS)
  • Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

 


Acesse a nota em pdf aqui.

Desconstruindo a Desinformação, série especial do Jornal da USP

O Jornal da USP está realizando uma série de oito reportagens sobre um tema muito atual: a desinformação. Um problema de século XXI, o crescimento no poder de propagação e assimilação de informações falsas veio com a internet e, particularmente, com as redes sociais e afetou quase todas as áreas do debate público. Na ciência, o estrago pôde ser visto com maior intensidade durante a pandemia, ao custo de milhares de vidas. Mas a desinformação não é apenas um problema para a ciência, mas também um objeto de pesquisa, e o Jornal da USP buscou ouvir especialistas, entre eles alguns Acadêmicos, em matérias quinzenais.

Confira as cinco edições lançadas até agora:

Armas de desinformação em massa – 14/07/2023

Primeira reportagem de uma série especial produzida pelo Jornal da USP analisa as motivações, estratégias e consequências práticas da pandemia de informações maliciosas que tomou conta do mundo na era digital

“São 5 horas da manhã quando o alarme do celular começa a tocar. Joana estica o braço para apanhar o aparelho, e a primeira coisa que faz, antes mesmo de levantar a cabeça do travesseiro, é dar uma espiada nas suas redes sociais. O grupo de WhatsApp da família está cheio de mensagens de parentes preocupados com a segurança da nova vacina contra a covid-19, que alguns dias atrás fora liberada para aplicação em crianças. Joana não sabe o que fazer; ela tem um filho de sete anos e sempre confiou nas vacinas, mas agora está em dúvida. Uma mensagem compartilhada por sua irmã diz que a vacina causa problemas cardíacos e que algumas pessoas chegaram a morrer depois de tomar o imunizante. Um outro texto, compartilhado por um tio, diz que a vacina causa infertilidade e que nenhuma criança morreu até hoje de covid-19. Por que, então, correr esse risco?

Todas as mensagens vêm acompanhadas de links para postagens de pessoas que se apresentam como médicos no Facebook e de notícias de jornais que Joana nunca ouviu falar, mas que lhe parecem veículos legítimos — a julgar pelo nome e pela aparência dos sites, pelo menos. Ela decide esperar o marido voltar do trabalho para tomar uma decisão. Nesse meio tempo, por via das dúvidas, compartilha algumas das mensagens no grupo de mães da escola. “Vai que é verdade”, pondera ela. “Melhor avisar.”

Josias, o marido, é motorista de aplicativo e trabalha de madrugada. Ele recentemente comprou uma arma para se proteger de uma onda de violência que está tomando conta da cidade, segundo informações compartilhadas por colegas de volante numa rede social. Uma das mensagens, atribuída à Polícia Militar, alerta que “estamos vivendo em tempos de guerra” e orienta as pessoas a comprar carros blindados e não sair de casa após as dez horas da noite. Mas Josias precisa trabalhar. Ele chega em casa furioso com uma notícia que visualizou no Twitter alguns minutos antes, postada por um deputado federal, dizendo que o projeto de lei das fake news que está tramitando no Congresso Nacional vai proibir a reprodução de versículos da Bíblia na internet. “Comunistas satanistas querem censurar a palavra de Jesus!”, vocifera ele, enquanto compartilha a mensagem nas suas redes sociais.

Joana e Josias são personagens fictícios, criados para ilustrar esta reportagem, mas que contam histórias reais do multiverso digital em que vivemos: um mundo infestado de informações enganosas e infiltrado por sofisticadas redes de desinformação, que expõem milhões de pessoas a uma dieta sistemática de mentiras e teorias da conspiração, antes mesmo do café da manhã. Todas as “notícias” mencionadas acima são informações falsas que realmente circularam pelas redes sociais nos últimos anos, deturpando a realidade, sequestrando evidências, inventando fatos e semeando sentimentos de ódio, medo e desconfiança na população. O comportamento do casal reflete a maneira como a maioria das pessoas consome e retransmite informações atualmente: pela tela de um telefone celular, via aplicativos de mensagens e redes sociais, repetidas vezes ao dia.”

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Leia a reportagem completa no Jornal da USP


Navegar é preciso! Regular (as redes) também – 28/07/2023

Segunda reportagem de uma série especial do Jornal da USP mostra como a desinformação abriu um debate global sobre a necessidade de regulamentação das plataformas digitais para proteger a democracia e a liberdade de expressão

Em 2023, estima-se que cerca de 4,9 bilhões de pessoas usem redes sociais em todo o mundo. É esperado que esse número salte para aproximadamente 5,85 bilhões de usuários até 2027. Esses usuários não estão vinculados a uma única plataforma: atualmente, muitos de nós espalhamos nossa presença digital por diversas plataformas e passamos cerca de 145 minutos nas redes sociais todos os dias.

