Leia a coluna da jornalista Míriam Leitão, publicada em O Globo, em 1/10:
A Agência Nacional de Águas (ANA) declarou crítica a situação do rio Xingu, que abastece a Usina de Belo Monte e isso pode vir a prejudicar a produção de energia. Belo Monte foi a mais polêmicas das grandes usinas hidrelétricas construídas na Amazônia. Ela passou por cima de direitos indígenas, direitos sociais, afetou o meio ambiente, deixou sequelas não resolvidas até hoje.
Quando se debatia se a usina deveria ou não ser construída, conversei com muita gente de um lado e do outro, todo tipo de especialista. O cientista [e membro titular da ABC] Carlos Nobre me disse na época que, durante o período da existência de Belo Monte, o regime hídrico daquela região se alteraria muito por causa da mudança climática. Outros climatologistas disseram isso. O alerta era que se construiria uma usina muito grande, a um custo social, econômico, fiscal muito alto, que poderia vir a não produzir o volume de energia que se estimava por falta de água. É exatamente esse dia que estamos vivendo agora.
Pode-se dizer que isso acontece por causa da seca que acomete a região agora. Mas não é uma questão momentânea, as secas ficarão mais frequentes.
(…)
“Se a gente pode tirar uma lição de tudo isso é a seguinte: seja na produção de energia, seja em qualquer obra de infraestrutura daqui para diante, é preciso ouvir os cientistas e colocar na equação da decisão a realidade das mudanças do clima.
(…)
O Brasil precisa tomar decisões levando a sério o que os cientistas estão dizendo, não achando que eles estão com algum viés antidesenvolvimentista. Não se pode ignorar no cenário dos próximos anos e décadas o que dizem os cientistas do clima. As mudanças climáticas têm que nortear as decisões econômicas e as decisões energéticas e todas as outras decisões de construção da infraestrutura do país.
O físico e Acadêmico Paulo Artaxo participou de reuniões em Brasília para discutir a resposta do País às mudanças climáticas. Leia a matéria do Jornal da USP publicada em 20 de setembro:
O professor Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), deu a aula mais importante da sua vida nesta semana. Ele foi o único cientista convidado a participar de uma reunião de emergência convocada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na terça-feira (17), no Palácio do Planalto, em Brasília, para discutir o enfrentamento da crise climática no Brasil. Além de Lula, estavam presentes na sala os presidentes das duas casas do Congresso Nacional (Rodrigo Pacheco e Arthur Lira) e do Supremo Tribunal Federal (Luís Roberto Barroso), além do procurador-geral da República (Paulo Gonet), vários ministros de Estado e outras autoridades do mais alto escalão da política nacional.
“Isso nunca tinha acontecido, de um cientista ser convocado pelo presidente para uma reunião com os Três Poderes da República. Então, isso é muito bom; é o governo se abrindo para ouvir a ciência”, relatou Artaxo ao Jornal da USP, no dia seguinte ao da reunião. Vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), coordenador do Centro de Estudos Amazônia Sustentável (Ceas) da USP e referência internacional em pesquisas sobre mudanças climáticas, Artaxo fez uma apresentação de 22 minutos, com 22 slides, sobre a gravidade da crise climática global, os riscos que ela representa para o Brasil e o que pode ser feito a respeito disso. “Nas minhas sugestões eu deixei muito claro o seguinte: ‘Isso é o que a ciência tem a dizer sobre o que precisa ser feito. Quem toma as decisões políticas sobre o que vai ser feito, e como isso vai ser feito, são vocês’.”
Artaxo alertou que o mundo está numa trajetória de aquecimento da ordem de 3 a 4 graus Celsius até o fim deste século — bem acima do limite de segurança de 1,5 a 2 graus Celsius previsto no Acordo de Paris —, e que isso terá consequências gravíssimas para o Brasil. O agronegócio e a matriz energética do País são especialmente vulneráveis, já que dependem intrinsicamente de fatores climáticos para a sua estabilidade.
“A mudança climática não vai afetar Suécia, Noruega, Canadá e Brasil igualmente. Os países tropicais vão ser os mais prejudicados, incluindo nós”, destacou Artaxo. “A saúde humana e a saúde dos ecossistemas vão ser fortemente impactadas. Não há, hoje, qualquer dúvida com relação a essa questão.”
O professor conta que recebeu uma ligação da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Marina Silva, na tarde de domingo, 15 de setembro, convidando-o a participar de uma reunião fechada do conselho político de Lula na manhã do dia seguinte, às 9 horas, no Palácio do Planalto. Estariam presentes o vice-presidente da República, Gerado Alckmin, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e outros integrantes do núcleo duro do governo.
Artaxo não titubeou: pegou o primeiro voo disponível para Brasília, fez sua apresentação e voltou depois do almoço para São Paulo, com a sensação de missão cumprida. Naquela mesma noite, porém, o telefone tocou de novo. Era a ministra Marina Silva novamente, convidando-o — a pedido de Lula — para voltar a Brasília e repetir sua apresentação na reunião emergencial que o presidente estava convocando para o dia seguinte, com os representantes dos Três Poderes. Assim foi feito.
As imagens da reunião, disponíveis no YouTube (veja o vídeo no final da matéria), lembram uma daquelas cenas clássicas do cinema hollywoodiano, em que autoridades políticas sentadas ao redor de uma grande mesa assistem perplexas a um cientista apresentando gráficos sobre uma catástrofe que está por vir. Do ponto de vista científico, Artaxo não disse nada de novo: mostrou os mesmos dados e argumentos que já apresentou em diversas palestras sobre o assunto nos últimos anos. A diferença é que, dessa vez, a mensagem foi entregue diretamente aos ouvidos e olhos das cabeças mais poderosas do País.
O fato de ele ter sido convocado de volta para a reunião de terça-feira indica que a mensagem que Artaxo entregou ao núcleo do governo no dia anterior surtiu efeito. “Obviamente, a ficha caiu”, avalia ele.
As reuniões foram convocadas em resposta ao agravamento da crise climática no País, que passa por uma sequência calamitosa de enchentes, secas, ondas de calor e queimadas — que podem ter origem criminosa, mas ainda assim são turbinadas pelo tempo seco e quente, que favorece a propagação das chamas. Outro contexto importante é que o Brasil se prepara para hospedar a trigésima Conferência das Partes (COP 30) da Convenção do Clima da ONU, no fim do ano que vem, em Belém (PA), que será ponto de partida para a reformulação das metas do Acordo de Paris.
Lula abriu a reunião de terça-feira reconhecendo que o Brasil não estava “100% preparado” para lidar com a emergência climática. “O que nós estamos percebendo, depois do que aconteceu no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, é que a natureza resolveu mostrar as suas garras. Ela resolveu nos dar uma lição e dizer o seguinte: ou vocês cuidam corretamente de mim ou eu não sou obrigada a suportar tanta irresponsabilidade, tanta coisa errada e equivocada que os seres humanos estão fazendo”, disse o presidente. “Esta reunião aqui é para a gente fazer uma revisão no conceito que cada um tem sobre a questão climática no Brasil. Ela está pior do que em qualquer outro momento.”
Após a reunião, o governo anunciou a liberação de R$ 514 milhões para combate aos incêndios no País e reiterou sua intenção de criar uma Autoridade Climática para coordenar as ações de enfrentamento da crise do clima no Brasil, entre outras medidas.
Alertas e recomendações
O primeiro item na lista de recomendações apresentada por Artaxo é zerar o desmatamento, “legal e ilegal”, em todos os biomas do País, já que isso representa a maior parte das emissões nacionais de gases do efeito estufa (48% das emissões estão associadas ao desmatamento e 27%, à agropecuária). O Brasil é o quarto maior emissor per capita de gases do efeito estufa no mundo e o sétimo colocado em emissões totais, segundo um relatório de referência do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. “Então nós temos, sim, culpa no cartório”, destacou o físico.
Também é necessário, segundo Artaxo, reforçar o combate a crimes ambientais e acelerar fortemente o processo de transição energética, substituindo o petróleo por fontes de energia limpa. Ao mesmo tempo, completou ele, é preciso implementar medidas urgentes de adaptação às mudanças climáticas, já que muitos dos seus efeitos são inevitáveis no curto e no médio prazo.
Um ponto fundamental para a elaboração e implementação de todas essas ações, segundo o professor, é o fortalecimento das instituições brasileiras de pesquisa e defesa do meio ambiente, que sofrem com a falta de recursos humanos e financeiros — entre elas, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), além de Ibama e ICMBio. “Precisamos investir na ciência de adaptação e mitigação climática para encontrar as melhores saídas para o Brasil”, afirma Artaxo.
Entrevista ao Jornal da USP
Artaxo conversou com o Jornal da USP na manhã de quarta-feira (18), em sua sala no Instituto de Física da Universidade. Veja abaixo alguns destaques adicionais da entrevista.
