Fenômeno de aquecimento das águas do Pacífico altera clima no planeta inteiro e está sendo ainda mais intenso em 2023-2024. Saiba como ele ocorre e quais as principais consequências para o Brasil em mesa-redonda promovida por ABC, SBPC e Cemaden.
El Niño extremamente forte é agravado pelas mudanças climáticas. Além das tempestades no Sul e calor extremo no Sudeste e Centro-Oeste, fenômeno vai agravar a seca histórica na região amazônica e no Nordeste
Estudos e projeções recentes apontam a possibilidade de que haja cada vez mais El Niños extremos, com maior intensidade e variação devido às mudanças climáticas
Em um ano marcado por recordes de temperaturas e outros eventos extremos, como chuvas históricas no Sul, estiagens severas no Norte e ressacas em praias, a Academia Brasileira de Ciências (ABC)…
O pior ainda está por vir, dizem os cientistas: haverá agravamento dos extremos climáticos no Brasil à medida que o El Niño avança para o pico de sua atividade, em dezembro.
A seca intensa na Amazônia causada pelo El Niño neste ano aconteceu antes do esperado por especialistas e pode levar a mais recordes negativos, mesmo depois de marcos como o ponto mais baixo do rio Negro em toda a história. Da mesma maneira, a atual onda de calor no Sudeste pode se repetir com mais intensidade durante o verão. Em evento nesta quinta-feira (16) na sede da Academia Brasileira de Ciências (ABC), estudiosos debateram os efeitos do atual El Niño e seus efeitos para o Brasil e o continente sul-americano no âmbito das mudanças climáticas.
Regina Rodrigues, oceanógrafa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenadora da subrede de desastres naturais da Rede Clima, afirma que, pelas características de outros El Niños, a seca severa na Amazônia deveria começar apenas no verão. “Mas a gente já tá vendo muito intensa [a estiagem] agora”, diz. “Então é muito provável, diante do nosso conhecimento, que essa seca vá continuar, e provavelmente se intensificar”, acrescenta.
A cientista diz que comportamento semelhante é esperado para as ondas de calor que atualmente acometem o Sudeste – com recordes de temperatura em diversas capitais do país. “Normalmente o aquecimento no Sudeste é esperado para o verão, e já está acontecendo na primavera. A não ser que tenha uma mudança brusca, vai continuar e talvez piorar”, pondera.
O pior ainda está por vir, dizem os cientistas: haverá agravamento dos extremos climáticos no Brasil à medida que o El Niño avança para o pico de sua atividade, em dezembro. Os especialistas preveem que a seca na Amazônia se aprofundará, além de haver mais calor no Centro-Oeste e Sudeste e fortes chuvas no Sul. Preocupa a situação do Nordeste, já que a estiagem severa é dada como certa na região no início de 2024.
‘A situação está perigosa’
O alerta foi dado nesta quinta-feira no evento “Crise climática e desastres como consequência do El Niño 2023-2024: impactos observados e esperados no Brasil”, que reuniu na Academia Brasileira de Ciências (ABC), no Rio, alguns dos maiores climatologistas do país.
— A situação está perigosa. A chuva já deveria ter começado na Amazônia Central, mas veio muito fraca. Teremos o prolongamento e acentuação da seca no Norte. Também no Nordeste, já há sinais de que a chuva vai atrasar, e haverá seca. Estamos avisando há meses, o cenário só piora. Os governos já deveriam estar preparados — salientou José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Modelagem do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
No dia 16 de novembro, na sede da Academia Brasileira de Ciências (ABC), no Rio de Janeiro, foi realizada a mesa-redonda “Crise climática e desastres como consequência do El Niño 2023-2024: impactos observados e esperados no Brasil”. O evento foi promovido pela ABC, pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), em parceria com o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (MMA), o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas Fase 2 (INCT MC2).
O El Niño é um fenômeno que ocorre irregularmente, em média a cada três ou quatro anos, em que a distribuição de temperatura nas águas superficiais do Pacífico se altera, com consequências no clima do mundo inteiro. O El Niño deste ano foi decretado em junho e a previsão é de que seja particularmente forte, cenário agravado pelas mudanças climáticas. O Brasil é um dos países mais afetados pelas alterações causadas pelo fenômeno e discutir seus impactos é tarefa fundamental da ciência.
