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“Quando o ambiente está doente, precisamos de um ecólogo”, diz especialista em lagos na Amazônia

Por Tiago da Mota e Silva, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), graduado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero (FCL) e pesquisador em Comunicação desde 2012. É membro do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (CISC). Investiga temas relacionados à Ecologia da Comunicação, conservação ambiental e mudança climática. 

Priit Zingel coleta água do Lago do Prato em busca de cianobactérias, organimos com papel fundamental na cadeia alimentar do ecossistema (Foto: Tiago da Mota e Silva)

Antes de começar a entrevista, o ecólogo estoniano Pritt Zingel perguntou ao repórter se esta seria, finalmente, seu momento de fama. “É só para isso que serve a ciência!”, exclamou com sua voz grave. Sua ironia ácida marca com bom humor o que é, na verdade, o grave tema com o qual trabalha: como lagos considerados rasos estão, pelo mundo, passando por transformações e até mesmo desaparecendo.

Priit foi um dentre os 18 cientistas que, no dia 21 de novembro de 2023, partiu de Manaus (AM) em um barco para uma excursão científica de 15 dias pelo Rio Negro e pelo Rio Solimões. Dentre outros objetivos, a viagem avaliou os impactos da seca histórica que acometeu o estado do Amazonas, com o nível do Rio Negro chegando abaixo de 13 metros de proundidade, segundo o Porto de Manaus.

“Isso me toca em um nível emocional”, conta Priit. Afinal, esta é a terceira vez dele na Amazônia. Na última, em 2019, o pesquisador esteve no Lago do Prato, no arquipélago de Anavilhanas, também durante a temporada de poucas chuvas. Mas nada se compara a este ano: praticamente a metade do lago do Prato desapareceu.

Ao longo dos anos, Pritt se especializou em lagos rasos. São ecossistemas espalhados pelo mundo definidos, é claro, pela sua pouca profundidade, mas também, e sobretudo, por conter águas que se misturam com facilidade. Segundo Priit, esses lagos são muito importantes em termos de abastecimento e pesca, como é o caso também de lagos da Amazônia.

Nesta entrevista, que ocorreu no sétimo dos 15 dias de expedição, o cientista discute a fragilidade desses ambientes e quais são as consequências de uma seca tão severa para eles. Além disso, compartilha a dificuldade de transmitir a mensagem da mudança climática para mais pessoas: “Hoje em dia, não é suficiente apenas fornecer informações, você também deve apresentar um espetáculo para torná-las mais atrativas.”

É o sétimo dia da viagem. Como tem sido até agora?

O trabalho tem sido muito bom! Claro, sempre há expectativas e encontramos problemas, coisas que não funcionam, coisas que deixamos para trás…

Não é a sua primeira vez aqui na Amazônia…

Estivemos aqui duas vezes antes e tiramos muitas fotos, colhemos informações, ouvimos muitas histórias, coletamos amostras e, é claro, sentimos toda sorte de emoções. Inclusive, tentamos transmitir essas emoções para o público em geral quando montamos uma exposição chamada ‘Amazônia perto e longe’, em nosso Museu dos Lagos, lá na Estônia. Investimos muito esforço para educar os estonianos sobre esta região e sobre as pessoas que vivem aqui, sobre os pescadores e como eles manejam os peixes, também um pouco sobre a mitologia deste lugar… A exposição tem sido bastante popular e agora está viajando pela Estônia. Acreditamos firmemente que a ciência deve retribuir à sociedade e ajudar a popularizar o conhecimento. E como a Amazônia é um tema tão exótico para os estonianos, ela consegue atrair facilmente o público. Com isso, podemos inserir alguns de nossos próprios estudos estonianos aqui e ali, para aproveitar a atenção das pessoas.

Mas esta é a primeira vez numa estação seca tão severa. Levando em conta suas experiências anteriores, como tem sido esta? Quais são as mudanças que chamaram sua atenção desta vez no campo?

Inicialmente, foi muito perturbador ver o quão pouco resta desses lagos onde costumávamos trabalhar das últimas vezes. Isso me toca em um nível emocional. Porque nós, como cientistas, estamos sempre alertando e importunando as pessoas sobre o quão ruins as coisas podem ficar. Mas quando as coisas ruins finalmente começam a acontecer, poderíamos até dizer “Nós avisamos”, mas sinceramente havia uma esperança nessas advertências de que poderíamos evitar isso. Mas esse é um dos problemas com os humanos: de alguma forma, acreditamos fortemente que tudo vai sempre permanecer como está. Não cremos muito bem em mudanças e é por isso, também, que esses avisos não se transformaram em ação. É como se alguma voz em nossa mente coletiva continuasse repetindo: tudo vai ficar como está. Precisamos reconhecer que este planeta em que vivemos é um milagre. Recebemos uma certa quantidade de energia do sol e perdemos uma quantidade de energia para o espaço. Existe um equilíbrio tão exato no qual podemos existir… Um pouco desequilibrado para um lado ou outro, o planeta será ou uma bola de gelo ou um inferno. Claro, a Terra já foi muito mais quente ou muito mais fria em sua história, mas naquelas épocas não havia humanos. Então, quando falamos sobre mudança climática, na verdade estamos falando sobre como nossa espécie evoluiu e prosperou nessas condições muito específicas em um período de tempo muito pequeno e recente. Se essas condições forem muito alteradas, como estão sendo, teremos problemas.

Então, pelo que entendo do que você está dizendo, os cientistas têm enfrentado uma luta na tentativa de transmitir a mensagem das mudanças climáticas. Este parece ser o caso aqui no Brasil, mas também é o caso em seu país, na Estônia?

