Por Tiago da Mota e Silva, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), graduado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero (FCL) e pesquisador em Comunicação desde 2012. É membro do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (CISC). Investiga temas relacionados à Ecologia da Comunicação, conservação ambiental e mudança climática. 

Priit Zingel coleta água do Lago do Prato em busca de cianobactérias, organimos com papel fundamental na cadeia alimentar do ecossistema (Foto: Tiago da Mota e Silva)

Antes de começar a entrevista, o ecólogo estoniano Pritt Zingel perguntou ao repórter se esta seria, finalmente, seu momento de fama. “É só para isso que serve a ciência!”, exclamou com sua voz grave. Sua ironia ácida marca com bom humor o que é, na verdade, o grave tema com o qual trabalha: como lagos considerados rasos estão, pelo mundo, passando por transformações e até mesmo desaparecendo.

Priit foi um dentre os 18 cientistas que, no dia 21 de novembro de 2023, partiu de Manaus (AM) em um barco para uma excursão científica de 15 dias pelo Rio Negro e pelo Rio Solimões. Dentre outros objetivos, a viagem avaliou os impactos da seca histórica que acometeu o estado do Amazonas, com o nível do Rio Negro chegando abaixo de 13 metros de proundidade, segundo o Porto de Manaus.

“Isso me toca em um nível emocional”, conta Priit. Afinal, esta é a terceira vez dele na Amazônia. Na última, em 2019, o pesquisador esteve no Lago do Prato, no arquipélago de Anavilhanas, também durante a temporada de poucas chuvas. Mas nada se compara a este ano: praticamente a metade do lago do Prato desapareceu.

Ao longo dos anos, Pritt se especializou em lagos rasos. São ecossistemas espalhados pelo mundo definidos, é claro, pela sua pouca profundidade, mas também, e sobretudo, por conter águas que se misturam com facilidade. Segundo Priit, esses lagos são muito importantes em termos de abastecimento e pesca, como é o caso também de lagos da Amazônia.

Nesta entrevista, que ocorreu no sétimo dos 15 dias de expedição, o cientista discute a fragilidade desses ambientes e quais são as consequências de uma seca tão severa para eles. Além disso, compartilha a dificuldade de transmitir a mensagem da mudança climática para mais pessoas: “Hoje em dia, não é suficiente apenas fornecer informações, você também deve apresentar um espetáculo para torná-las mais atrativas.”

É o sétimo dia da viagem. Como tem sido até agora?

O trabalho tem sido muito bom! Claro, sempre há expectativas e encontramos problemas, coisas que não funcionam, coisas que deixamos para trás…

Não é a sua primeira vez aqui na Amazônia…

Estivemos aqui duas vezes antes e tiramos muitas fotos, colhemos informações, ouvimos muitas histórias, coletamos amostras e, é claro, sentimos toda sorte de emoções. Inclusive, tentamos transmitir essas emoções para o público em geral quando montamos uma exposição chamada ‘Amazônia perto e longe’, em nosso Museu dos Lagos, lá na Estônia. Investimos muito esforço para educar os estonianos sobre esta região e sobre as pessoas que vivem aqui, sobre os pescadores e como eles manejam os peixes, também um pouco sobre a mitologia deste lugar… A exposição tem sido bastante popular e agora está viajando pela Estônia. Acreditamos firmemente que a ciência deve retribuir à sociedade e ajudar a popularizar o conhecimento. E como a Amazônia é um tema tão exótico para os estonianos, ela consegue atrair facilmente o público. Com isso, podemos inserir alguns de nossos próprios estudos estonianos aqui e ali, para aproveitar a atenção das pessoas.

Mas esta é a primeira vez numa estação seca tão severa. Levando em conta suas experiências anteriores, como tem sido esta? Quais são as mudanças que chamaram sua atenção desta vez no campo?

Inicialmente, foi muito perturbador ver o quão pouco resta desses lagos onde costumávamos trabalhar das últimas vezes. Isso me toca em um nível emocional. Porque nós, como cientistas, estamos sempre alertando e importunando as pessoas sobre o quão ruins as coisas podem ficar. Mas quando as coisas ruins finalmente começam a acontecer, poderíamos até dizer “Nós avisamos”, mas sinceramente havia uma esperança nessas advertências de que poderíamos evitar isso. Mas esse é um dos problemas com os humanos: de alguma forma, acreditamos fortemente que tudo vai sempre permanecer como está. Não cremos muito bem em mudanças e é por isso, também, que esses avisos não se transformaram em ação. É como se alguma voz em nossa mente coletiva continuasse repetindo: tudo vai ficar como está. Precisamos reconhecer que este planeta em que vivemos é um milagre. Recebemos uma certa quantidade de energia do sol e perdemos uma quantidade de energia para o espaço. Existe um equilíbrio tão exato no qual podemos existir… Um pouco desequilibrado para um lado ou outro, o planeta será ou uma bola de gelo ou um inferno. Claro, a Terra já foi muito mais quente ou muito mais fria em sua história, mas naquelas épocas não havia humanos. Então, quando falamos sobre mudança climática, na verdade estamos falando sobre como nossa espécie evoluiu e prosperou nessas condições muito específicas em um período de tempo muito pequeno e recente. Se essas condições forem muito alteradas, como estão sendo, teremos problemas.

