No dia 9 de maio, a última sessão plenária da Reunião Magna da ABC 2024, realizada no Museu do Amanhã, contou com apresentações de Antônio Luiz Pinho Ribeiro (UFMG), Helder Nakaya (USP) e Ana Estela Haddad (USP).
IA em Saúde: da invenção à implementação
Antônio Luiz Pinho Ribeiro é médico, com especialização em Clínica Médica e Cardiologia. É doutor em Medicina pela UFMG, de cuja Faculdade de Medicina é professor titular do Departamento de Clínica Médica. Atua também como coordenador de Pesquisa e Inovação do Centro de Telessaúde do Hospital das Clínicas da UFMG (HC-UFMG/MCTI) e como orientador pleno dos programas de pós-graduação de Infectologia e Medicina Tropical e Clínica Médica, entre outras atividades.
Estamos num momento de convergência entre o avanço dos métodos, o avanço do poder das máquinas e do avanço da capacidade de armazenar informações. A medicina se apropriou desses avanços de forma muito clara e passamos a ter um número muito grande de fontes de dados em saúde, desde os prontuários eletrônicos e os exames de laboratório, mas também governamentais, dados externos de redes sociais, dos celulares, relógios enfim gerando um número grande de informações que está transformando como o conhecimento médico, em saúde, se dá. Essa revolução chegou de forma mais acentuada em meados do século XX e desde então houve uma explosão de métodos de deep learning que possibilitam o rastreamento de problemas, de avaliação de prognóstico, de risco.
O grande problema é que esses modelos não foram incorporados na nossa prática como esperávamos, é uma revolução que ainda não se materializou em ferramentas na nossa prática clínica. Sobre os motivos: há o temos da própria classe médica de serem substituídos. Na verdade, a IA é uma ferramenta como tantas outras. A medicina já teve várias revoluções tecnológicas. Essa provavelmente vai mudar nossa prática, mas num horizonte visível ela não tem nenhuma perspectiva de substituir o trabalho do médico.
As dificuldades para a implementação são muito grandes, existe uma dificuldade regulatória, as agências estão tendo que se adaptar, o número de produtos incorporados ainda é restrito, pouco impactando na nossa prática clínica.
Ribeiro apresentou o exemplo da Rede de Telessaúde de Minas Gerais, na qual trabalha há 20 anos. Implantaram núcleos de telessaúde nas universidades do país, projeto que contou também com a contribuição de Ana Estela Haddad. Ampla gama de ações de telessaúde à distância educação e saúde e principalmente o telediagnóstico e o tele eletrocardiograma, teleatendimento a ambulâncias, além de outros procedimentos. Também trabalhamos com pesquisa em implementação de saúde digital e de inteligência artificial. A peça de resistência dessa rede é essa oferta nacional de telediagnóstico, que começou em MG, em 82 municípios, e com apoio do ministério da Saíde a rede se expandiu para 12 estados do país. Núcleos regionais de telessaúde nesses estados. Hoje são mais de 1400 pontos de atendimento com atendimento 24hs, com execução de mais de 7 mil ECGs por dia, laudados em 2 minutos. Um a cada dez eletros do SUS são feitos dessa forma. Isso gerou uma base de dados que se tornou uma das maiores do mundo e pareado com o SUS, que tem um sistema de dados muito organizado. Nos últimos dois anos as aplicações de IA em saúde explodiram e temos inúmeros outros locais e parceiros.
Os dados do ECG servem para vários fins: para diagnóstico, para fazer o laudo, para triagem, monitoramento e rastreamento para identificação de outras doenças, como insuficiência cardíaca, e para predizer mortes, arritmias, infartos. O IA-ECG aumenta a acuidade dos resultados, reduz o tempo de trabalho e reduz custos. Um marcador interessante é quando a idade real do paciente e a idade do coração diferem em mais de oito anos, há um risco maior de morte, perceptível mesmo nos ECGs normais.
Estão estudando, em grupo com a Ester Sabino, como se pode pelos ECGs-IA identificar se a pessoa tem doença de Chagas, que é uma doença que mata silenciosamente, sem sintomas e, portanto, muitas vezes tb sem diagnóstico.
Resumindo, Ribeiro ressaltou que a IA abre novas possibilidades para os sistemas de saúde e para a prática clínica, que a implementação e incorporação na rotina das ferramentas de AI-ECG ainda não estão resolvidas e que o SUS brasileiro pode ter papel relevante na avaliação crítica da incorporação da IA em saúde.