Sim. Na verdade, essa dificuldade ficou muito pior na última década. Porque há mais informações disponíveis sobre o assunto, mas a mensagem da ciência parece se diluir no espaço público. Na Conferência Internacional sobre Lagos Rasos, no ano passado, na Estônia, tentamos reunir os melhores cientistas do mundo e chamar a atenção da imprensa. Fizemos uma conferência com um lago logo atrás de nós, para obter boas fotos. Hoje em dia, não é suficiente apenas fornecer informações, você também deve apresentar um espetáculo para torná-las mais atrativas. Os cientistas precisam se tornar melhores contadores de histórias, mas talvez seja pedir demais deles.

O trio de estonianos Helen Agasild (esq.), Arvo Turkivene e Priit Zingel (Dir.) coletam materiais de peixes em Anavilhanas, AM (Foto: Tiago da Mota e Silva)

Você construiu sua carreira sobre o tema de lagos rasos…

Sim, lagos rasos são tão interessantes porque, primeiro, o que é um lago raso? Não se trata apenas da profundidade da água. Em lagos profundos, as águas com menos sedimentos sobem e as águas mais pesadas descem. Por isso, as camadas superior e inferior são completamente separadas, dois sistemas separados. Há frio, escuridão e mais nutrientes no fundo e há luz, calor e menos nutrientes em cima. Já os lagos rasos são mistos, não há estratificação acontecendo. Nosso principal lago, o Peipus, é o quinto maior lago europeu em área, 3,5 quilômetros quadrados com uma profundidade média de 7 metros, 15 metros  em alguns lugares, e ele também é misto. A maioria do conhecimento sobre lagos abrange os profundos. Mas, na verdade, a maioria dos lagos no mundo são rasos e eles têm uma relevância econômica muito maior para as sociedades humanas, seja para abastecimento de água, ou para a pesca e etcetera, como é o caso também aqui da Amazônia. Precisamos estudá-los, portanto, porque são muito importantes e também muito vulneráveis. Quando você tem lagos com 50 metros de profundidade e perde um metro durante uma seca, ainda restam 49, certo? Mas se você tem dois metros e um desaparece, então já perdeu metade da água. Além disso, lagos rasos esquentam muito mais rapidamente, secam mais rapidamente e, com mais tempestades e ventos mais fortes, esses lagos ficam ainda mais misturados e mexidos. Todas essas condições podem perturbar o ambiente e a vida que ele sustenta. Afinal, tudo se trata de estabilidade na natureza. Quando essa estabilidade é quebrada, o ambiente pode entrar em um período de enorme confusão até que a próxima estabilidade seja alcançada. Quando esses processos de transformação começam, é como se, de repente, dois mais dois deixasse de ser quatro e passasse a ser seis, ou sete, ou oito. Perde-se o controle.

Então, estudar esses lagos é importante no sentido de não sermos pegos de surpresa?

Essa é uma boa razão para estudar como diferentes estressores atuam nos ecossistemas. São muitos os fatores que influenciam um lago: você tem aquecimento, nutrientes, perturbação pelo vento… geralmente sabemos como cada um age por si só, mas quando você combina dois ou três é bastante complicado de prever o que ocorreria. Ainda há muito que não sabemos. Veja, existem todos os tipos de doutores. Quando estamos saudáveis e o ambiente ao nosso redor está saudável, não precisamos de doutores em medicina nem de doutores em ecologia. Quando há algo errado dentro de nós, então precisamos de um médico que investigue nosso corpo. E quando há algo errado ao nosso redor, então precisamos de um ecologista que investigue nosso ambiente. Alguns médicos nos aconselham a comer uma maçã ou fazer caminhadas, e nos incomodam para pararmos de fumar ou de comer porcarias. Da mesma forma, nós, os ecologistas, estamos aqui para incomodar você a parar de poluir e essas coisas.

Então, basicamente, os lagos ao redor do mundo estão sofrendo mutações por causa das mudanças climáticas e isso nos afeta…

Sim. Existem lagos rasos em áreas áridas, que estão evaporando e desaparecendo. Isso também está acontecendo no norte, em áreas de tundra, que agora estão com menos neve e mais quentes. Claro, como esses casos estão longe da maioria dos centros urbanos, ou até mesmo em países muito distantes, as pessoas pensam que eles não as afetam. Mas esses eventos, incluindo o que está acontecendo aqui na Amazônia, podem estar correlacionados e podemos abordá-los como parte de um problema global.

Sabemos que seus estudos aqui na Amazônia ainda não são conclusivos, mas o que você imagina que seriam os principais impactos dessa seca severa?

Provavelmente, quando algo sai do sistema, o fluxo de matéria é prejudicado. Quando o fluxo de matéria é prejudicado, menos nutrientes estão disponíveis, por exemplo, no nível dos peixes, e a população de peixes pode diminuir. Você estreve conosco e viu como esse grande lago [lago do Prato] secou. Certamente há nutrientes na área do fundo que agora estão totalmente fora do sistema. Eles não podem ser usados pelas populações aquáticas e isso não é irrelevante. Talvez algumas espécies se extingam, talvez outras espécies se tornem mais dominantes. Novamente, é difícil prever, mas geralmente nada de bom resulta disso. Na Amazônia, como há uma biodiversidade enorme que é em sua maioria desconhecida para nós, também são desconhecidas quais seriam suas funções nos ecossistemas. Nem sabemos quais seriam as consequências de perder essas espécies ainda não descobertas justamente porque ainda sequer as descobrimos! O fato de não conhecê-las não significa que não sejam importantes. É como abrir seu carro e ver muitos fios e tirar dois deles, apenas porque você não sabe como funcionam ou o que fazem. Veja se o motor irá funcionar depois disso. Essas áreas tropicais, com alta biodiversidade, são como uma máquina sofisticada cujo funcionamento nós não entendemos completamente.

Lago do Prato, em Anavilhanas, em novembro de 2023, durante seca histórica no AM (Foto: Arvo Tuvikene)
O mesmo Lago do Prato no ano de 2019, também em novembro (Foto: Arvo Tuvikene)

Você mencionou em nossas conversas sobre o folclore em torno dos lagos estonianos. Essas crenças são úteis? Há nelas um conhecimento real sobre os lagos e como preservá-los?