Então, pelo que entendo do que você está dizendo, os cientistas têm enfrentado uma luta na tentativa de transmitir a mensagem das mudanças climáticas. Este parece ser o caso aqui no Brasil, mas também é o caso em seu país, na Estônia?

Sim. Na verdade, essa dificuldade ficou muito pior na última década. Porque há mais informações disponíveis sobre o assunto, mas a mensagem da ciência parece se diluir no espaço público. Na Conferência Internacional sobre Lagos Rasos, no ano passado, na Estônia, tentamos reunir os melhores cientistas do mundo e chamar a atenção da imprensa. Fizemos uma conferência com um lago logo atrás de nós, para obter boas fotos. Hoje em dia, não é suficiente apenas fornecer informações, você também deve apresentar um espetáculo para torná-las mais atrativas. Os cientistas precisam se tornar melhores contadores de histórias, mas talvez seja pedir demais deles.

O trio de estonianos Helen Agasild (esq.), Arvo Turkivene e Priit Zingel (Dir.) coletam materiais de peixes em Anavilhanas, AM (Foto: Tiago da Mota e Silva)

Você construiu sua carreira sobre o tema de lagos rasos…

Sim, lagos rasos são tão interessantes porque, primeiro, o que é um lago raso? Não se trata apenas da profundidade da água. Em lagos profundos, as águas com menos sedimentos sobem e as águas mais pesadas descem. Por isso, as camadas superior e inferior são completamente separadas, dois sistemas separados. Há frio, escuridão e mais nutrientes no fundo e há luz, calor e menos nutrientes em cima. Já os lagos rasos são mistos, não há estratificação acontecendo. Nosso principal lago, o Peipus, é o quinto maior lago europeu em área, 3,5 quilômetros quadrados com uma profundidade média de 7 metros, 15 metros  em alguns lugares, e ele também é misto. A maioria do conhecimento sobre lagos abrange os profundos. Mas, na verdade, a maioria dos lagos no mundo são rasos e eles têm uma relevância econômica muito maior para as sociedades humanas, seja para abastecimento de água, ou para a pesca e etcetera, como é o caso também aqui da Amazônia. Precisamos estudá-los, portanto, porque são muito importantes e também muito vulneráveis. Quando você tem lagos com 50 metros de profundidade e perde um metro durante uma seca, ainda restam 49, certo? Mas se você tem dois metros e um desaparece, então já perdeu metade da água. Além disso, lagos rasos esquentam muito mais rapidamente, secam mais rapidamente e, com mais tempestades e ventos mais fortes, esses lagos ficam ainda mais misturados e mexidos. Todas essas condições podem perturbar o ambiente e a vida que ele sustenta. Afinal, tudo se trata de estabilidade na natureza. Quando essa estabilidade é quebrada, o ambiente pode entrar em um período de enorme confusão até que a próxima estabilidade seja alcançada. Quando esses processos de transformação começam, é como se, de repente, dois mais dois deixasse de ser quatro e passasse a ser seis, ou sete, ou oito. Perde-se o controle.

Então, estudar esses lagos é importante no sentido de não sermos pegos de surpresa?

Essa é uma boa razão para estudar como diferentes estressores atuam nos ecossistemas. São muitos os fatores que influenciam um lago: você tem aquecimento, nutrientes, perturbação pelo vento… geralmente sabemos como cada um age por si só, mas quando você combina dois ou três é bastante complicado de prever o que ocorreria. Ainda há muito que não sabemos. Veja, existem todos os tipos de doutores. Quando estamos saudáveis e o ambiente ao nosso redor está saudável, não precisamos de doutores em medicina nem de doutores em ecologia. Quando há algo errado dentro de nós, então precisamos de um médico que investigue nosso corpo. E quando há algo errado ao nosso redor, então precisamos de um ecologista que investigue nosso ambiente. Alguns médicos nos aconselham a comer uma maçã ou fazer caminhadas, e nos incomodam para pararmos de fumar ou de comer porcarias. Da mesma forma, nós, os ecologistas, estamos aqui para incomodar você a parar de poluir e essas coisas.