O senhor falou recentemente, em uma palestra no USP Pensa Brasil, que a ideia de limitar o aquecimento global a 1,5 grau Celsius “só existe na cabeça de diplomatas”. O que significa isso?
O que eu quis dizer é que a diplomacia está muito atrasada em relação à realidade climática do planeta. A diplomacia trabalha com os acordos climáticos existentes, que refletem os desejos de uma parcela dominante dos países, mas que ignoram a realidade. Então, enquanto fica essa lenga-lenga, nós vamos ultrapassar, já em 2024, esse limite de 1,5 grau Celsius, que não deveria ser ultrapassado até o fim do século. Isso diz tudo.
Dois graus de aquecimento ainda é um limite factível de ser cumprido?
Não, dois graus não é factível. Estamos emitindo 62 bilhões de toneladas de CO2-equivalente (gases do efeito estufa) a cada ano e a transição energética está sendo feita de uma maneira extremamente lenta. A gente talvez estabilize as emissões globais lá por volta de 2030 — o que significa continuar emitindo, talvez, algo em torno de 70 a 75 bilhões de toneladas ao ano —, e isso já resultará num aquecimento da ordem de três graus. Isso é oque todos os modelos climáticos indicam que vai acontecer. Isso, sem contar os feedbacks positivos, como o derretimento do permafrost (solos congelados no Hemisfério Norte, que contêm enormes quantidades de gás carbônico aprisionado) e o colapso das florestas tropicais, que não são incluídos no cálculo desses modelos climáticos. Importante frisar isso.
Ou seja, dependendo do que acontecer com esses feedbacks positivos, esse processo de aquecimento global ainda pode acontecer de forma muito mais rápida e intensa?
Sim, não há dúvida disso. Não adianta a gente dourar a pílula; a nossa função como ciência é analisar os dados científicos. Os modelos climáticos não levam em conta o colapso da floresta amazônica, e trabalhos recentes indicam que esse colapso pode começar antes de 2050. Isso vai liberar parte dos 120 bilhões de toneladas de carbono que estão armazenados na Amazônia, e esse carbono vai agravar ainda mais os cenários apresentados pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).
Por isso a sua ênfase, também, na questão da adaptação, certo?
Isso mesmo. Sem adaptação, esquece. Adaptação é para ontem. O clima já mudou e nós temos que nos adaptar a isso, em todos os setores: na saúde, na indústria, na agropecuária e assim por diante; tendo a redução das desigualdades sociais como um aspecto central desse processo. Veja o que aconteceu no Rio Grande do Sul e imagina um evento desses acontecendo a cada quatro ou cinco anos. Em São Paulo, o número de dias em que chove mais do que 100 milímetros se multiplicou por quatro nos últimos 50 anos; então você tem que redimensionar toda a rede de drenagem hídrica da cidade se quiser evitar inundações, com impactos sociais gigantescos para a população mais pobre.
O senhor disse que estamos caminhando para um aumento de três graus ou mais até o fim deste século. Se essa trajetória se mantiver, quais serão as consequências disso?
As consequências estão descritas no relatório do IPCC. Os modelos climáticos até agora, na verdade, têm até subestimado os impactos reais da mudança do clima. Basicamente, o Brasil vai se tornar um país muito mais seco, particularmente na região central. O Nordeste brasileiro, que hoje é uma região semiárida, vai se tornar uma região árida, possivelmente inabitável; e uma parte da floresta amazônica vai ultrapassar um tipping point (ponto de não retorno) da sobrevivência ecológica do ecossistema. Na região Sul, por outro lado, vai chover muito mais. Esse é o caminho que nós estamos trilhando, e provavelmente será o futuro do nosso Brasil, porque a chance de reverter esses processos está ficando cada vez mais remota.
Essa aridez na região central deverá ter grandes impactos na agricultura…
Já está tendo. Já estamos observando uma redução da produtividade da agricultura brasileira no Brasil central, e isso só tende a aumentar nos próximos anos. Então, o Brasil vai ter que repensar o seu modelo de desenvolvimento, porque um Brasil tão dependente do agronegócio pode não ser viável já nos próximos anos. Isso tem que mudar. Precisamos acabar com o desmatamento, legal e ilegal, e para isso precisamos reavaliar, também, a questão do Código Florestal, que foi desenhado numa época anterior a essa emergência climática que estamos vivendo. Permitir que se destrua 50% de qualquer propriedade rural no Cerrado não tem mais cabimento; isso precisa ser olhado de novo.