Essa é uma pergunta difícil. Essas lendas são muito antigas e, pelo que sei, a Estônia é o único país que possui essas histórias de lagos móveis ou fugitivos. São, geralmente, sobre os lagos sendo insultados de alguma forma pelo mau comportamento dos humanos, e então decidem partir. Para mim, acredito que elas me ensinaram a ser respeitoso com os lagos E estão de alguma forma gravadas na minha memória. Por exemplo, há a crença de que pouco antes de um lago desaparecer, há um aviso dado pelo lago. Em muitos caso, esse aviso é algo como um touro preto que caminha por perto e faz barulhos, como um presságio de um desastre. A imagem desse animal negro está em minha imaginação em camadas profundas. Sempre há um aviso primeiro, mas quando você não entende os sinais da natureza, então a história não termina bem. Voltando à sua pergunta, acredito que há algum impacto dessas tradições culturais em como administramos politicamente e economicamente nossos recursos naturais. Mas também me parece que o apelo ao dinheiro e ao lucro é, agora, ainda mais forte do que esse imaginário e esse conhecimento ecológico profundo. É quase como se o lucro nos tivesse selecionado. Afinal, o empresário que não se preocupa primeiro com o lucro será substituído por outro que o faça. Ainda assim, nós estonianos preferimos imaginar que somos amantes da natureza.

Essas histórias ainda são compartilhadas atualmente na Estônia? As pessoas contam para as crianças?

Eu contei para meus filhos quando eram crianças e ouvi algumas histórias dos meus avós também quando era pequeno.

E qual é a história que você contou para eles?

Eu contei uma história sobre como as pessoas lavavam muitas roupas e seus bebês no lago e até usavam peixes para limpar o bumbum das crianças. Então, um animal veio e circulou o lago, fazendo barulhos. Mas ninguém leu os sinais. E então, um dia, o lago subiu até as nuvens com todos os peixes e todos os sedimentos, e a vila teve de ser abandonada.

Eles ficaram impressionados com a história?

Eu não sei! (risos)

O Lago do Prato está dando sinais? Está nos avisando de algo?

Acho que esta estação seca é um aviso. Se não o entendermos, o verdadeiro desastre virá.


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Em sua mais recente expedição pelos rios Negro e Solimões, Adalberto Val registra transformações na paisagem em meio à seca histórica.

“Agora é hora de apresentar as evidências que ajudam a Amazônia”, diz Chris Wood, membro correspondente da ABC

O biólogo canadense participa de expedições na Amazônia desde 1976, mas nunca tinha visto uma seca tão grave quanto a que viu agora.

“Agora é hora de apresentar as evidências que ajudam a Amazônia”, diz Chris Wood, membro correspondente da ABC

Por Tiago da Mota e Silva, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), graduado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero (FCL) e pesquisador em Comunicação desde 2012. É membro do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (CISC). Investiga temas relacionados à Ecologia da Comunicação, conservação ambiental e mudança climática. 

O biólogo canadense Chris Wood trabalha com peixes em embarcação, durante expedição na Amazônia

No dia 21 de novembro de 2023, um grupo de 18 cientistas partiu de Manaus em um barco Amazônia adentro para uma expedição. Dentre esses homens e mulheres, há uma das maiores referências no estudo da fisiologia de peixes: o biólogo canadense Chris Wood — que certamente não é um estranho a viagens deste tipo.

Em 1976, Chris esteve na lendária expedição do Alpha Helix, barco que serviu de apoio para pesquisas de europeus, norte-americanos e sul-americanos pelo Rio Negro e pelo Rio Solimões. De lá para cá, Manaus é como uma segunda casa do pesquisador, que mal sabe precisar quantas vezes já esteve por aqui.

Além da Amazônia, Chris também já fez expedições pela América do Norte e pela África. Em cada uma delas, aprendeu a se virar. “Não existe um experimento perfeito”, conta Chris. Então é preciso se adaptar e improvisar diante de imprevistos. Pelo menos assim foi em Nairóbi, capital do Quênia, onde ele transformou garrafas de cerveja em respirômetros, recipientes nos quais é possível medir a respiração de peixes.

“Para mim, tudo se resume a essa experiência de ir a campo e trabalhar com animais na natureza, e não os domesticados de laboratório”, explica Chris, empolgado em estar na Amazônia.

Desta vez, o experiente cientista de 73 anos está investigando os limites em que alguns animais do Rio Negro, sobretudo um peixe chamado bodó, são intoxicados por cobre. Infelizmente, concentrações deste metal em níveis acima dos estabelecidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) são registrados, por exemplo, nos igarapés de Manaus, muito devido à poluição.

Chris é uma memória viva de como, com o tempo, a cidade de Manaus mudou e cresceu, e do como os ecossistemas amazônicos têm passado por transformações significativas. Neste ano, a região passou pela pior seca já registrada na história, com o Rio Negro chegando a níveis abaixo dos 13 metros de profundidade, segundo o Porto de Manaus.

Em 2022, Chris e o cientista brasileiro Adalberto Val assinaram um artigo prevendo toda sorte de dificuldades para os peixes da Amazônia diante das alterações climáticas. Não imaginaram, porém, que algumas de suas previsões ocorreriam já em 2023, em meio à seca: águas mais quentes com menor disponibilidade de oxigênio, por exemplo, levam a uma perda severa nas suas populações, ainda sequer contabilizada.

Nessa entrevista, Chris comenta sobre suas experiências de campo no sétimo de 15 dias de expedição. Além disso, opina sobre o atual momento do Brasil e da pesquisa: “agora é o momento para os cientistas pressionarem por bolsas para estudantes e por investimentos em educação.”

Como você está se sentindo no sétimo dia de expedição?

Estou realmente muito feliz por estar aqui. É sempre uma aventura fantástica realizar essas viagens de pesquisa na Amazônia. Claro, temos os problemas habituais que acompanham essas viagens, mas a pesquisa é muito empolgante. Estamos vendo muitas espécies de peixes e, atualmente, estamos nos concentrando mais nos bodós.

Li sobre uma história envolvendo você e salmões no rio Bella Coola. Olhando para os primeiros anos do seu trabalho e a experiência que você tem agora, quais são as principais diferenças?

Claro que as perguntas mudam ao longo do tempo e a tecnologia também muda. Mas, para mim, tudo ainda se resume à experiência de levar o laboratório para o campo e trabalhar com os animais recém-coletados na natureza, não com animais domesticados que nunca estiveram realmente no mundo real. E sempre há aqueles problemas imprevistos que enfrentamos ao trabalhar no campo. Nada funciona exatamente como se espera, e então é preciso se adaptar, mudar o plano. É realmente importante ser flexível. Acho que a história sobre a qual você está falando é quando estávamos colocando sondas de fluxo sanguíneo em salmões desovando no rio Bella Coola e fizemos um pequeno cercado com rochas para manter os peixes lá depois de uma cirurgia bastante extensa. Naquela época, as sondas valiam bastante dinheiro, provavelmente mil dólares canadenses [R$ 3.600 na cotação de hoje]. Na manhã seguinte, os peixes tinham escapado. E naquele rio havia cem mil peixes. Então, tivemos que vasculhar o rio para cima e para baixo procurando pelo nosso salmão, mas nunca o encontramos. Acabamos tendo que coletar dados de outro peixe.

Então, esse é um exemplo das suas habilidades de improvisação.

Acho que sempre temos que improvisar. Não existe algo como um experimento perfeito.

Imagino que suas habilidades de improvisação tenham melhorado muito com o tempo. Na atual viagem que está realizando na Amazônia, já houve algum momento de improvisação?

Bem, ontem estávamos tentando fazer o que chamamos de estudos de CTmax, que é medir a temperatura crítica do peixe colocando-o em um recipiente e ir gradualmente aquecendo a água. Mas os peixes estavam escapando do nosso recipiente porque eram muito pequenos para eles. Como trouxemos algumas meias-calça conosco para manter as amostras no nitrogênio líquido, tivemos a ideia de colocá-las ao redor do recipiente e funcionou. É um exemplo de uma adaptação simples que podemos fazer no campo.

Li sobre uma solução que você encontrou com garrafas de cerveja, eu acho…

As garrafas de cerveja, claro! Isso foi no Quênia. Naquele caso, não tínhamos equipamento, porque tudo foi confiscado pelas autoridades aduaneiras. Tivemos que improvisar em tudo. Precisávamos de respirômetros em que coubessem esses pequenos peixes de dois gramas. Então, bebemos essas garrafas de cerveja, que eram do tamanho perfeito, e pudemos usá-las como respirômetros.

Desculpe, mas como mesmo você esvaziou essas garrafas?

Com dificuldade! (risos) A primeira parte foi muito fácil, tirar o peixe da garrafa é muito mais difícil. Você tem que meio que sacudir ele para fora.

Ao longo dos anos em que você tem visitado a Amazônia, está ficando mais fácil lidar com o inesperado ou você ainda fica surpreso com diferentes situações?

A segunda opção. Você nunca sabe o que esperar. Talvez eu seja um pouco mais esperto e astuto à medida que envelheço, mas sempre é surpreendente. Nem sempre se antecipa os problemas que se precisa enfrentar. Mas para mim, essa é uma das grandes alegrias de fazer pesquisas, resolver problemas no momento.

Um dos experimentos montados na base flutuante do ICMBio, em Anavilhanas 

Estamos vivendo essa estação seca excepcional, a mais severa de todas. Do seu ponto de vista, apenas observando as coisas e estando aqui, as mudanças são perceptíveis? O que chamou sua atenção?

Claro, apenas a extensão da linha costeira que está exposta chama muito a minha atenção. Mas o que realmente me impactou foi andar pelo campus do Inpa e ver quantas árvores estão mortas ou morrendo nos bosques. Isso foi bastante chocante para mim, porque estive no campus tantas vezes ao longo dos anos e aquele sempre foi um ambiente muito saudável e de atmosfera selvagem. Agora estamos vendo todas essas árvores mortas… é realmente bastante perturbador. Já aqui em Anavilhanas, tudo o que posso realmente ver são os níveis de água, muito baixos. Dal e eu escrevemos um artigo no ano passado, publicado no Journal of Experimental Biology, onde prevemos o que ia acontecer. O que previmos que aconteceria lentamente está ocorrendo rapidamente, como é com essa seca. Isso é tão deprimente… Nunca pensamos realmente, quando escrevemos, que iriámos ver isso no ano seguinte.

Você se lembra de algum momento comparável a este?

De jeito nenhum. Eu estava aqui, talvez em 2009, quando o rio estava excepcionalmente alto e Manaus inundou. Mas nunca vi o nível da água tão baixo.

Há muita discussão sobre como a Amazônia está mudando à medida que se aproxima de alguns pontos sem retorno, ou tipping points. Eu sei que esses pontos são outra discussão difícil…

É difícil saber onde está o ponto sem retorno, ou quanto desmatamento vai causar um colapso em todo o sistema. Vimos estimativas entre 20% e 40% de desmatamento. Não sou especialista nisso, mas suspeito que estejamos muito, muito perto disso.

Do seu ponto de vista, quais têm sido os fortes indicativos de que estamos passando por uma mutação nos ecossistemas amazônicos na medida que nos aproximamos desses possíveis pontos?

Em seu laboratório, Adalberto Val conta com essas câmaras de mudança climática. O que elas fazem é monitorar os níveis de CO2 e temperatura na selva e depois enviar essas informações para o laboratório, adicionando quantidades adicionais de CO2 em um ambiente controlado, simulando o futuro das mudanças climáticas e seus efeitos nos organismos. Os níveis de gás carbônico captados pelo equipamento na floresta têm aumentado ao longo do tempo, e isso é uma evidência real das mudanças climáticas que estão ocorrendo aqui, provavelmente relacionadas com a queima das florestas. Também há muitas fotografias de satélite por meio das quais podemos ver que muitas estradas que saem de Manaus têm habitações. Então, à medida que os humanos invadem a floresta, obviamente estão queimando e destruindo a vegetação. E isso é outra evidência clara de que a Amazônia está passando por mutações.

Os peixes ajudam a contar essa história?

Essa é uma boa pergunta, e acho que não tenho a resposta. Sabemos, por exemplo, quais níveis de metais intoxicam os peixes e também sabemos que os níveis de metais registrados em muitos igarapés de Manaus são tóxicos para eles. Isso também é uma evidência forte de uma transformação induzida pelo homem nesses animais. Então, os peixes, eu acho, poderiam contar um pouco da história das mudanças relacionadas às ações humanas na Amazônia.

Gado pasta onde havia um lago. Na árvore, marcas escurecidas mostram onde a água costumava chegar 

Compreendendo essas mudanças e com toda a experiência que você acumulou ao longo dos anos, o que você acha que deve ser priorizado no seu campo de trabalho em termos de investigar os ecossistemas amazônicos? Quais são as questões que ainda intrigam você?

Ainda acredito que a biodiversidade na Amazônia é pouco estudada. Precisamos entender muito mais sobre ela. E também precisamos entender muito mais sobre os impactos gerados por humanos na Amazônia, principalmente os impactos de barragens hidrelétricas que devem ser estudados, da mineração, especialmente da mineração ilegal, e também o problema da falta de cobertura de saneamento básico em Manaus. Acho que a ciência realmente deve demonstrar que essas atividades têm impactos negativos para que possamos, talvez, exercer pressão política no sentido implementar o tratamento de esgoto, de parar a mineração ilegal e de interromper a construção de novas barragens para energia hidrelétrica. Essas são coisas que suspeitamos serem realmente prejudiciais para a Amazônia, mas precisamos de evidências fortes nesse sentido. Acho que agora o Brasil tem um governo que, novamente, é simpático à ciência. Como você sabe, o Brasil teve um governo anterior que era, eu diria, pouco simpático à ciência. Mas agora há o retorno de Lula e  eu vi como a ciência foi beneficiada ao longo do tempo por seus governos ao visitar universidades e laboratórios, observando quanto dinheiro foi investido em ciência no país. E então eu também vi o deterioramento que ocorreu durante o último governo. Agora acho que o Brasil está de volta com um governo mais simpático à ciência e ao meio ambiente, então agora é hora de apresentar as evidências que ajudam a Amazônia.

É um bom momento para buscar financiamento para a ciência e desenvolver novos projetos na Amazônia?

Sim, acho que é. O governo está tentando desfazer o dano causado nos últimos quatro anos, então ainda tem de lidar com muitas restrições. Mas também acredito que há um sentimento de começar a apoiar novamente a ciência. Então, agora é o momento para os cientistas pressionarem por bolsas para estudantes e por investimentos em educação. Porém, a expectativa não deve ser muito alta no curto prazo porque, como eu disse, o governo parece estar muito sobrecarregado.


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Sociobioeconomia de ‘floresta em pé’, uma solução econômica para a Amazônia

A Amazônia abriga 13% da biodiversidade global conhecida de plantas vasculares e vertebrados. Só de árvores e palmeiras, estima-se que existam 16.000 espécies. A ocupação Indígena da Amazônia, há cerca de 12.000 anos, resultou na domesticação de dezenas a centenas destas espécies, que ainda estão inseridas nos modos de vida das populações Amazônicas. Espécies nativas como mandioca, pimenta, urucum, castanha do Brasil, cacau e açaí se popularizaram globalmente, evidenciando o poder da biodiversidade e do legado Indígena na Amazônia.

No entanto, a biodiversidade e o legado Indígena na Amazônia estão enfrentando pressões. O desmatamento na região é o mais alto entre as florestas tropicais do planeta, atingindo em média 1,7 milhão de hectares por ano nas últimas duas décadas. As principais atividades econômicas nessas áreas incluem pecuária, monoculturas de soja e milho. Estudos recentes indicam que o desmatamento e as atividades econômicas relacionadas estão ligados a um complexo sistema ilegal de mercado de terras. Da mesma forma, a extração de madeira, quase toda ilegal, está causando uma grande degradação da floresta, tornando-a vulnerável a incêndios florestais.

(…)

Leia o artigo completo no The Conversation.

Bacia Amazônica registra o menor volume de chuva em 40 anos

A combinação entre clima seco, falta de chuva e altas temperaturas fez com que rios da Bacia Amazônica diminuíssem os níveis de água e começassem a secar. A região engloba nove países e enfrenta uma seca sem precedentes, com mudanças que colocam em risco espécies de animais e mais de 630 mil pessoas no Brasil. A mudança também afeta outras comunidades de Peru, Bolívia e Venezuela.

O panorama é apresentado em novo relatório do Observatório Global da Seca, produzido pelo Centro Científico da União Europeia e publicado em 20 de dezembro.

A análise reuniu informações da Bacia Amazônica e registra que a região teve o menor número de chuva em mais de 40 anos. A diminuição se deu entre julho e setembro. O impacto, contudo, deve se agravar nos próximos meses, que são de seca.

“É uma situação preocupante porque os rios não vão conseguir subir muito, nem as chuvas. E como é um ano de [fenômeno] El Niño, situações de seca podem ser agravadas ainda mais em janeiro, fevereiro e março. Normalmente as secas acontecem no verão e dessa vez foi antes, aconteceu antes da primavera”, aponta o climatologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), um dos participantes do relatório.

Marengo também destaca que a mudança de clima aumenta o risco de incêndios. “Estão acontecendo queimadas em boa parte da Amazônia”, diz. “No caso da biodiversidade, acontece em todo lugar: quando tem incêndios, você também está afetando a fauna. No caso específico de peixes, tucuxi, peixes de grande porte, como botos cor-de-rosa, é algo claramente sem precedentes. Junto com o calor excessivo, afeta a biodiversidade”, completa.

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Leia a matéria completa no SBT News

Comparação de trecho da bacia amazônica em setembro de 2022 e 2023 (Fonte:MapBiomas)

“Na COP 28, mundo parece não ter compreendido o perigo”, diz Carlos Nobre

A 28ª conferência do clima da Organização das Nações Unidas, a COP 28, chegou ao fim no dia 13 de dezembro e o acordo final não agradou os cientistas. Além de não falar expressamente na eliminação dos combustíveis fósseis, o documento não especifica sobre como será feita a transição energética e nem coloca prazos para isso, prometendo apenas uma redução gradual em seu uso. Dessa forma terminou uma COP marcada por polêmicas quanto à sede – os Emirados Árabes Unidos (EUA), um dos maiores produtores de petróleo do mundo – e ao presidente do encontro, o sultão Al Jaber, CEO da companhia estatal de petróleo do país.

O climatologista Carlos Nobre, membro titular da Academia Brasileira de Ciências, esteve presencialmente em Dubai e se decepcionou com o acordo final. Confira:

Impressão da COP 28

Nessa COP 28 em Dubai, o mundo passou a impressão de que não percebeu que 2023 foi um ano de temperatura recorde em 125 mil anos. Os eventos extremos explodiram e a temperatura média já aumentou 1,4 °C em relação a 1850, levando a um enorme risco climático. No Brasil, tivemos recordes em seca na Amazônia, em ondas de calor no Sudeste e Centro-Oeste e em chuvas e enchentes no Sul. Esse ano já deveria ter mostrado o risco das mudanças climáticas para todos.

Pontos de não-retorno

Durante a COP, um grupo de mais de 200 cientistas liderados pela Universidade de Exeter, Inglaterra, lançou um relatório atualizado sobre pontos de não-retorno em todo o planeta. Eles mostraram que, mesmo limitando em 1,5°C o aquecimento, nós ainda perderemos uma grande quantidade de gelo da Groenlândia, da Antártica, do Ártico e do permafrost de montanhas, afetando muito a biodiversidade desses lugares. Vamos extinguir também todos os recifes de corais. E quando a média de temperatura dos oceanos chegar perto de 1,5°C os eventos extremos se intensificarão ainda mais. É um risco enorme.

Documento final

O documento final não chama atenção para o que foi definido no Acordo de Paris, de 2015, e reforçado na COP 26, de 2021. Precisamos zerar as emissões até 2050 e, para isso, precisamos reduzir em 46% as emissões até 2030. 70% das emissões atuais vêm de combustíveis fósseis, mas a maioria dos países do mundo continuam a expandir essa exploração, inclusive o Brasil. Nós não precisamos de uma “transição lenta e gradual”, como afirma o documento, nós precisamos de uma eliminação rápida. Essa COP começa a sinalizar que os países vão permitir que a temperatura passe, e muito, dos 1,5°C de elevação.

O Global Stocktake – balanço de averiguação sobre o Acordo de Paris – foi discutido na COP 28. Ele mostra que todas as metas estão atrasadas e que os compromisso atuais dos países elevariam a temperatura em 2,5°C até 2050. Essa COP, como já se esperava, não acelerou nem mostrou o risco que o planeta já está correndo.

O papel do Brasil

Até a COP 30, que acontecerá no Brasil, em Belém do Pará, em 2025, o país precisa liderar uma grande mudança, uma mudança radical e rápida. Precisamos continuar reduzindo o desmatamento na Amazônia, como fizemos esse ano, mas reduzir também em outros biomas, já que aumentamos o desmatamento no cerrado. Para o Brasil chegar em 2030 como um líder em redução de emissões é preciso entender, em especial a Petrobras, que precisamos ir para o lado das renováveis e não para o lado de mais petróleo e gás. Temos o maior potencial de geração de energia elétrica renovável do planeta, em anos de chuvas intensas podemos produzir até 90% da nossa demanda em energia limpa. Temos todas as condições de fazermos uma rápida eliminação dos combustíveis fósseis e sermos o primeiro país do nosso tamanho no mundo a zerar emissões.

A meta brasileira é de reduzir em 53% as emissões até 2030 – em relação a 2005 – e zerar as emissões liquidas até 2050, mas podemos zerar até antes. O Brasil lançou na COP 28, através do BNDES, um grande projeto de restauração da Amazônia, chamado Arco da Restauração. A floresta está muito próxima de um ponto de não-retorno, então o objetivo é restaurar 24 milhões de hectares até 2050 para impedir o ponto de não retorno e remover 13 bilhões de toneladas de gas carbônico da atmosfera. Temos todas as condições de dar um exemplo pro mundo e ser o primeiro grande emissor do mundo a zerar suas emissões.

 


Carlos Nobre é climatologista, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), integrante do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e co-presidente do Painel Científico para a Amazônia (SPA). Formulou há 27 anos a hipótese de “savanização” da Amazônia, na qual a floresta gradualmente se transformaria numa mata aberta e degradada após passar por pontos de não retorno de clima e desmatamento. É membro titular da ABC.

 

 


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Finalmente, a COP-28 acabou. E o documento final diz muito sobre as fortes tensões que dominam a geopolítica de nosso planeta. Mais de 100 países, incluindo o Brasil, lutaram até o fim para que o texto mencionasse explicitamente que os combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás) deveriam ser banidos do planeta o mais rápido possível. Ao invés disso, os países produtores de petróleo forçaram um texto mencionando o estímulo à transição energética, saindo gradualmente das fontes fósseis de geração de energia.

Isso é exatamente o que a maioria dos países já estão fazendo há 20 anos, com a geração de energia solar e eólica, eletrificação do setor de transporte, entre muitas outras medidas já em andamento. O texto original menciona que os países devem “realizar uma transição dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos, de uma forma justa, ordenada e equitativa” (“transitioning away from fossil fuels in energy systems, in a just, orderly and equitable manner”). Para alguns, esta menção já é uma vitória expressiva, enquanto outros acham muito fraca a recomendação. A luta para a inclusão desta frase foi até o último minuto, com fortes ameaças de países não assinarem a declaração final, o que é um sintoma grave para nossa sociedade atual. Recomendar fazer algo que já está sendo feito, não pode ser caracterizado como progresso. A Ciência já recomenda há mais de 30 anos que seja eliminada a exploração e queima de combustíveis fósseis.

Outro importante passo que a COP-28 deu logo no primeiro dia, foi a estruturação do fundo de perdas e danos, destinado a compensar os países e regiões mais vulneráveis quando forem impactadas por eventos extremos, como elevação do nível do mar, incêndios florestais, secas, enchentes e outros problemas ligados à mudança do clima. Este fundo será administrado pelo Banco Mundial, a partir de doações voluntárias dos países e talvez empresas. Importante salientar que não se trata de obrigação dos países. Os valores projetados para este fundo de perdas e danos são extremamente reduzidos (algumas centenas de milhões de dólares, quando a necessidade é de centenas de bilhões de dólares). E nenhum acordo foi feito para ajudar financeiramente os países em desenvolvimento a reduzir suas emissões e se adaptar ao novo clima.

A falta de governança global ficou muito evidente nesta COP. Um único país dos 192 países signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCC) pode bloquear resoluções propostas por mais de 100 países, pois tudo tem que ser aprovado por consenso. Com os interesses econômicos e políticos dos países sendo tão diversos, claro que o consenso é algo impossível.

A diplomacia brasileira voltou aos seus melhores dias, com forte atuação do governo brasileiro nas negociações. Dez ministros estiveram presentes na COP-28, Fernando Haddad e Aloizio Mercadante lançaram programas de transição para uma economia de baixo carbono. Marina Silva brilhou, bem como Lula, com exceção do desastrado anúncio de entrada do Brasil na OPEP+, e de declarações de fixação aos combustíveis fósseis do Ministro de Minas e Energia e do presidente da Petrobrás.

A intensificação da mudança climática sendo observada recentemente, particularmente com o aumento expressivo de eventos climáticos extremos só mostra a urgência de decisões efetivas e rápida na contenção das mudanças do clima. Com as atuais emissões estamos indo para uma trajetória de aumento de 3°C, com aceleração do derretimento de geleiras e aumento dos eventos climáticos extremos. O ano de 2023 foi o mais quente em mais de 125 mil anos, e isso diz muito da urgência de alterarmos a trajetória climática que estamos seguindo.

Esta COP-28 coloca pressão sobre o Brasil, para que a COP-30 seja a COP que marque o fim dos combustíveis fósseis e a construção de uma sociedade com geração de energia sustentável. Além, claro, do fim do desmatamento de florestas tropicais. Temos que fazer nossa lição de casa, explorando os nossos enormes potenciais de geração de energia eólica e solar. E a Petrobrás tem que se ajustar aos novos tempos de energia renovável e engavetar o equivocado projeto de iniciar a exploração de petróleo na foz do Amazonas. O Brasil, com suas fortes contradições internas, tem que trabalhar muito para definir a trajetória que devemos seguir na questão climática e ambiental.

O presidente da COP 28, Al Jaber, que também preside a companhia estatal de petróleo dos Emirados Árabes Unidos, comemorou o acordo final do encontro

Paulo Artaxo é climatologista e membro titular da Academia Brasileira de Ciências. É professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. É membro do Comite Orientador do Fundo Amazônia, do Fundo Nacional de Meio Ambiente e do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. Está presente em Dubai para a COP 28.

 


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Emissões brasileiras a caminho da COP 30

Como o Brasil poderá atingir desmatamento zero em 2030 e o net zero de emissões líquidas em 2050? E como fazer isso, e ao mesmo tempo diminuir desigualdades sociais?

Para discutir este importante aspecto, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) montou um evento anexo oficial da COP-28, com participação de pesquisadores da Mata Atlântica, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON), Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), e do próprio Ipam, visando olhar para a COP30 e os desafios brasileiros na redução de emissões.

O levantamento do SEEG para 2022 mostra que desmatamento responde por 48% de nossas emissões, seguido por agropecuária (27%), energia (18%) resíduos (4%) e processos industriais (3%). Destas categorias, eliminar a principal é a mais fácil. O mais difícil é reduzir os 27% da agropecuária, bem como os 18% do setor energético. Com a intensificação dos extremos climáticos, vemos que em 2022 e 2023 tivemos um acionamento maior da geração termoelétrica, o que pode se repetir no futuro.

Os olhos do mundo estão voltados para as taxas de desmatamento da Amazônia, que felizmente caíram nos dois últimos levantamentos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Atualmente o Brasil desmata 9.000 Km² de florestas, e reduzir este número a zero tem seus desafios. Um destes é o combate às atividades ilegais na Amazônia. O IMAZON apresentou resultados de um importante estudo sobre o papel do judiciário no combate à criminalidade na Amazônia, incluindo invasões de terras públicas e indígenas, bem como o combate ao garimpo ilegal. O fundo Amazônia está financiando a implementação do novo Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e o centro de combate à criminalidade na Amazônia, que esperamos tenham resultados importantes.

Em 1990, o setor agropecuário emitia 185 milhões de toneladas de CO2 equivalente (MtCO2e). Em 2023, este número mais que triplicou, atingindo 600 MtCO2e. O painel discutiu processos modernos de integração lavoura-pecuária, onde é possível reduzir em até 30% as emissões de metano na criação de gado, sem reduzir a produtividade. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) conta com seu plano de agricultura de baixo carbono em desenvolvimento junto às universidades, e pode ter um enorme avanço nesta área, inclusive com o sequestro de carbono pelo solo.

No setor energético, o destaque do Brasil é uma matriz energética muito mais limpa que a maioria dos países, mas ainda com fraca participação de geração solar e eólica, comparada com nosso grande potencial nesta área. A possibilidade de geração de hidrogênio verde com baixos custos também é destaque no Brasil. Mas ainda temos geração de eletricidade por queima de carvão, e um Ministério de Minas de Energia que enfatiza a expansão da produção de petróleo, ao invés de olhar para o futuro, que é a energia renovável.

Temos que chegar na COP-30 fazendo nossa lição de casa na questão de redução de emissões. Importante salientar que com 48% de emissões associado ao desmatamento, temos uma possibilidade única no mundo, de redução rápida e barata de metade de nossas emissões de gases de efeito estufa. Temos que aproveitar nossas enormes vantagens estratégicas para voltarmos a ter um importante protagonismo internacional na questão ambiental e climática.

Na COP-28 hoje, o debate principal se deu na questão de como se referir ao fim da era dos combustíveis fósseis Duas possibilidades: se devemos usar o termo “eliminar gradualmente”, (em inglês “phase out“), ou somente usar o termo ”phase down”, que seria uma redução. A discussão não é somente semântica. Outra discussão é que os países devem concordar em acabar com o uso de combustíveis fósseis “não compensados” (em inglês “unabated”), o que abriria portas enormes para continuarmos com a era do petróleo, que precisamos terminar definitivamente, e o mais rápido possível. Vamos esperar o documento final em termos de linguagem, que pode ter consequências importantes para nossa trajetória futura de combustíveis fósseis.


Paulo Artaxo é climatologista e membro titular da Academia Brasileira de Ciências. É professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. É membro do Comite Orientador do Fundo Amazônia, do Fundo Nacional de Meio Ambiente e do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. Está presente em Dubai para a COP 28.

 


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Restaurar a floresta com Justiça

A revista Pesquisa Fapesp entrevistou a membra titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Ima Célia Vieira, confira!

Quando vai a uma reserva extrativista da região de Santarém, no Pará, a ecóloga Ima Célia Guimarães Vieira conversa com os moradores das comunidades de etnia Tupinambá para, em conjunto, encontrarem formas de restaurar áreas de florestas degradadas por incêndios. Ela oferece sugestões e ouve, embora tenha muito a contar, já que começou a estudar os mecanismos de recuperação da vegetação nativa há quase 40 anos. Com seus estudos, mostrou que muitas vezes é possível apenas deixar a mata se recuperar sozinha, ainda que em outras, quando o uso da terra foi intenso, seja necessário plantar espécies nativas para acelerar a recuperação das áreas degradadas.

Paraense nascida em Belém, cresceu entre as cidades, os campos e as florestas da ilha de Marajó, onde passava temporadas ao lado dos pais, ambos juízes, e dos cinco irmãos. Divorciada, tem dois filhos: Murilo, 29 anos, historiador e produtor musical, e Tomás, 26, baterista e estudante de música na Universidade do Estado do Pará. A nova geração herdou o pendor musical da família. Sua avó tocava quatro instrumentos, a irmã é cantora lírica e diretora de ópera, o irmão é violonista e professor universitário.

A toada de Vieira é outra, mas sempre em um tom firme e sereno. Seu conhecimento e sua habilidade como conciliadora a levaram em 2019 ao Vaticano, para ajudar 185 bispos a aprimorar suas visões sobre a maior floresta tropical do planeta e, desde o início deste ano, ao Rio de Janeiro, para assessorar a presidência da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Mas ela também tem opiniões fortes sobre as possibilidades de ocupação da Amazônia, expressas na entrevista a seguir, concedida por plataforma de vídeo, dias antes de ela viajar de Belém para outras reuniões na sede da Finep.

Que forças regem o desmatamento na Amazônia?

A Amazônia é um território em disputa. De um lado, você tem um modelo socioambiental, que se fortaleceu a partir da conferência Eco92 e defende a conservação e manejo da floresta e, de outro, um modelo desenvolvimentista, que lança mão inclusive de recursos ilegais para converter a floresta em áreas economicamente produtivas. O modelo desenvolvimentista, que tem predominado, levou a essa situação de altas taxas de desmatamento, com o apoio do Estado brasileiro, por meio de crédito e incentivo à expansão da agropecuária em larga escala. Um colega antropólogo aqui do Goeldi, Roberto Araújo (ver Pesquisa FAPESP nº 309), lançou o conceito de pós-ambientalismo, que procura tornar o modelo desenvolvimentista mais verde, mais amigável, com as certificações ambientais e a mercantilização do carbono. Outro colega, o economista Francisco Costa, da Universidade Federal do Pará (ver Pesquisa FAPESP no 277), argumenta, com dados muito profundos, que a intensidade do desmatamento varia de acordo com a maior ou menor procura por terras para usar como pastagens ou agricultura. Quando a gente vê florestas públicas sendo queimadas e destruídas, não é à toa. É para colocar essas áreas no mercado de terra, porque vem depois a possibilidade de que sejam regularizadas e aproveitadas para a produção de commodities. As políticas públicas para a Amazônia retratam esses interesses conflituosos. A infraestrutura e o apoio ao desenvolvimento econômico estão ligados ao agronegócio e à mineração. Essas abordagens de bioeconomia, restauração florestal e créditos de carbono não atendem diretamente às necessidades das populações tradicionais, que ocupam 40% da Amazônia e não só conservam, mas manejam a floresta secularmente. A restauração não é um grande problema para essas populações porque usam áreas pequenas. Estamos buscando soluções para problemas causados por aqueles que destruíram a Amazônia, o que nos leva ao que eu chamo de justiça da restauração. Não me parece justo que os mesmos grupos que receberam recursos públicos para destruir a floresta agora recebam mais para desfazer os estragos que fizeram. O próprio agronegócio tem de arcar com a restauração, sem dinheiro público.

(…)

Leia a Entrevista completa na revista Pesquisa Fapesp.

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