Não por acaso, nos últimos anos, os discursos veiculados em redes como Facebook, Twitter, TikTok e Instagram têm cada vez mais influenciado o destino político do planeta. Entretanto, embora seja natural presumir que a comunicação constante seja saudável para os sistemas participativos, o avanço da desinformação e das notícias falsas tem se mostrado, para dizer o mínimo, preocupante.

Nesta semana, estudos publicados em revistas como Science e Nature analisaram o impacto do conteúdo do feed de notícias do Facebook nas experiências e crenças dos usuários nos Estados Unidos durante a eleição de 2020, por meio de experimentos com ajustes no algoritmo. Embora os ajustes tenham alterado o conteúdo visualizado pelos usuários, não foram encontrados efeitos mensuráveis em atitudes políticas e comportamentos.  As conclusões são objeto de controvérsia, com a plataforma defendendo que as redes sociais têm impacto político limitado, enquanto pesquisadores de várias áreas discordam dessa posição. Mais estudos estão planejados para obter conclusões definitivas sobre o impacto das redes sociais – e da disseminação de desinformação – na democracia.

No Brasil, de acordo com o Panorama Político 2023, pesquisa realizada pelo Senado Federal, pelo menos 76% da população foi exposta a informações possivelmente falsas sobre política no segundo semestre de 2022. A pesquisa revelou que 89% dos entrevistados tiveram contato com notícias políticas que eles acreditavam serem falsas nas redes sociais, sendo 67% através de aplicativos de mensagens e 83% em redes como Facebook, Instagram e YouTube. Além disso, o estudo mostrou que as notícias falsas originadas nas redes são amplamente difundidas por meio de conversas com amigos e colegas (66%), noticiários de TV (65%), conversas com familiares (57%), jornais e revistas locais e nacionais (55% e 53%, respectivamente).

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Leia a reportagem completa no Jornal da USP.


Desinformação científica: uma pandemia de mentiras

Esta terceira reportagem da série especial do Jornal da USP analisa os possíveis impactos das notícias falsas e teorias conspiratórias sobre a percepção pública das vacinas e da ciência no Brasil

A médica sanitarista e pediatra Jorgete Maria e Silva está acostumada a esclarecer dúvidas sobre a segurança de vacinas. É uma atribuição básica do seu trabalho no Ambulatório de Reações a Vacinas (RAV), que ela coordena no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) da USP. Dúvidas e preocupações são comuns há bastante tempo, relata ela, motivadas em parte pelo sucesso dos próprios imunizantes, que fizeram muitas das doenças contra as quais eles protegem parecerem coisas do passado. “As pessoas não têm mais medo da doença, elas têm medo do que o filho delas pode apresentar depois de tomar a vacina”, diz a pediatra.

A situação piorou muito nos últimos anos, ressalta ela. Além das preocupações cotidianas sobre febre, dores e eventuais contraindicações de um determinado imunizante, começaram a surgir medos infundados sobre o risco de as vacinas alterarem o DNA, afetarem a inteligência, causarem infertilidade ou até mesmo a morte de crianças. “Começou com a da covid, mas acabou extrapolando para qualquer vacina”, relata Silva. Quase sempre, segundo ela, a fonte da desinformação são as redes sociais; e nem sempre os médicos conseguem mudar a percepção dos pacientes. “As fake news ganharam uma força muito grande”, lamenta a médica. “O que a gente fala de correto não suplanta o que as pessoas veem nas redes sociais.”

O relato dela ao Jornal da USP está em sintonia com os resultados de uma pesquisa realizada no início deste ano pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), em parceria com o Instituto Questão de Ciência (IQC), com mais de 980 pediatras, que apontou as mídias digitais — em especial, as redes sociais — como principal fonte de hesitação vacinal entre as famílias atendidas por esses profissionais. “Estamos falando de um fenômeno que tem uma dependência muito grande dessas estratégias de comunicação”, disse o coordenador do levantamento e professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília (UnB), Ronaldo Pilati. “As pessoas estão passando muito tempo dentro dessas plataformas, consumindo muita informação e produzindo atitudes com base nisso.”