A Nova Era da Saúde: O Impacto Transformador da IA na Prática e Pesquisa Médica
O bioinformata Helder Nakaya é doutor em Ciências Biológicas/Bioquímica pela Universidade de São Paulo (USP). É pesquisador sênior do Hospital Israelita Albert Einstein e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia. É professor adjunto da Universidade Emory, em Atlanta, nos Estados Unidos, é docente e foi vice-diretor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP). É consultor da CEPI (Coalition for Epidemic Preparedness Innovations) e da IUIS (International Union of Immunological Societies) e membro do conselho consultivo científico do consórcio europeu da vacina do ebola e do Instituto Internacional de Análise de Sistemas Aplicados (IIASA). É do Comitê de Assessoramento Científico da Sclavo Vaccines Association, Itália. Foi membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências (2017-2021).
Nakaya começou comparando o médico ao computador. “O médico vai pegar uma lista de sintomas, exames, processar tudo na cabeça, interpretar, analisar as imagens e os resultados de exames de acordo com o que aprendeu, dar um diagnóstico e prescrever um tratamento. Do ponto de vista de um bioinformata, é igualzinho a um computador. Você tem um input, que é a inclusão dos dados, tem um processamento e tem um output, que seria o diagnóstico e o tratamento”, explicou.
Ele ainda acrescentou que na interpretação dos dados o médico leva em conta também a parte epidemiológica, a genética do paciente, casos anteriores que ele já tenha visto, artigos científicos relacionados, enfim, busca identificar alterações de padrões. “Imagina se conseguíssemos colocar na cabeça de um médico milhões de imagens, milhões de dados, milhões de artigos científicos… então é isso que a IA faz, torna mais eficiente o resultado do processamento. As possibilidades computacionais da IA são quase infinitas.”
Em seu laboratório no Einstein e na USP, Nakaya e seu grupo usam IA principalmente em medicina de precisão. Isso significa que pegam um grupo de pessoas que tem a mesma doença, foram vacinadas e tratadas da mesma forma, com o mesmo fármaco e observam que o desfecho da doença dentre essas pessoas é diferente. “Algumas ficam bem, outras nem tanto, tem pessoas que morrem. Isso vai depender de fatores genéticos, idade, sexo, estresse, enfim, diversos fatores que influenciam o desfecho médico. Nós conseguimos medir milhares de componentes”, explicou.
O bioinformata esclareceu que seu grupo consegue medir a atividade 30 mil genes, milhares de proteínas, metabólitos, enfim, uma quantidade imensa de dados. Apenas algoritmos de machine learning, relata, permitem que se processe essa rede complexa no pedacinho que importa para o profissional predizer se aquela pessoa vai morrer de febre amarela depois da infecção aguda, ou se aquela mãe que foi infectada com zika na gravidez vai dar origem a um bebê com microcefalia, enfim, “obtemos informações precisas sobre as perspectivas do indivíduo”. Na verdade, isso não é muita novidade. Nakaya explicou que hoje temos as tecnologias, mas que Hipócrates, o “pai” da medicina, já dizia, em 480 a.C., que “é mais importante conhecer a pessoa que tem a doença do que a doença que a pessoa tem”.
Ao longo desses anos, o grupo de Nakaya desenvolveu diversas ferramentas computacionais para ajudar os profissionais a fazerem essas análises complexasmuito com o Sistema Único de Saúde (SUS). Como admirador profundo do SUS, Nakaya apontou um problema do sistema: as bases de dados descentralizadas. “Tem uma base pra HIV, uma base pra malária, uma base pra dengue… Se conseguimos linkar duas bases, por exemplo, como fizemos com um grupo de 15 mil pessoas no Amazonas, podemos ver que quem tem HIV tem mais chance de também ter malária. Isso para um gestor é importantíssimo, saber que comorbidades podem existir para tomar decisões médicas ou até em políticas públicas.
O problema de integrar as bases de dados é o seguinte: a forma de entrar com os dados muitas vezes é diferente. “Um Luiz Mendonça está com z numa base e com s em outra base, o nome da mãe está incompleto numa delas ou com uma letra trocada, enfim, a mesma pessoa está em várias bases com esses erros e isso impede que o cruzamento de dados seja feito de forma correta”, observou. Então existem métodos probabilísticos e determinísticos, como: “se o CPF for igual, então é a mesma pessoa”. Mas têm muitas falhas.
Nakaya ficou pensando sobre como achar um método que seja bom. “Então me lembrei de um programa antigo, que compara de forma muito rápida e muito eficaz bilhões de sequências de DNA, é chamado de BLAST, e começamos a usá-lo”, relatou. O método envolve pegar os dados pessoais e “transformar em DNA”, e funcionou, permitiu a linkagem.