São fatos difíceis de serem assimilados…
São mesmo; mas tudo o que eu estou dizendo aqui está baseado em ciência. Nada disso é achismo, nada disso é possibilidade; são questões concretas da ciência, indicando que o modelo de desenvolvimento que a gente tem, com altíssimas emissões de gases do efeito estufa, é insustentável a curto prazo. Ponto. Isso vai ter que mudar, na marra ou de uma maneira organizada. Se a gente quiser mudar essa história, temos que acabar com o desmatamento e caminhar no sentido de acabar com a exploração de petróleo, principalmente porque não precisamos dele. Temos um potencial de geração de energia eólica e solar monstruoso, e temos o maior programa de biocombustíveis do planeta. Não precisamos do petróleo; e eu enfatizei muitas vezes na reunião a possibilidade de transformar o Brasil em uma potência energética renovável.
Faz quase 30 anos que a Convenção do Clima faz reuniões anuais e negocia acordos internacionais, mas a situação continua piorando. Por que continuar fazendo essas reuniões e qual é a importância da COP 30, além do fato de ela ser no Brasil?
Eu acho que a COP 30 vai ser uma reunião especial porque nesses últimos três, quatro anos nós vimos um aumento gigantesco na ocorrência de eventos climáticos extremos. Ou seja, está cada vez mais claro que o caminho que estamos trilhando não é favorável para os negócios, nem para os governos nem para a população. Isso não acontecia 20 anos atrás. Agora mudou a trajetória, eu acho; não tem mais como ignorar o problema. Não tem mais como ignorar que a gente precisa se adaptar a essa nova realidade e trabalhar para reduzir emissões, para evitar um colapso do sistema climático global.
O físico e membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Paulo Artaxo, um dos maiores especialistas em mudanças climáticas do Brasil, participou de uma reunião em Brasília, no dia 17 de setembro, com as principais autoridades dos Três Poderes. Estavam presentes o presidente da República, os presidentes das duas casas legislativas, ministros de Estado e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Durante cerca de meia hora, o Acadêmico apresentou a questão das mudanças climáticas e seus impactos particulares no Brasil, que está situado numa região muito vulnerável e verá aumentar fenômenos extremos de secas, enchentes e aumento do nível do mar. Artaxo frisou que o fato de o país ter uma matriz energética fortemente dependente de hidrelétricas é um fator positivo para pensar a descarbonização, mas também é uma vulnerabilidade num cenário de mais secas.
Outros riscos estão nos impactos das estiagens no agronegócio, principal motor da economia nacional, e a possibilidade do nordeste se tornar desértico. Mas o país tem também vantagens comparativas, além da matriz energética limpa, temos um potencial eólico, solar e de biocombustíveis enorme. Outra área que pode ser explorada é o mercado de carbono, que pode gerar divisas importantes se o país parar de destruir suas florestas.
Nesse ponto, Artaxo recomendou que o país precisa eliminar o desmatamento em todos os seus biomas até 2030, incluindo os desmatamentos legais. Para isso, é preciso fortalecer a fiscalização para coibir a ação de criminosos, principal vetor dos atuais incêndios. Em outro ponto, Artaxo enfatizou que é preciso cessar a exploração de petróleo e trabalhar em políticas de adaptação a uma crise que já chegou.
Para isso tudo, o Acadêmico defendeu reforçar o orçamento de órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Centro Nacional de Prevenção, Controle e Combate aos Incêndios Florestais (PrevFogo), o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“O que fiz foi apresentar a crise climática como um todo, primeiro para lidar com os incêndios, mas também com uma visão de longo prazo. Dentre as propostas, algumas foram mais polêmicas, como a eliminação do desmatamento legal e da exploração de petróleo no Brasil. Mas outras foram endossadas com unanimidade, como o aumento das penas para crimes ambientais. Acredito que o retorno das autoridades foi positivo, mas teremos que seguir acompanhando. A ciência não faz políticas públicas, ela só pode fazer recomendações”, afirmou Artaxo.
*Texto originalmente publicado na Folha de S. Paulo em 14/9:
A ciência climática do mundo inteiro não previa uma aceleração tão intensa das mudanças climáticas como temos visto recentemente. No começo de 2023, os cientistas previram um El Niño de grande intensidade, com temperaturas chegando a 1,3°C acima dos níveis pré-industriais. Mas ninguém esperava que as temperaturas globais fossem explodir e ficar 1,5°C mais quentes.
