A Royal Society do Reino Unido, uma das mais importantes associações honoríficas de ciência do mundo, anunciou no dia 16 de maio seus novos membros. Dentre eles está um brasileiro, o epidemiologista Cesar Gomes Victora, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e professor emérito na Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Victora é referência internacional em saúde infantil, com uma vasta produção científica sobre a importância da amamentação exclusiva para reduzir drasticamente a mortalidade de bebês. Também desenvolveu os modelos de curva de crescimento infantil que hoje guiam profissionais de saúde em mais de 140 países. Victora é ex-presidente da Associação Epidemiológica Internacional (IEA) e atua como consultor de órgãos internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Em 1982, foi um dos criadores das Coortes de Nascimento de Pelotas, junto com o pesquisador Fernando Barros. Uma coorte de nascimento é uma metodologia de estudo que acompanha o crescimento de um grupo de pessoas desde o início de suas vidas, possibilitando comparações de valor inestimável. A coorte de Pelotas segue ativa mais de 40 anos depois e é até hoje a maior da América Latina.
Entrar para a Royal Society não é a primeira distinção que o Acadêmico recebe. Membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) desde 2006, Victora é detentor do Prêmio Álvaro Alberto e grau Comendador e Grão-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico. Para esta última ele foi escolhido em 2021, mas recusou recebê-la das mãos de um governo negacionista em saúde, vindo a aceitá-la apenas em 2023. Hoje com 72 anos, o cientista olha para trás com orgulho de sua ciência ter se transformado em políticas públicas para saúde no mundo inteiro.
A notícia de sua nomeação vem num período terrível, porém. Seu estado, o Rio Grande do Sul, enfrenta a maior tragédia climática da história do país e Victora acredita que os estudos nas coortes precisarão levar em conta essa dimensão quando a vida voltar ao normal. Sobre esse e outros assuntos ele conversou numa entrevista exclusiva para a ABC, que pode ser conferida abaixo:
Como foi para o senhor receber essa nomeação?
Sendo bem sincero, eu nunca sonhei em ser Fellow da Royal Society. Eu fiz meu doutorado em Epidemiologia em Londres nos anos 80 e a Royal Society era o nível máximo, nunca pensei em atingir. Fiquei muito contente quando recebi a notícia. Sou apenas o terceiro brasileiro a entrar, o primeiro foi Dom Pedro II e depois foi o Carlos Nobre (risos). Mas há muitos cientistas brasileiros com condições, isso reflete um pouco a importância da ciência brasileira, como conseguimos crescer apesar de todos os problemas, sobretudo no governo anterior. Mas apesar de tudo isso, nós conseguimos colocar a nossa ciência num patamar que não é o mesmo de quando comecei a trabalhar.
O senhor é um dos criadores das coortes de Pelotas, uma iniciativa fundamental que consegue resultados de longuíssimo prazo. No mundo em desenvolvimento são poucas as coortes com mais de vinte anos. Como explicar o sucesso de Pelotas?
Realmente, a maioria das coortes de longo prazo estão em países europeus, principalmente na Inglaterra e nos países escandinavos. No caso deles, ajuda muito o fato de terem informações muito boas em saúde, então conseguem acessar os dados nos sistemas existentes. No Brasil até possuímos boas informações para fatores como mortalidade e nascimento, por exemplo, mas ainda coletamos os dados manualmente, buscando as pessoas, chamando para exames, etc.
Logo que começamos, em 1982, eu fui atrás de outras coortes em países de renda média e baixa e encontrei apenas cinco, a nossa no Brasil e na África do Sul, Guatemala, Filipinas e Índia. Então tive a ideia de criar um consórcio para juntar os dados de todas elas. Os resultados são muito interessantes porque são muito parecidos.
Um fator que ajuda é Pelotas não ser uma cidade muito grande, tem cerca de 300 mil habitantes, isso facilita localizar as pessoas. Acho que numa cidade como Rio, São Paulo ou a própria Porto Alegre seria muito mais difícil. Então o segredo é muita persistência e muito trabalho, mas a cidade ajuda também.
Como fazer com que as pessoas voltem?
No começo a gente conseguia encontrar muita gente. Com dois anos de idade achamos mais de 90%. Hoje, aos 40 anos, nós achamos 52%, o que é bastante razoável, são 3 mil pessoas.
Quando as pessoas se mudam de Pelotas, mas continuam no estado do Rio Grande do Sul, damos a passagem de ônibus. Geralmente elas gostam, porque aproveitam para visitar Pelotas. Quando estão fora do estado é mais complicado, já chegamos a mandar equipe para Santa Catarina, onde tem muitos gaúchos. Elas gostam de participar, é raríssimo alguém se recusar. Existe um certo orgulho de fazer parte da coorte.