Mesa de abertura
O diretor da ABC Roberto Lent abriu o encontro lembrando que as mudanças climáticas são um problema do presente e que é obrigação dos cientistas debatê-la e influenciar na tomada de decisão do mundo político. Na mesma linha, a diretora da SBPC e Acadêmica Ana Tereza Vasconcelos lembrou que educação e pesquisa são pilares para a mitigação do problema.
A diretora substituta do Cemaden, Regina Alvalá, afirmou que nenhum El Niño é igual ao anterior e que a entidade está atuando de maneira preventiva junto aos órgãos do governo. Representando o Governo Federal, a secretária de Políticas e Programas Estratégicos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Márcia Barbosa, que também é membra da ABC, defendeu uma atuação integrada do Estado. “Precisamos reconhecer que as coisas não estão isoladas. Meio ambiente, clima, agricultura e saúde dialogam, então precisamos de uma atuação conjunta entre os órgãos de governo”, disse.
Um El Niño particularmente forte
O El Niño ocorre quando os ventos alísios que sopram de leste para oeste na parte equatorial do Oceano Pacífico enfraquecem, fazendo com que as águas quentes subsuperficiais, que normalmente ficam concentradas na costa asiática, subam à superfície na costa da América do Sul.
Podemos dividir o fenômeno em dois tipos: o fraco se dá quando esse ressurgimento se dá afastado da costa americana, ainda na região central do Pacífico, causando alterações climáticas menos significativas; já o forte se dá quando o aquecimento é predominante nas águas costeiras, com consequências mais intensas. É com este segundo tipo de El Niño que estamos lidando.
Esse cenário é agravado pelas mudanças climáticas. Num mundo mais quente, o aquecimento anormal das águas é ainda maior, levando a consequências climáticas mais graves. A tendência é de uma predominância de El Niños fortes no futuro. “Para a América do Sul isso significa fenômenos climáticos extremos ainda mais frequentes e imprevisíveis”, destacou a oceanógrafa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Regina Rodrigues.
Existe também um outro tipo de fenômeno climático no Pacífico. A chamada La Niña ocorre quando os ventos alísios se intensificam, gerando consequências diametralmente opostas às do El Niño. A La Niña é mais frequente que o El Niño e a tendência é de que também se torne mais intensa no futuro.
Outra consequência é a seca histórica que está afetando a Amazônia. O nível do Rio Negro nunca esteve tão baixo, e a tendência para os próximos meses é de piora. No caso da Amazônia, os efeitos do El Niño se somam ao aquecimento das águas do Atlântico Norte, consequência das mudanças climáticas, que afetam a umidade na Região Norte e intensificam a estiagem. “Tradicionalmente, nos anos de El Niño, a seca no Norte e Nordeste tende a ser mais intensa de dezembro a maio. O fato de já estar grave em outubro e novembro significa que dessa vez pode ser catastrófica”, alertou o coordenador-geral de pesquisa do Cemaden, o Acadêmico José Marengo.
A pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Chou Sin Chan, especialista em modelagem climática, alertou que os efeitos do El Niño são sentidos também nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, tradicionalmente menos afetadas pelo fenômeno. Isso se dá principalmente pelas chamadas ondas de calor, causadas quando “domos de calor” se instalam, aprisionando massas de ar quente. É o que está ocorrendo neste momento no Brasil, levando a temperaturas recordes em várias capitais do país.
Mitigação e adaptação às mudanças climáticas
O Brasil precisa ter estratégias claras para responder á emergência climática. O Cemaden, por exemplo, foi criado após o desastre de 2011 na região serrana do Rio de Janeiro, quando mais de mil pessoas morreram em deslizamentos e enchentes. Desde então o centro vem tentando unificar e otimizar os alertas sobre eventos climáticos extremos, mas apenas isso não basta. “Desde 2011, cresceu em 17% o número de pessoas vivendo em áreas de risco. É preciso criar condições para que essas pessoas vivam em outros lugares”, alertou José Marengo, coordenador do Cemaden.