Com exceção de julho de 2024, estamos desde junho de 2023 vivendo temperaturas acima de 1,5°C. O último mês de agosto foi o mais quente já registrado. A Terra só viu algo parecido no último período do interglacial, 120 mil anos atrás.
A consequência desses 14 meses de temperatura alta, incluindo os recordes de temperatura dos oceanos, é o aumento dos eventos climáticos extremos. Mas eles não cresceram devagarzinho ou de uma forma linear. Eles cresceram exponencialmente, como a ciência previu. E é isso que está acontecendo no Brasil e no mundo inteiro, com ondas de calor, seca, chuvas intensas e incêndios florestais.
O Brasil está pegando fogo. Amazônia, Pantanal, Cerrado e estado de São Paulo queimando, e com 60% da área do Brasil embaixo de densa fumaça. Situação de calamidade e de emergência. Temos 2.848 cidades brasileiras em alerta para baixa umidade do ar, e milhares de cidades com péssima qualidade do ar, muito acima dos padrões recomendados pela legislação brasileira. Em 2024, já temos 205.815 focos de incêndios destruindo nossos ecossistemas, uma alta de 144% em relação a 2023, que já foi um ano de seca forte. Queimadas sempre ocorreram no País ao longo de pelo menos os últimos 30 anos, e elas eram fruto do desmatamento para abertura de novas áreas agrícolas e para pecuária no Cerrado e na Amazônia. Mas 2024 será lembrado como o ano em que esta questão superou os limites. A situação pode ser caracterizada como uma “pandemia” de incêndios florestais.
Estamos enfrentando a maior seca da história no Brasil e aumento drástico da temperatura. Importante salientar que não há registros de raios na região neste agosto e setembro, portanto estes incêndios são todos provocados pelo homem, sem autorização legal, já que o governo suspendeu todos os incêndios pré autorizados. Ou seja, são incêndios criminosos. É fundamental a proibição completa do uso do fogo na agricultura brasileira.
São Paulo esteve esta semana no mapa da grande cidade mais poluída do mundo, por causa da fumaça dos incêndios sendo transportada a longa distância. Ao longo do caminho da Amazônia ao Sul do Brasil, há milhares de cidades, com seus milhões de habitantes expostos a níveis perigosos de poluição do ar.
É fundamental que o governo dê uma resposta sólida à sociedade, de ações concretas para que eventos como este não se repitam. Isso envolve uma série de ações que deveriam ter sido tomadas tempos atrás, pois a prevenção é a melhor estratégia em eventos como estes.
O presidente Lula anunciou nesta semana a criação do Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que terá 11 ministérios, além da participação de estados, municípios, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A sociedade brasileira espera que não seja somente mais um comitê multiministerial sem ações concretas para acabar com queimadas em nosso país. Precisamos reforçar em muito o sistema PREVFOGO do Ibama, e a articulação com estados e municípios, que estão mais próximos do problema. O combate ao fogo exige ações estruturais que envolvem os 3 poderes, estados e municípios.
Para enfrentar o crime organizado, que está na origem de muitos destes incêndios, é necessária uma ação concentrada do Ministério da Justiça. Isso envolve a criação de mutirões de agentes policiais federais e estaduais, atuando no combate ao crime organizado. O arcabouço legislativo precisa ser melhorado, pois as autorizações para queimadas são dadas pelos governos estaduais, muitos deles em mãos de governos que incentivam desmatamentos e queimadas. No próprio congresso nacional, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) trabalha pelo afrouxamento das regras do Código Florestal. Trabalha também contra a proteção dos mananciais, que são críticos na regulação do sistema hidrológico.
Lula também anunciou recentemente a criação do Estatuto Jurídico da Autoridade Climática, e um comitê técnico científico para guiar as medidas de combate à Mudança do Clima. Com isso, Lula pretende implementar estratégias baseadas em Ciência, e não em interesses políticos de governadores ou prefeitos da região.
Estamos observando uma forte aceleração das mudanças climáticas tanto no Brasil como em todo o planeta. Vimos que 2023 foi o ano mais quente dos últimos 125.000 anos. A seca na Amazônia em 2023 foi a mais forte em mais de cem anos, e a seca de 2024 promete ser tão forte quanto a de 2023. Estamos observando chuvas anormalmente intensas de modo muito mais frequentes. Estes eventos climáticos extremos trazem prejuízos enormes à população, principalmente a de baixa renda, e aos ecossistemas. Não por acaso, danos ambientais – como qualquer sorte de dano – prejudicam sempre os mais pobres.