“E com isso descobrimos uma imensa quantidade de dados repetidos, redundâncias, informações perdidas ou excessivas, apenas por conta dos métodos probabilísticos e determinísticos”, contou. Agora o grupo está tentando encriptar em DNA para proteger os dados sensíveis.
Outra linha do laboratório é o de visão computacional. “Começamos a usá-la para detectar parasitas, primeiro com tripanossomas da doença de Chagas e depois para Leishmania. Usamos também vídeos”, relatou. Um exemplo é um programa que detecta estresse respiratório em bebês, respirações anormais, feito com vídeos — o médico pode ver o bebê e observar a respiração. Fizeram também um modelo que detecta lesões de monkey pox com boa acurácia. “O meu sonho é criar um scanner portátil no qual se coloque o software que está por trás disso tudo, que possa ser levado para regiões remotas do país.
Outro problema que procuramos lidar é com os dados referentes às novas publicações, revistas, artigos, em cada área. Hoje, a quantidade de informação nova é imensa. “Não conseguimos ler 45 milhões de artigos, mas uma máquina consegue ler. Então fizemos esssee programa e criamos grafos de conhecimentos, nos quais a gente conecta doenças, drogas, genes e assim conseguimos usar os cientistas para fazer perguntas, ter insights a partir desses grafos de conhecimento. Usamos também para fazer reposicionamento de fármacos e para ver o que os brasileiros mais publicam, desde 1993.
Nakaya referiu-se ainda ao projeto de uso dos grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT. “Temos uma riqueza muito grande nas anamneses médicas, quando o médico anota os sintomas, exames etc. O problema é que quando tentamos ler esse material e organizar essa informação usando mineração de textos e as regras anteriores normais temos problemas, porque encontramos abreviações, erros de digitação, ausência de acentos, enfim, fica difícil organizar. E são milhões de dados relevantes que não são usados para pesquisa por conta disso. Então nossa ideia é pegar esses dados através de uma IA e organizar, usar para vigilância, para sabermos quando houver um surto, ou para hipóteses diagnósticas. Conseguimos fazer isso até em tempo real. O modelo consegue adicionar coisas que o médico não falou, por ter toda a base de dados organizada por trás. Faz diagnóstico, sugere exames, faz prescrição médica, baseado no contexto específico. E é muito útil, porque se são 15 minutos de consulta e o médico passa dez minutos anotando, ele perde a parte mais importante, que é a interação médico-paciente.
Finalmente, Nakaya focou na questão maior, que é quando vamos conseguir todas as doenças e prevenir a velhice. “Bom, é difícil prever o futuro, porque nós, humanos, somos pensadores lineares, conseguimos compreender a realidade e extrapolar um pouquinho — mas é difícil pensar nisso quando é algo exponencial. E exponencial é exatamente como o nosso conhecimento evoluiu ao longo de 150.000 anos. É difícil entender esse crescimento exponencial”. Ele deu um exemplo interessante: o Projeto Genoma Humano. “Ao longo de 14 anos, foram investidos 2.7 bilhões de dólares. Até a metade do projeto, após sete anos, somente 1% do genoma estava sequenciado. No entanto, nos set anos seguintes os 99% faltantes foram sequenciados. Isso é ser exponencial. Quando muda uma tecnologia, no ano seguinte isso já pode estar impactando a vida de todo mundo”, destacou.
A ciência evolui de forma incremental e, às vezes acontecem esses grandes saltos da ciência, as mudanças de paradigma. Os modelos atuais de IA, de acordo com Nakaya, estão ajudando a ciência de forma incremental. “No momento em que isso se tornar uma super inteligência é que vamos ver as coisas explodirem, de uma forma que nem poderíamos prever. E aí virá a nova era da medicina, com a economia da IA”, pontou. O bioinformata realtou que já existe um chatbot melhorado, que imita uma enfermeira até no jeito de falar e consegue ter empatia, se relacionar com a pessoa com que ela está lidando, não é só um algoritmo de perguntas e respostas. “Acho que isso vai ter um impacto enorme na saúde mental”, refletiu.
Só que não adianta criar uma IA fantástica que fique restrita a um número pequeno de pessoas privilegiadas. Agora, a questão é de escala. “Temos que conseguir baratear esses recursos para que haja equidade e universalidade no acesso. Tem um bonde chegando. A gente pode se empenhar pra pegar esse bonde ou ficar distraído. Dizem que informação é o novo petróleo. Então o DATASUS é o nosso pré-sal”, concluiu.