É impressionante como tem poucas coortes assim no Brasil, imaginando o tamanho do país e o que precisaria para ser representativo…
No Brasil tem outras coortes em Ribeirão Preto e São Luiz do Maranhão, com as quais temos consórcios para fazer estudos juntos.
Mas Pelotas é interessante porque é uma cidade pobre num estado rico. É uma região que sempre teve uma mortalidade muito alta. Por ser uma cidade pobre num estado rico o IDH é bem na média do país. Também tem uma população negra muito grande, tem a diversidade étnica do Brasil, então é bem representativa.
Como a tragédia das enchentes no RS afeta os trabalhos nas coortes?
Não temos nem como medir isso ainda. Estamos acompanhando, mas há prejuízos consideráveis. As pessoas vem para o nosso centro fazer exames médicos, avaliar doenças crônicas como obesidade e hipertensão, avaliar saúde mental, tudo isso foi muito afetado. Os profissionais contratados para fazer os exames da coorte provavelmente terão contratos suspensos, vamos tentar aguentar o máximo possível. Mas atrapalha em tudo e teremos que retomar depois.
Quando voltar todo mundo para casa e retomarmos o trabalho vamos ter que incorporar novas doenças. As pessoas vão ter diarreia, leptospirose, hepatite, todas essas doenças transmitidas pela água, vamos ter que pensar em como incorporar isso na coorte. No momento nossa coorte mais jovem tem nove anos e temos planos para fazer outra em 2026, espero que até lá os efeitos da enchente já tenham passado. Mas, infelizmente, temo que essa possa não ser a última enchente…
Além de guiar políticas internacionais, seu trabalho também resultou numa mudança de comportamento das pessoas, passou-se a valorizar mais a amamentação. Você enxerga isso acontecendo hoje? É algo espalhado por todos os grupos sociais ou está concentrada mais entre quem tem acesso informação?
Acho que não está concentrado não, é o que mostram os últimos resultados do Enani (Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil). Essa é uma ideia que eu tenho na cabeça, uma hipótese que eu criei, que eu chamo de “equidade inversa”. Isso quer dizer que quando surge um medicamento ou um tratamento, quem adota inicialmente são os ricos, mas depois se espalha pela sociedade, piora a desigualdade no começo e depois equilibra.
A amamentação exclusiva não existia, essa é a minha maior contribuição. E não foi pela coorte, pois não tinha tamanho suficiente. Foi através de um estudo em Pelotas e Porto Alegre, o primeiro a mostrar que a amamentação exclusiva reduzia muito a mortalidade. Depois vieram outros estudos corroborando, o que levou a Organização Mundial da Saúde e a Unicef a mudar as recomendações globais. Só depois disso que o Brasil alterou também.
Você vê impactos na amamentação nesse momento de tragédia no RS?
Acho que não vai ter um grande impacto, não. Um problema que sempre surge em tragédias como essa é que a primeira coisa que se doa é leite em pó. Com toda a boa intenção do mundo, eu sei, mas há um fluxo grande de leite em pó que pode levar ao desmame. Mas não acho que há esse perigo agora, a amamentação já está reconhecida o suficiente para isso não ocorrer.
Uma transformação grande entre a década de 80 e hoje foi que antes existia um problema grande de subnutrição e hoje existe um problema de obesidade. Como você vê a evolução desse problema nas últimas décadas?
Uma coisa interessante que descobrimos quando juntamos os dados internacionais foi o que se tornou o conceito dos mil dias – desde a concepção até o segundo aniversário. Observamos que o ganho de peso nesse período é fundamental para a formação da criança. Mas depois disso o problema praticamente se inverte.
Não é que a criança não precise ser bem-nutrida depois dos dois anos, mas depois dessa faixa se ela ganha muito peso ela corre o risco de se tornar uma criança obesa e depois um adulto obeso. O que observamos é que os dois primeiros anos são chave. Esse novo conhecimento guiou políticas públicas a investir mais na primeira infância, onde o impacto é mais sentido.
Pensando historicamente, me parece curioso como era comum substituir o leite materno no passado. A amamentação é algo tão natural, por que estávamos fazendo tão diferente?
Eu tenho algumas ideias. Acho que a indústria do leite processado, as grandes multinacionais, começaram a promover seus produtos como sendo modernos. A partir dos anos 60, o moderno não era amamentar, isso era coisa de pobre. Então quem tinha dinheiro preferia leite em pó. Isso é um exemplo do que chamamos determinantes comerciais da saúde, como o grande poder econômico piora a saúde para aumentar lucros.
