Por Tiago da Mota e Silva, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), graduado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero (FCL) e pesquisador em Comunicação desde 2012. É membro do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (CISC). Investiga temas relacionados à Ecologia da Comunicação, conservação ambiental e mudança climática. 

Em 30 de setembro, o biólogo Adalberto Luis Val  esteve no Palácio dos Bandeirantes, recebendo o Prêmio Fundação Bunge, um dos mais prestigiosos na ciência, pelo conjunto de suas contribuições à soluções baseadas na natureza para a agricultura sustentável. Pouco mais de um mês depois, em 4 de dezembro, o professor [e vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências para a região Norte] estava em um flutuante, na Vila do Janauacá, interior do Amazonas, participando de mais uma excursão em campo.

Nascido em Campinas, no interior de São Paulo, Adalberto e sua esposa Vera estão em Manaus, trabalhando no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), há 42 anos. “Eu já vi de tudo por aqui”, relembra. Mesmo assim, viajando com mais outros 17 cientistas, a maioria jovem, na faixa dos 30 anos, o cientista continua se surpreendendo com as descobertas sobre a maior floresta tropical do mundo.

Aos 67 anos, Adalberto escreveu capítulos importantes da ciência da Amazônia. Especializado no estudo de peixes, Adalberto é uma referência sobre a biodiversidade da região, além de ter sido diretor do Inpa entre os anos de 2006 e 2014. Na COP27, no ano passado, esteve na delegação do recém-eleito presidente Lula, no Egito.

Tudo isso faz de Adalberto um militante pela ciência e pela conservação da Amazônia, já há décadas. De lá para cá, defende praticamente as mesmas coisas: desmatamento zero, inclusão social e investimento em ciência. “A gente precisa de uma coalizão política para sinalizar um novo momento para a Amazônia. Uma coalizão social ampla para botar uma moratória na destruição”, opina o pesquisador.

Mesmo com toda sua experiência, a severa transformação da paisagem da Amazônia nesta que foi a mais severa seca de sua história coloca novos problemas para o cientista e para sua equipe. Os animais são capazes de se adaptar a essa nova situação? Como a floresta está se transformando?

Nessa entrevista, Adalberto compartilha algumas de suas inquietações para este novo momento e pondera como a ciência deve responder a ele: “Podemos usar a ciência para superar os problemas do Brasil, como este da seca extrema que estamos vivendo. Mas para isso, ela precisa estar aberta e flexível às demandas sociais do país”.

Já estamos no último dia de expedição. Qual é seu o balanço do que foi feito?

Nós tínhamos planejado um conjunto de experimentos que iria resultar em 10 ou 12 trabalhos científicos. Mas a gente percebeu que há uma interação muito grande entre vários experimentos que a gente tinha desenhado e provavelmente vamos ter trabalhos saindo dessa expedição por um bom tempo, mais do que imaginávamos.

O que mais me alegrou foi poder ver a relação de jovens cientistas brasileiros com jovens cientistas estrangeiros. Eu acho que eles têm uma visão diferente do que cientistas de gerações anteriores. Depois de 45 anos andando pela Amazônia, eu vi de tudo por aqui, mas ainda assim eles conseguem me surpreender com coisas novas. E isso me deixa muito entusiasmado.

Realmente, a maioria da equipe desta viagem é formada por cientistas na faixa dos 30 anos…

Isso. Se a gente quiser trabalhar no sentido de ter uma integração regional no país, precisamos que nossos jovens  o conheçam, nos seus rincões. É fantástico você fazer experimentos em laboratórios, com a comodidade de ter tudo que é necessário à mão. Mas é completamente diferente vir para o campo e lidar com o dia a dia. Ou seja, é muito simples a gente levar o objeto de estudo para o laboratório, mas é muito desafiador levar o laboratório para onde o objeto de estudo está. Isto nos impõe formas novas de pensar.

E que formas seriam essas?

Isso me remete à formação de cientistas no Brasil diante dos desafios que a gente tem no país. Precisamos pensar em ter as demandas da sociedade respondidas pela ciência de acordo com cada uma das regiões. Portanto, a pós-graduação não pode ter um desenho único, um processo único de avaliação que reduz os programas às notas conforme aquelas características desejáveis dentro do é pensado por meia dúzia de pessoas. Não pode ser assim. A gente precisa proporcionar mais experiências desse tipo aos jovens que estão se formando. A lição que se tira de uma expedição como essa, além é claro do conjunto de dados coletados, é a de como podemos usar a ciência para superar os problemas do país, como este da seca extrema que estamos vivendo na Amazônia. Mas para isso, a ciência precisa estar aberta e flexível para se adaptar às demandas sociais do país.