Mas para além da preparação para desastres, o Brasil tem um papel crucial no controle climático do planeta. O país abriga a maior floresta tropical do mundo, capaz de armazenar bilhões de toneladas de carbono que vão direto para a atmosfera se a foresta for derrubada. O climatologista e Acadêmico Carlos Nobre, participante do Painel Intergovernamental em Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês) e uma das principais referências do planeta no assunto, vem alertando para o fato de a floresta caminhar rumo a um ponto de não-retorno. “Se isso acontecer, mais de 250 bilhões de toneladas de gás carbônico vão parar na atmosfera, inviabilizando qualquer tipo de meta climática”, disse.
Outro ponto que requer preparo é a segurança hídrica. Estimativas sugerem que as mudanças climáticas podem diminuir em até 20% a disponibilidade de água na América do Sul. A engenheira Suzana Montenegro, diretora-presidente da Agência Pernambucana de Águas e Clima (Apac), classifica a gestão de águas como um quebra-cabeça de fatores, dentre os quais está a resiliência contra eventos climáticos extremos. “É preciso uma gestão adaptativa por parte do Estado, fortalecendo organismos de monitoramento e criando protocolos de ação para que o poder público possa agir de forma rápida e eficaz durante crises”, afirmou.
Limites da adaptação
Adaptação a um mundo mais quente é um dos desafios do século XXI, mas esses esforços não podem servir de desculpa para que nada seja feito na origem do problema. Isso porque, em longo prazo, não existem limites para o quanto o planeta pode aquecer, apenas para o quanto somos capazes de suportar.
“Existem limites fisiológicos de temperatura e de umidade relativa do ar que o nosso corpo consegue suportar. A partir de certo ponto não somos mais capazes de transpirar para controlar nossa temperatura. Esses limites são letais e estimativas mostram que podemos atingi-los já em 2100”, alertou Nobre.
No dia 16 de novembro, às 10h, na sede da Academia Brasileira de Ciências (ABC), será realizada a mesa-redonda “Crise climática e desastres como consequência do El Niño 2023-2024: impactos observados e esperados no Brasil”. A atividade terá participantes presencialmente no auditório e transmissão pelo YouTube da ABC.
O evento é promovido pela ABC, pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), em parceria com o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (MMA), o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas Fase 2 (INCT MC2).
Na mesa-redonda serão discutidos diferentes aspectos do El Niño 2023-2024, sendo destacadas semelhanças e diferenças em relação a outros eventos do El Niño, bem como os impactos já observados em 2023 e aqueles esperados para o verão e outono de 2024.
O foco da atividade está nas possíveis consequências das anomalias climáticas resultantes do El Niño 2023-2024 em temas como desastres (secas, risco de incêndios, inundações e deslizamentos de terras provocados por extremos de chuva), segurança hídrica, alimentar e energética, infraestrutura, entre outros.
Também serão considerados possíveis cenários do El Niño como resultado das mudanças climáticas e ações que possam levar a medidas de adaptação para enfrentamento da crise climática.
Veja a programação:
10h | Abertura
11h | Mesa-Redonda
Regina Rodrigues (UFSC) El Niño 2023-2024 sob o cenário das mudanças climáticas
Jose Marengo (Cemaden/MCTI e INCT MC2) El Niño 2023-2024 e os seus impactos: os desastres recentemente observados são consequências do El Niño?
Suzana Montenegro (UFPE) El Niño 2023-2024 e seus possíveis impactos nos recursos hídricos
Chou Sin Chan (INPE) Projeções em alta resolução da chuva durante eventos de El Nino em cenários de mudanças climáticas
A região Norte do Brasil tem a pior estiagem do século, com sérios impactos climáticos, econômicos e sociais. O tema foi debatido em evento promovido pela Fapesp no dia 17 de outubro.
A situação da Amazônia é crítica: os Estados do Acre, Amapá, Amazonas e Pará tiveram os menores índices de chuva desde 1980 entre os meses de julho e setembro. E o rio Negro registrou este mês o nível mais baixo de água desde 1902, quando teve início a medição. A mais intensa seca na região em cem anos é consequência da influência do fenômeno El Niño, mas também há indícios de estar associada às mudanças climáticas. A avaliação foi feita por especialistas que participaram do webinário “Eventos Climáticos Extremos em Ano de El Niño”, promovido pela Fapesp em 17 de outubro.
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“Estudos mostram que o aquecimento da atmosfera se expande da região tropical para médias latitudes, impactando o regime de chuvas”, reforçou [o Acadêmico] Tércio Ambrizzi, coordenador do Grupo de Estudos do Clima do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP).