O que aconteceu foi uma grande propaganda do leite em pó que levou a isso. Outro problema foram os ultraprocessados, o leite em pó é o primeiro ultraprocessado que a criança toma na vida, um produto cheio de aditivos. Também os pediatras recomendavam dar água, dar chá, pois achavam que o leite materno não era suficiente, e de preferência já com o leite em pó também.
Outro tema em que você já atuou foi na questão do parto, da quantidade de cesarianas feitas hoje. Está nessa mesma lógica?
Está na mesma lógica sim. Essa de que algo medicalizado e altamente tecnológico, seria melhor que o natural. Obviamente que há muitos casos em que cesariana é necessária e salva vidas. Há lugares onde o nível de cesarianas é muito baixo, então morrem muitas crianças e muitas mães. Mas no Brasil isso está desequilibrado, apesar de ter melhorado.
Há um diferencial social importante também, 90% das mulheres de alta escolaridade fazem cesariana. Mas mesmo nos mais pobres gira em torno de 35%. Ou seja, está alto em todos os setores.
Nós trabalhamos junto com antropólogos que mostram que muitas pessoas mais pobres acham que cesariana é melhor porque os ricos estão fazendo, então deve ser bom. É um exemplo da importância da multidisciplinaridade. Eu lutei muito contra esse excesso de cesarianas no Brasil, mas não consegui grandes sucessos. A vida é assim, há coisas em que temos mais sucesso que em outras.
Você ainda é um pesquisador ativo, quais suas próximas áreas de investigação no futuro?
Eu estou com 72 anos. Já não estou diretamente ligado às coortes, trabalho com alguns dados, mas não muitos. Ajudei a formar uma série de pessoas que assumiram esse trabalho. A maior parte do que ainda faço é em relação às desigualdades socioeconômicas e étnicas em países em desenvolvimento.
Criamos aqui em Pelotas o Centro Internacional de Equidade em Saúde, onde recebemos estudos e dados de todo o mundo. No momento estamos trabalhando muito com crianças zero dose, ou seja, crianças que nunca receberam nenhuma vacina. São crianças de lugares mais remotos e mais pobres ou são de grupos com menos acesso à saúde. Mais de 10% das crianças do mundo estão nessa situação.
Trabalhamos de perto com as Nações Unidas junto a Aliança Global de Vacinação (Gavi) para identificar essas crianças e mudar um pouco esse cenário. Comecei a trabalhar mais com outros lugares que não o Brasil, até porque os problemas nesses outros lugares são maiores. Os dois lugares mais complicados no mundo ainda são partes da África Subsaariana e do sul da Ásia.
Esses lugares ainda não tem uma boa cobertura vacinal de covid-19, como está a situação?
A covid foi complicada, teve uma série de problemas no acesso às vacinas. Os países ricos compraram tudo muito rapidamente, foi mal distribuído. Felizmente a covid hoje em dia é uma doença diferente de 2020, porque essa é a tendência. Não é bom para o vírus matar seu hospedeiro, então numa epidemia inicialmente a virulência é super alta e depois se torna menos letal.
Mesmo em populações não vacinadas?
Mesmo nessas populações. O vírus mudou porque se ele matar as pessoas rapidamente ele não se dissemina. É por isso por exemplo que o ebola não consegue se expandir tanto. Mas a questão da desigualdade em vacinas continua, e se agrava com o fenômeno novo das fake news e dos antivax. Isso é novo, no Brasil não existia, mas dados internacionais mostram que isso está acontecendo também em outros países de renda média.
Isso é uma pena, num país com uma tradição tão grande em vacinas como o Brasil…
Mas está acontecendo, sobretudo nas classes médias e altas, não penetrou muito nos mais pobres. Lembra do que falei da “equidade invertida”? Ela funciona para coisas boas e coisas ruins, como o exagero nas cesariana e os antivax, essas ideias chegam nos ricos antes dos pobres.
E você vê uma evolução nas vacinas em geral nos países pobres?
Acho que evoluiu sim. Claro que a covid atrapalhou, e por dois motivos: porque os sistemas de saúde colapsaram e pelos antivax que desacreditaram as vacinas de modo geral. Mas a tendência é de melhora. A aliança internacional para vacinas investiu muito nesses países, mas a cobertura ainda é abaixo do que gostaríamos.
Estou trabalhando agora como consultor para eles, fazendo análise dos dados. Por exemplo, se você encontra uma criança não-vacinada, os irmãos provavelmente também não são vacinados. A partir daí você procura essas outras crianças também. O Centro de Equidade em Saúde de Pelotas é o maior centro do mundo sobre desigualdades em saúde materno-infantil. Temos bancos de dados com milhões de crianças.
Sempre que estou fazendo uma pesquisa, penso em como ela pode se tornar uma política. Meu objetivo não é só publicar numa revista de ponta, mas ter também um impacto na saúde global. Me orgulho muito que isso tenha acontecido.