Adalberto Val trabalha com demais cientistas durante expedição. Da direito para esquerda_ Waldir Heinrichs, Jefferson Silva e Maria de Nazaré de Paula

E quais deveriam ser as prioridades estratégicas da ciência que é feita aqui, na Amazônia?

Está muito claro que o conjunto de informações sobre biodiversidade que a gente produz aqui precisa ser ampliado. E isso vai muito além de contar quantas espécies existem ou como elas vivem. Novas perguntas precisam ser feitas. Quais são as informações que as espécies escondem em seu DNA por conta do processo evolutivo que elas tiveram? De que forma essas informações podem ser usadas para sobreviver a ambientes extremos como esse que acabamos de passar? Como nós podemos usar essas informações para gerar qualidade de vida? A gente precisa pensar em ciência em termos de ecossistema de inovação, especialmente na Amazônia. Eu penso que alguns conceitos contemporâneos são interessantes nesse sentido. Um deles é a Saúde Única. Até hoje, nós fomos tratando os problemas conforme eles foram surgindo, mas as doenças vão se avolumando em velocidade crescente. Este não me parece ser o melhor caminho. Nossos povos originários sabiam fazer isso, nossos avós sabiam fazer isso, que é buscar o equilíbrio entre a qualidade ambiental e a vida que se leva, para evitar que novos problemas surjam.

Outra prioridade: está mais do que na hora de migrar, de fato, para processos de produção de energia diferentes. O Brasil conta com uma costa marinha fantástica capaz de produzir energia eólica aos quilos. O petróleo faz mal para a saúde! Não é mais uma questão econômica pura e simples. É lamentável, por exemplo, a gente estar utilizando esse barco gastando essa quantidade de combustível quando a gente poderia ter um barco aqui perfeitamente mantido por energia solar.

Um terceiro ponto envolve recordarmos que hoje vivem na Amazônia brasileira cerca de 25 milhões de pessoas. Estamos falando de mais do que muitos países no mundo. Essa população tem demandas, tem anseios, busca qualidade de vida… Temos um vasto conjunto de pessoas marginalizadas por conta do processo de integração da região, que ainda não faz parte da agenda nacional. Portanto, temos que dar o próximo passo da ciência, especialmente em regiões tão afastadas dos grandes centros: transformar as informações que a gente tem em novas tecnologias apropriadas para essas regiões que promovam bem-estar. Não adianta trazer para cá tecnologias desenvolvidas em outras partes do mundo. Precisamos transformar a informação científica que produzimos aqui em soluções desenhadas especificamente para nós. Para se chegar nisso, é necessário um novo desenho institucional para a ciência brasileira, penso que até mesmo com novas instituições de ciência e tecnologia na Amazônia.

Doca de onde parte a expedição científica, no Tarumã, em Manaus. Ao fundo, é possível observar um banco de areia onde antes só havia rio
Base Flutuante do ICMBio, em Anavilhanas, onde a equipe de cientistas montou um laboratório improvisado

Depois de 45 anos de militância, eu vejo que o senhor ainda é bastante entusiasmado. Que novas contribuições você espera dar para Amazônia?

Primeiro, a gente precisa lutar pela ampliação e por apoio à ciência na Amazônia. Nós estamos falando em não mais do que 3% de todo o investimento do país em ciência e tecnologia para as instituições da região, fortalecendo sua capacidade produtiva. Mas, além da infraestrutura, precisamos também de massa cinzenta. Um não adianta sem o outro. Portanto, quero formar gente boa e ter bons laboratórios para a produção. Isso não pode ficar a reboque de instituições do exterior.

Viajando esses 14 dias pelo Rio Negro e pelo Solimões, o que chamou mais a sua atenção nas transformações da paisagem durante esta seca histórica?