O desmatamento da Amazônia também agrava a seca, já que diminui a evapotranspiração, isto é, a emissão de vapor d’água pela floresta, que forma as chuvas.
(…)
Os pesquisadores apontam a necessidade de intensificar as estratégias de planejamento: “Temos um conhecimento muito claro dos impactos climáticos e do ônus que o El Niño ocasiona”, afirmou Ambrizzi. “Portanto, é possível se preparar com antecedência de três a seis meses, especialmente no caso das defesas civis.”
Os cientistas ressaltaram a importância de estratégias focadas no planejamento urbano, com planos diretores mais eficientes, para que a população possa conviver com o clima mais seco nos próximos anos.
Apresentado [pela Acadêmica] Maria de Fátima Andrade, membro da coordenação do PFPMCG, e moderado por Ambrizzi, o evento foi transmitido pelo canal da Agência Fapesp no YouTube.
Em sua apresentação, o professor do IAG-USP [e Acadêmico] Ricardo Trindade destacou a importância estratégica do PFPMCG, que, há 15 anos, busca entender como as alterações climáticas acontecem, como mitigá-las e qual é o papel do ser humano nos eventos relacionados.
Leia a entrevista do Acadêmico José Marengo para Ana Lucia Azevedo, do jornal O Globo, publicada em 16/9:
A época em que as noites quentes eram motivo para ficar na rua faz parte das recordações de um tempo, no duplo sentido da palavra, que virou passado. Hoje se tornaram motivo de preocupação. As temperaturas passaram de amenas a desagradáveis e, por vezes, perigosas. Exemplo são as noites desta onda de calor. Pioneiro nos alertas sobre as noites sem descanso e outras consequências das mudanças climáticas, o meteorologista e climatologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Modelagem do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), está preocupado não apenas com o El Niño, mas com a combinação deste às anomalias do aquecimento global. Marengo alerta sobre a necessidade de planejamento e traça um cenário dos próximos meses.
Há mais de 20 anos seus estudos apontam para o aumento de noites quentes, como as deste ano.
Quando se fala de aquecimento global, é costumeiro se referir às médias porque dão uma ideia geral do que ocorre. Mas quando temos ondas de calor, as máximas e as mínimas se destacam. Quando elevadas, as mínimas, normalmente registradas à noite e no amanhecer (quando a radiação solar não incide diretamente na superfície), são um indicador preciso da intensidade de uma onda de calor. Mas o fato é que as noites não estão mais quentes apenas durante as ondas de calor.
E o quão mais quentes estão?
Os índices de noites quentes, que variam entre países e regiões, dispararam. Estão mais frequentes e com temperaturas mais elevadas o ano todo. Os invernos estão mais quentes.
Por que as noites quentes são um indicador tão importante e também tão preocupante?
Elas são um indicador de problemas, porque se a temperatura não baixa significativamente nem à noite é um sinal de extremo, de anomalia no clima. Porque em dias de muito calor, a chegada da noite costuma trazer alívio para o desconforto e o estresse causados pela temperatura elevada. Mas se o termômetro não baixar significativamente durante a noite, nosso corpo não tem descanso. Na verdade, todos os seres vivos continuam a sofrer, sem alívio. É por isso que noites quentes são terríveis, desgastantes.
O físico Paulo Artaxo, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), foi entrevistado pelo Jornal da CBN no dia 22 de setembro. Artaxo é especialista em mudanças climáticas e foi convidado no contexto da onda de calor que atinge o Brasil, fenômeno intimamente ligado com a alteração no clima do planeta.
“O Brasil é muito vulnerável às mudanças climáticas”, afirmou o Acadêmico. Para Artaxo, o país precisa urgentemente se adaptar a essa nova realidade. O cenário atual ainda é agravado pelo El Niño – o aquecimento periódico das águas do Pacífico – que causa alterações na dinâmica climática da região. Climatologistas alertam que o fenômeno desse ano deve ser ainda mais intenso do que os anteriores, e as mudanças climáticas também são causa disso.
O cientista reforçou que o Brasil tem papel crucial na mitigação climática protegendo a Amazônia, o maior reservatório de carbono do planeta. Ele criticou a vagarosidade com que as discussões sobre o tema avançam no âmbito da geopolítica. “Apesar da ciência alertar há 50 anos, muito pouco foi feito até agora”, disse.