Então, basicamente, os lagos ao redor do mundo estão sofrendo mutações por causa das mudanças climáticas e isso nos afeta…

Sim. Existem lagos rasos em áreas áridas, que estão evaporando e desaparecendo. Isso também está acontecendo no norte, em áreas de tundra, que agora estão com menos neve e mais quentes. Claro, como esses casos estão longe da maioria dos centros urbanos, ou até mesmo em países muito distantes, as pessoas pensam que eles não as afetam. Mas esses eventos, incluindo o que está acontecendo aqui na Amazônia, podem estar correlacionados e podemos abordá-los como parte de um problema global.

Sabemos que seus estudos aqui na Amazônia ainda não são conclusivos, mas o que você imagina que seriam os principais impactos dessa seca severa?

Provavelmente, quando algo sai do sistema, o fluxo de matéria é prejudicado. Quando o fluxo de matéria é prejudicado, menos nutrientes estão disponíveis, por exemplo, no nível dos peixes, e a população de peixes pode diminuir. Você estreve conosco e viu como esse grande lago [lago do Prato] secou. Certamente há nutrientes na área do fundo que agora estão totalmente fora do sistema. Eles não podem ser usados pelas populações aquáticas e isso não é irrelevante. Talvez algumas espécies se extingam, talvez outras espécies se tornem mais dominantes. Novamente, é difícil prever, mas geralmente nada de bom resulta disso. Na Amazônia, como há uma biodiversidade enorme que é em sua maioria desconhecida para nós, também são desconhecidas quais seriam suas funções nos ecossistemas. Nem sabemos quais seriam as consequências de perder essas espécies ainda não descobertas justamente porque ainda sequer as descobrimos! O fato de não conhecê-las não significa que não sejam importantes. É como abrir seu carro e ver muitos fios e tirar dois deles, apenas porque você não sabe como funcionam ou o que fazem. Veja se o motor irá funcionar depois disso. Essas áreas tropicais, com alta biodiversidade, são como uma máquina sofisticada cujo funcionamento nós não entendemos completamente.

Lago do Prato, em Anavilhanas, em novembro de 2023, durante seca histórica no AM (Foto: Arvo Tuvikene)
O mesmo Lago do Prato no ano de 2019, também em novembro (Foto: Arvo Tuvikene)

Você mencionou em nossas conversas sobre o folclore em torno dos lagos estonianos. Essas crenças são úteis? Há nelas um conhecimento real sobre os lagos e como preservá-los?

Essa é uma pergunta difícil. Essas lendas são muito antigas e, pelo que sei, a Estônia é o único país que possui essas histórias de lagos móveis ou fugitivos. São, geralmente, sobre os lagos sendo insultados de alguma forma pelo mau comportamento dos humanos, e então decidem partir. Para mim, acredito que elas me ensinaram a ser respeitoso com os lagos E estão de alguma forma gravadas na minha memória. Por exemplo, há a crença de que pouco antes de um lago desaparecer, há um aviso dado pelo lago. Em muitos caso, esse aviso é algo como um touro preto que caminha por perto e faz barulhos, como um presságio de um desastre. A imagem desse animal negro está em minha imaginação em camadas profundas. Sempre há um aviso primeiro, mas quando você não entende os sinais da natureza, então a história não termina bem. Voltando à sua pergunta, acredito que há algum impacto dessas tradições culturais em como administramos politicamente e economicamente nossos recursos naturais. Mas também me parece que o apelo ao dinheiro e ao lucro é, agora, ainda mais forte do que esse imaginário e esse conhecimento ecológico profundo. É quase como se o lucro nos tivesse selecionado. Afinal, o empresário que não se preocupa primeiro com o lucro será substituído por outro que o faça. Ainda assim, nós estonianos preferimos imaginar que somos amantes da natureza.

Essas histórias ainda são compartilhadas atualmente na Estônia? As pessoas contam para as crianças?

Eu contei para meus filhos quando eram crianças e ouvi algumas histórias dos meus avós também quando era pequeno.

E qual é a história que você contou para eles?

Eu contei uma história sobre como as pessoas lavavam muitas roupas e seus bebês no lago e até usavam peixes para limpar o bumbum das crianças. Então, um animal veio e circulou o lago, fazendo barulhos. Mas ninguém leu os sinais. E então, um dia, o lago subiu até as nuvens com todos os peixes e todos os sedimentos, e a vila teve de ser abandonada.

Eles ficaram impressionados com a história?

Eu não sei! (risos)

O Lago do Prato está dando sinais? Está nos avisando de algo?

Acho que esta estação seca é um aviso. Se não o entendermos, o verdadeiro desastre virá.


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