Eu resumo em uma palavra: resiliência. É fantástica a resiliência desse sistema. Você vê lagos secando e, ainda assim, lá a diversidade aquática está representada. Tem um sisteminha ali, isoladinho, de repente brota alguma plantinha lá e ele vai se recompondo. É um sistema super dinâmico. E é bom que a gente entenda que, por ser um sistema super dinâmico, ele não se manterá igual. Uma das coisas que eu sempre disse é: não espere que as coisas sejam sempre iguais ao longo do tempo. Elas não foram sempre as mesmas no passado, tendo em vista como a Amazônia evoluiu desde o começo do levantamento dos Andes, com modificações intensas no sistemas. Quando temos picos de desafios como este que estamos vivendo com a seca, isso impõe um novo momento para os ecossistemas, com reflexos para o futuro. O sistema irá se adaptar para este novo momento. Se houvesse uma única espécie de árvore no sistema, já era, teria desaparecido. Se houvesse uma única espécie de peixe, talvez a mortalidade que a gente teve aqui teria desaparecido com ela. Mas a Amazônia não é assim. Aqui há uma diversidade imensa que explica, em parte, essa imensa resiliência.

Quanto mais biodiverso, mais resiliente é o sistema, não? Daí a importância de zelar por essa biodiversidade…

Eu sempre gosto de usar o verbo ‘conservar’. Eu faço uma diferenciação entre preservar e conservar. Preservar é construir um santuário, tornar algo intocável, isolado. Conservar é respeitar, mas também querer saber como funciona. É o aprender com o outro, com suas necessidades. A Amazônia precisa de estratégias de conservação para que possamos aprender com os mais de 80% que ainda restam dela.

Cientista avalia peixes recém capturados, em busca de parasitas

Em um exercício hipotético, o que seria um marco de uma virada de estratégia para a Amazônia e sua conservação?

Algumas coisas. A primeira delas é uma ênfase em um processo de inclusão social que respeite a diversidade dos povos da região. Eu ouvi de um líder indígena a alguns anos atrás que disse o seguinte: “Eu não quero ser incluído. Vocês vêm aqui, derrubam a floresta, contaminam as águas, namoram as meninas da aldeia e deixam as crianças aqui, e depois falam em inclusão. Eu não quero ser incluído numa situação dessas”. Precisamos diagnosticar adequadamente o que inclusão social é para a Amazônia.

O segundo ponto: a gente precisa ter uma moratória de destruição. Não é possível mais ser conivente com uma estradinha sendo aberta aqui, com dez hectares sendo perdidos ali, ou mesmo com explorar petróleo na foz do Amazonas. Junto dessa moratória, é preciso ter investimentos significativos na região. Não é mais possível que uma região que representa 60% do território brasileiro e 10% do PIB receba investimentos da ordem de 5% do governo federal. O orçamento de uma nação é a sua expressão política máxima. O maior marco de uma virada é o orçamento. Por enquanto a gente não viu isso. A gente precisa de uma coalizão política para sinalizar um novo momento. Uma coalizão social ampla para botar uma moratória na destruição. E imediatamente começar a trabalhar com inclusão, com essa ressalva de que ela não seja homogeneizante.

Quanto as pesquisas que têm sido feitas aqui, o que o senhor tem notado como levantamentos interessantes que possivelmente para novas perguntas sobre a Amazônia?

Medimos alguns parâmetros que indicam estresse dos animais. Os peixes tanto de lá quanto de cá indicaram uma sensibilidade muito alta à temperatura. Então, temos aparentemente um estresse térmico relacionado à seca, somado a um viés de competição. Porque o sistema encolheu, nós temos muitos animais em um lugar só e que passam a competir mais por recursos. Outra das consequências disso são as taxas de parasitismos que vimos aqui, os animais estão muito parasitados. Aparentemente, por conta da temperatura também, houve um gasto energético maior para manter a homeostase iônica nos animais. Isso é muito interessante porque a regulação iônica já é um processo energeticamente muito caro, usa uns 20% da energia que o peixe adquire da alimentação.

Tudo que você menciona indica que a Amazônia está passando por transformações. Por um lado, a resiliência do sistema indica que não é preciso ter um discurso catastrófico em relação à floresta. Por outro lado, é preciso considerar o quanto essas transformações nos impactam…

Sim, precisamos aprender com o mundo em transformação. A questão é que até aqui a velocidade biológica, que é super lenta ao longo do tempo, foi acompanhada pela velocidade da evolução das tecnologias humanas, que até a Revolução Industrial também foi super lenta. Só que desde então a tecnologia se tornou muito veloz, causando grandes impacto que não mais observam o tempo biológico. Precisamos entender com a nossa inteligência e com o nosso coração que estamos vivendo em um mundo em transformação.


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