Transformação Digital do SUS: Programa SUS Digital
Ana Estela Haddad é doutora em Ciências Odontológicas pela Universidade de São Paulo (USP), onde é professora titular do Departamento de Ortodontia e Odontopediatria da Faculdade de Odontologia (FOUSP) e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Odontológicas. Atualmente é membro do Comitê Assessor da Rede Universitária de Telemedicina (RUTE) e do Grupo SAITE (Saúde, Inovação, Tecnologia e Educação) de Pesquisa do CNPq. É coordenadora adjunta do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Políticas Públicas para a Metrópole (NAP Escola da Metrópole) e coordenadora da Estação Multicêntrica de Estudos e Tendências de Recursos Humanos em Saúde (FOUSP-ABENO) da Rede de Observatórios de Recursos Humanos em Saúde (Ministério da Saúde/OPAS). É uma das representantes do Brasil na Red de Lideres por la Primera Infância, rede latino-americana integrada por líderes de 28 países. Atualmente é secretária de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde.
Ana Estela referiu-se às palestras anteriores, lembrando que todos os programas e projetos citados demandam muitas camadas de trabalho. “Quando pensamos na política de saúde, o que é necessário para a gente chegar a fazer isso crescer em termos populacionais e não individuais, vemos que o DATASUS é realmente um grande passo já andado”, observa. Ela explica que na gestão da ministra Nísia Trindade no Ministério da Saúde foi criada a Secretaria de Informação e Saúde Digital, para a qual os dados são fundamentais. À frente da nova Secretaria Ana Estela contextualizou o SUS: são 2,8 bilhões de atendimentos por ano, sendo que 70% da população brasileira depende do Sistema Único de Saúde (SUS). “Nenhum país no mundo com mais de 100 milhões de habitantes oferece um Sistema Único de Saúde, só o Brasil”, ressaltou.
Conforme já foi visto nas sessões anteriores do evento, sabemos dos riscos com tecnologias emergentes, como a IA. “Temos, por exemplo, o risco de vieses. Por isso é importante conhecer a entrada dos bancos de dados, como eles são formados, que informações são essas que estamos colocando e a relação com as informações que vão sair do outro lado. Tem a questão da segurança da informação, da proteção de dados. Hoje os dados de saúde são muito preciosos e estamos sob constante ataque. O DATASUS é muito monitorado e é sempre tensa essa questão. Essa secretaria que foi formada tem essa missão: acelerar a transformação digital do SUS, mas com uso técnico e crítico dessas novas tecnologias”, firmou.
As aplicações de IA na Saúde englobam a atenção integral à saúde, vigilância em saúde; pesquisa, desenvolvimento e inovação em saúde; formação e educação permanente dos trabalhadores e profissionais de saúde; gestão do SUS, que envolve planejamento, monitoramento e avaliação. Dentre os desafios a enfrentar, Ana Estela destacou a necessidade de superar a fragmentação, reunindo as informações num só lugar; implementar o uso de diferentes tecnologias; garantir a segurança da informação; assegurar a proteções privacidade dos dados; construir uma visão nacional; e garantir a governança e soberania dos dados.
O objetivo de tudo isso é viabilizar o acesso universal num sistema de saúde que é público. É também empoderar o cidadão, que tem direito à posse do seu prontuário para tomar as melhores decisões no seu autocuidado, dar continuidade a esse cuidado”. Ana Estela ressalta que o cidadão precisa de cuidado integrado de promoção, de continuidade e de prevenção. “A informação é um bem público. Com grandes bancos de dados podems fazer predições, fazer vigilância em saúde, perceber quando uma epidemia começa a aparecer e começar a atuar preventivamente. Além de melhorar a qualidade de vida do cidadão, que é prioridade, isso também resulta numa redução de custos.”
Diversos setores foram criados na Secretaria conduzida por Ana Estela, visando possibilitar a implementação de todas as IAs previstas, como o Laboratório de Inovação em Saúde Digital e o Índice Nacional de Maturidade em Saúde Digital, ferramenta criada para diagnosticar a situação de cada estado e município e apoiar os respectivos gestores; e a criação da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), que é o caminho para centralizar e universalizar os dados de saúde. Ana Estela destacou que já existe o SUS Digital para o Cidadão, app para celular que é a porta de entrada do cidadão para acesso aos serviços do SUS com qualidade, apontando no sentido da autonomia do sujeito.
E qual o benefício que a RNDS traz? segundo Ana Estela, essa plataforma materializa a ideia de um prontuário único eletrônico do cidadão. “Com os dados de saúde reunidos numa única plataforma é possível acompanhar todo o histórico clínico de uma paciente. Na prática, quer dizer que se a paciente tomou uma vacina em Manaus quando estava visitando sua mãe, seu registro de saúde vai ter esse dado. Essa ferramenta alcança os povos indígenas e todos os outros periféricos”, conclui.