Reconhecido mundialmente pela excelência de seu Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado em 1975, o Brasil passou a registrar, desde 2016, uma queda “acentuada e perigosíssima” das suas taxas de cobertura vacinal, alerta o presidente da SBP, Clóvis Constantino. Um problema que, segundo ele, foi agravado por várias razões na pandemia — entre elas, a desinformação sobre a segurança das vacinas da covid-19.

Apesar da ótima cobertura conquistada nas doses iniciais de vacinação contra a covid em adultos, apenas 11% das crianças menores de 5 anos estavam devidamente imunizadas (com duas ou três doses vacinais) contra a covid-19 até agosto deste ano, segundo dados enviados à reportagem pelo Observatório de Saúde na Infância da Fiocruz.

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Leia a matéria completa no Jornal da USP.


Desinformação disfarçada de ciência

Quarta reportagem da série especial do Jornal da USP reflete sobre as responsabilidades de pesquisadores e editoras no combate ao mau uso da ciência na comunicação digital

Todo dia a história se repete: a professora Alicia Kowaltowski abre sua caixa de e-mails e encontra um punhado de mensagens enviadas por revistas das quais ela nunca ouviu falar e assinadas por editores que ela não conhece, convidando-a a publicar os resultados de suas pesquisas em suas nobres páginas. O escopo das revistas, em geral, não tem qualquer relação com a sua área de estudo; mas não importa, são mensagens automatizadas, genéricas, disparadas em massa para cientistas, médicos e engenheiros ao redor do mundo com o único objetivo de recrutar clientes — neste caso, pesquisadores em busca de um lugar para publicar suas pesquisas. “Estamos sendo inundados com esses convites para publicar em revistas muito pouco reputáveis e sem qualquer crivo de qualidade”, diz Kowaltowski, professora titular do Instituto de Química (IQ) da USP e especialista em metabolismo energético — o processo pelo qual as células do nosso corpo produzem e consomem energia.

“Acreditamos que sua pesquisa se encaixa perfeitamente no escopo da nossa revista. Sendo assim, gostaríamos de convidá-la a submeter os achados de seu trabalho para publicação”, diz um dos e-mails. “Tendo em vista seu imenso histórico de pesquisa, aspiramos a publicar seus estimados artigos, de qualquer tipo”, afirma outro. A maioria das mensagens inclui links e prazos para a submissão rápida de trabalhos. Uma delas menciona a taxa de publicação no próprio e-mail: US$ 2.300 por artigo, com desconto de 50% se o texto for enviado até 31 de dezembro.

O problema não é novo, mas cresceu de forma “explosiva” nos últimos anos, diz Kowaltowski. Ela nem perde mais tempo lendo as mensagens e manda tudo para a caixa de spam, mas não adianta: os convites não param de chegar. As revistas podem não ter credibilidade, mas são reais, insistentes, e muitos pesquisadores acabam sendo fisgados pela promessa tentadora de uma publicação rápida, simples e potencialmente mais barata de seus trabalhos, em comparação com o que é tradicionalmente cobrado e exigido pelos periódicos de maior prestígio. É assim que funciona o mercado das chamadas “revistas predatórias”, que dizem aplicar revisão por pares e manter boas práticas editoriais, mas, na verdade, publicam praticamente qualquer coisa mediante pagamento. Submeteu, pagou, publicou — simples assim.

Não existe uma “lista oficial” que permita dizer, exatamente, quantas revistas científicas (também chamadas journals, ou periódicos) há no mundo. As duas principais bibliotecas digitais do ramo, Web of Science e Scopus, têm cerca de 22 mil e 28 mil títulos indexados, respectivamente. Uma plataforma mais ampla, abrangendo todos os idiomas (a Ulrich’s Web), tem cerca de 48 mil. E um levantamento recente feito no Brasil pela equipe do Programa SciELO, com base em dados da plataforma Crossref, identificou quase 70 mil revistas científicas ativas em 2022, publicadas em mais de 150 países. O Brasil aparece em quinto lugar na lista, com cerca de 2.800 revistas; atrás de Indonésia, Estados Unidos, Reino Unido e Rússia.

Os cem maiores publishers de produção científica do mundo — incluindo editoras privadas e acadêmicas — publicam, juntos, mais de 28 mil revistas; e 30 dessas editoras podem ser consideradas empresas predatórias, com 4.517 revistas ativas (16% do total), segundo um levantamento publicado no fim de 2022 por um professor da Universidade de Viena, na revista Journal of Documentation.

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Leia a matéria completa no Jornal da USP.

 

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