Em julho de 2024, tivemos recordes seguidos de dias mais quentes da história. Com a atual exploração de combustíveis fósseis, estamos indo para uma trajetória de aquecimento global de 3 graus Celsius. Isso vai fazer que possamos ter saudades de 2024, já no futuro próximo. É fundamental o Brasil ter coerência no planejamento de seu futuro. Nosso País é um dos maiores produtores de petróleo do planeta, e planeja explorar petróleo até na foz do Amazonas. O governo anunciou que pretende asfaltar a rodovia BR319 (Manaus-Porto Velho), que vai rasgar uma parte da Amazônia pelo meio. São ações que vão na contramão das ações necessárias para mitigar emissões de gases de efeito estufa e proteger o ecossistema amazônico.
O planeta está caminhando para um “ponto de não retorno” climático, e um programa de Estado brasileiro de longo prazo é necessário para nos adaptarmos ao clima que já mudou e que vai mudar ainda mais nos próximos anos e décadas. E temos que atuar internacionalmente para acabar com a exploração de combustíveis fósseis, que é a raiz do problema.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Referência internacional em estudos sobre aquecimento global, o climatologista Carlos Nobre está apavorado. Em entrevista ao Estadão, ele conta que a crise climática explodiu um pouco antes do que os próprios cientistas previam. Tudo indica que 2024 deve bater mais um recorde de temperatura.
As ondas de calor e as secas intensas assolam o planeta. O Brasil arde em chamas – já são mais de 5 mil focos de incêndio em todo o País. Se em maio o Rio Grande do Sul ficou quase inteiro debaixo da água, em setembro São Paulo sufoca sob uma espessa camada de poluição.
Nobre construiu grande parte da carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e também foi diretor do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), ambos federais. Para ele, todos os biomas brasileiros estão severamente ameaçados e alguns deles, como o Pantanal, podem até mesmo deixar de existir em algumas décadas.
Primeiro brasileiro a integrar o grupo Planetary Guardians (ou Guardiões do Planeta), que reúne pesquisadores para estudar a catástrofe ambiental, ele vê diferenças entre as chamas que se espalham e o que é registrado em outras partes do mundo, como Estados Unidos, Canadá e Europa.
Como não há recorrência de raios, segundo os especialistas, a origem do fogo é criminosa. “Entre 95% a 97% são causados pelo homem.” Para dar conta disso, a resposta do poder público precisa melhorar: mais brigadistas, mais investigação policial, de forma a desmobilizar o crime organizado, e também tecnologia para detectar os focos. “É uma guerra e temos de começar a combatê-la.”
A maior seca da história do Brasil afeta 1.400 cidades em nível extremo ou severo. Esse período de estiagem chegou mais cedo, como um exemplo de mudança climática, que é causada por um conjunto de fatores, começando pelo aquecimento global.
O mundo registrou, em 2024, o mês de agosto mais quente da história. E, dos últimos 14 meses, 13 registraram temperatura média 1,5 ºC mais quente do que o período antes da era industrial.
O pesquisador Giovanni Dolif, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), diz que tudo indica que a alta na temperatura vem para ficar.
“E mais grave do que isso: nós brasileiros estamos sentindo um aquecimento acima dessa média global. Nesse inverno, o trimestre junho, julho e agosto teve em São Paulo, por exemplo, dois graus acima da média”, afirmou.
“Nós atingimos a temperatura mais alta que o planeta já enfrentou desde o último período interglacial, 120 mil anos atrás”, destacou o climatologista Carlos Nobre, um dos cientistas que alertaram sobre as consequências das mudanças climáticas.
Nesta segunda-feira (9), São Paulo registrou a pior qualidade do ar do mundo, segundo o site suíço IQAir. Em entrevista ao Estúdio CBN, José Marengo, climatologista e meteorologista coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) explica por que a metrópole obteve esse resultado.
Marengo explica que, neste momento, os moradores de São Paulo estão expostos a fumaça e fuligem, provenientes dos incêndios que afetam não apenas o estado de São Paulo, mas também o Centro-Oeste e a Amazônia. Ele explicita que esses poluentes chegaram à capital paulista transportados pelos ventos.
‘Bom, é uma mistura dos dois, porque muitos destes, são dos incêndios no estado de São Paulo, e dos incêndios que vem do Centro-Oeste ou da Amazônia, todos são transportados, podemos dizer, pelos ventos. Os ventos estão trazendo todo esse tipo de poluição, tanto da cinza como material mesmo, de fumaça, que é realmente perigosíssimo’, explicou.