O dia 5 de outubro de 2023 marca o aniversário de 35 anos da Constituição de 1988, a Carta Magna que fundou a Nova República sob a égide de valores democráticos. A data foi escolhida por uma mobilização de entidades científicas, lideradas pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (ABC), para comemorar o Dia Nacional de Defesa da Democracia. O objetivo é nunca esquecermos, ou de novo anistiarmos, atentados contra o regime democrático e o Estado de Direito em nosso país.

Em comemoração, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) organizou um webinário e convidou o antropólogo Ruben Oliven, vice-presidente da ABC para a regional Sul; o professor de filosofia na Universidade Federal da Bahia (UFBA) Wilson Gomes, especialista em comunicação política e democracia digital; e a presidente da ABC, Helena Nader, professora emérita da Escola Paulista de Medicina e que teve forte atuação em defesa da ciência e da democracia quando estas estiveram sob ataque.

Ruben Oliven – Mais do que institucional, democracia é uma prática de todos

A democracia não é um produto acabado, é um processo construído diariamente, não só nas instituições mas na própria célula da sociedade, o indivíduo. Ela envolve princípios e práticas cotidianas, ao que se reivindica direitos para si sem esquecer o dos outros. Ela envolve também a relação com as próprias instituições. “Democracia envolve, por exemplo, ser tratado com respeito pelo Estado, seja pelos hospitais, seja pela polícia, seja pela Justiça”, afirmou Ruben Oliven.

O cientista político e membro titular da ABC José Murilo de Carvalho, falecido em agosto de 2023, nos lembrava que no Brasil os diferentes tipos de cidadania foram conquistados de forma muito peculiar, e ainda está em construção. As conquistas sociais vieram primeiro, com os direitos trabalhistas, por exemplo, quando não havia ainda acesso universal aos direitos políticos. Estes vieram só depois, apenas em 1988, quando pela primeira vez o voto se tornou realmente universal – até então analfabetos não podiam eleger representantes, por exemplo. Mas existe uma terceira dimensão de cidadania que ainda não alcançamos, uma dimensão cívica, de práticas que atentem realmente para o fato de que somos todos iguais perante a Lei, o que ainda não é uma realidade brasileira. “Apenas este ano acabamos com o direito à cela especial, algo que instituía que brasileiros seriam diferenciados, por sua escolaridade, mesmo na hora da prisão”, exemplificou Oliven.

Ainda existem dois Brasis, completamente diferentes. Um Brasil não branco, que está pior em qualquer índice social e econômico, que ainda precisa lutar para ter reconhecida sua própria existência particular. Democracia passa também por diversidade. O Brasil construído desde 1930 criou um modelo de brasilidade hegemônico, que deveria funcionar do Oiapoque ao Chuí, sendo naturalmente excludente. “É por isso que, quando a democracia voltou, o que se viu foi o surgimento de muitos grupos que queriam ser vistos como brasileiros sem deixar de afirmar suas diferenças, é o caso de grupos feministas, negros, LGBTQIA+, movimentos religiosos como os neopentecostais, movimentos tradicionalistas regionais e por aí vai”, disse.

Num país viciado em desigualdade, é preciso perceber que essa característica é um freio para o desenvolvimento. Nesse sentido, uma política de amplo sucesso foram as ações afirmativas nas universidades, que democratizou o acesso ao ensino. “Nossas elites precisam perceber que não podemos ser tão desiguais. A economia poderia ser maior, os mercados poderiam ser mais amplos. Precisamos pensar em como reformar nossa polícia, nosso sistema judiciário, nosso sistema tributário, nosso sistema penitenciário, com base nos mesmos valores”.

Wilson Gomes – As muitas ideias de democracia

Por ser um processo em construção, não teremos um conceito único para democracia, o que abre margem para interpretações inclusive sabotadoras. Uma grande contradição, fortuita ou não, que temos no Brasil é que até mesmo aqueles que a atacam dizem defendê-la. “Todos dizem amar, mas quando perguntamos ‘Que democracia?’ as coisas divergem. A perspectiva de momento é otimista porque resistimos, graças à reação da sociedade civil organizada, mas foi por pouco”, lembrou Wilson Gomes.

Um dos grandes temas dentro de uma democracia é o da igualdade versus liberdade política, debate em alta no país. Isso se dá pois a própria democracia dá armas para seus oponentes, permitindo que autoritários sejam eleitos e instituições capturadas e desviadas de seu propósito fundador. “Parte dos atores políticos brasileiros ainda acredita que a outra metade irá sair. Isso se manifestou com força na direita mas também está presente em setores de esquerda. É preciso aceitar logo que todos temos o direito legítimo de estar na sala”, disse.

Isso é uma distorção do conceito de democracia. A ideia de que ao ganhar uma eleição, antidemocrático é tudo que não ganhou. Governos são eleitos para servir o Estado, mas o Estado ainda existe e é ele quem institui as “regras do jogo”. “O grande problema conceitual do bolsonarismo foi esse, achar que vencer uma eleição era um salvo conduto para passar por cima de outras instituições igualmente legítimas”, avaliou Gomes.

Wilson Gomes se descreve como um cientista da democracia, pois esta é seu objeto de estudo. Por isso ele se inquieta com o fato de que logo a primeira geração brasileira a crescer em um regime de liberdade quase cometeu uma espécie de “liberticídio”. “Essa foi uma decisão tomada de forma racional ao avaliar que a democracia estava abaixo de outras prioridades, no caso o combate à corrupção, à esquerda e à política institucional”.

Helena Nader – Compreensão histórica pela defesa da democracia

O Dia Nacional de Defesa da Democracia deve ser visto como uma comemoração da sociedade e não só do Estado, esse é o objetivo das associações que o sustentam na visão da presidente da ABC, Helena Nader. A cientista, que viveu a ditadura, se questiona enquanto cidadã onde foi que a sociedade brasileira errou, e chega à conclusão de que foi na educação histórica.

“Quando conseguimos recuperar a democracia, pensamos ‘vamos olhar pra frente’. Deveríamos ter insistido em punições. Não podemos esquecer o que foi 1968, a Batalha da Maria Antônia, a Passeata dos Cem Mil, o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) organizado em Ibiúna na clandestinidade. O jovem precisa conhecer essas histórias. Não podemos esquecer os mortos e torturados.”

A falta de compreensão histórica acaba por trazer o passado de volta. “Enquanto ensinarmos que o Brasil foi descoberto, continuamos negando os povos originários, por exemplo. É preciso ensinar também à respeitar a Constituição de 1988 e o Brasil que foi fundado a partir dela”, afirmou Nader.

A presidente da ABC criticou o Projeto de Emenda Constitucional que tramita no Congresso para que o legislativo tenha o poder de não respeitar decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). “É um absurdo que algo dessa magnitude tenha sido aprovado em comissão no Senado em menos de um minuto”. Em outro ponto, Nader lembrou que defender a democracia passa também por denunciar autoritarismos externos. “Precisamos estar atentos ao que acontece na Nicarágua, por exemplo”.

Debate

Ao final, os participantes tiveram a oportunidade de conversar entre si e com Acadêmicos que acompanhavam o webinário. A questão da educação democrática foi apontada como necessária em todos os níveis. “O debate sobre polícia não deveria ser um sobre se é militar o civil, a questão é que tanto o policial militar como civil não aprende sobre democracia. O servidor que tem monopólio sobre a violência é o que mais precisa entender o que é uma democracia, e a soberania que o povo tem nela”, criticou Wilson Gomes.

Sobre democracia no ambiente universitário, Helena Nader abordou a mobilização grevista que vem se instalando na Universidade de São Paulo. “É algo legítimo, mas sinto falta de mais diálogo e pautas concretas. É preciso sempre deixar claro pelo que estão lutando”, disse.

Assista ao webinário na íntegra: