A tarde do último dia de Reunião Magna da Academia Brasileira de Ciências 2023, 11 de maio, foi dedicada à educação. As discussões buscaram cobrir as muitas faces do ensino de ciência no século 21, e passaram também pelo debate atual sobre reforma do ensino médio.

Para a última sessão plenária da #RMagna2023, a ABC convidou os educadores Eduardo Fleury Mortimer e Iamni Torres Jager, que trouxeram experiências sobre ciência e sala de aula, além de impressões sobre o Novo Ensino Médio (NEM). Também foi convidado o físico Ildeu de Castro Moreira, experiente divulgador científico, que apresentou resultados de uma pesquisa sobre percepção pública da ciência no Brasil.

Pesquisa em educação científica no Brasil

A pesquisa em educação científica só começa a se consolidar no Brasil nas décadas de 60 e 70 e se expandindo apenas no século 21, com a criação da área 46 da Capes para ensino de ciências e matemática. Quando surgiu, a área abrigava apenas sete programas de pós-graduação ao redor do país, número que cresceu para 60 em apenas dez anos. “Para se ter uma ideia, a institucionalização da área de ensino de ciências nos EUA se deu há mais de um século”, comparou Eduardo Mortimer, professor da Faculdade de Educação da UFMG.

Para o pesquisador, existe uma tensão perene entre duas visões no ensino de ciências. A primeira, compartilhada pelos cursos de Educação, é mais ligada às humanidades, mesmo que os professores sejam formados em ciências naturais ou exatas. A segunda visão é mais característica dos próprios departamentos de física, biologia ou matemática das universidades, portanto mais ligada às chamadas “ciências duras”. “Esse cenário traz problemas metodológicos e de avaliação, já que cada área tem exigências diferentes”, argumentou Mortimer.

O problema se reflete na dicotomia entre sociedades científicas específicas das áreas e sociedades voltadas ao ensino – como a Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBenBio), a Sociedade Brasileira de Ensino de Química (SBEnQ) e a Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (Abrapec). Mortimer avaliou que essas sociedades independentes dão dinamismo a área, pois criam congressos e publicações focadas no ensino de ciências.

“Ainda constatamos uma falta de reconhecimento para a área de educação em ciência, que se reflete, por exemplo, na criação de mestrados profissionais para professores pelas associações específicas das áreas, passando ao largo das sociedades de ensino”, avaliou. “Deveria ser, no mínimo, um trabalho conjunto”.  

Ciência em sala de aula

Iamni Torres Jager é doutora em Ciência, Tecnologia e Educação pelo Cefet-RJ e atualmente leciona biologia na rede pública do Rio de Janeiro. Ela compartilhou sua experiência pedagógica, tentando fazer com que as ciências façam sentido dentro da realidade dos alunos. “Desde a graduação sempre carreguei o questionamento sobre o porquê de pesquisar botânica e genética, por exemplo”, conta. “Quando passei para a sala de aula essa dúvida se transformou em ‘por que ensinar ciência?’”.

Ao longo da carreira, a professora passou pelos mais diversos ambientes de ensino, desde colégios públicos, particulares, pré-vestibulares  até uma experiência com educação de mulheres em privação de liberdade. A partir de uma perspectiva freiriana, ela esclareceu que o ensino de ciência precisa estar conectado ao cotidiano e a localidade, e que a relação professor-aluno deve ser regida pelo que Paulo Freire denominou “amorosidade”.

“Todas as experiências em sala de aula possuem aspectos comuns. Muitas demandas são trazidas ou ressignificadas pelos próprios alunos, a partir de suas realidades sociais. A perspectiva histórica atua como forma de entender o presente e vislumbrar o futuro”, explicou a educadora. “A sala de aula deve ser um espaço de reflexão crítica das ciências, de forma a trazer esse conhecimento para o campo da justiça social”, finalizou.

Eduardo Mortimer, Ildeu Moreira e Iamni Jager durante a última sessão plenário da #RMagna2023 (Foto: Miguel Sá)

Novo Ensino Médio

Como não poderia deixar de ser, ambos os palestrantes dedicaram o final de suas apresentações a discutir o Novo Ensino Médio (NEM). A política, instituída em 2017, vem enfrentando dificuldades de implementação e tanto educadores quanto alunos reclamam que levou a uma perda de qualidade no ensino. O prazo previsto pelo Ministério da Educação (MEC) para que se completasse a transição é 2024, mas a falta de avanços recentes coloca em xeque esse objetivo.

O NEM institui uma nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que ocupa 60% da carga horária dos alunos. Tanto Mortimer quanto Jager argumentam que o novo modelo diminui o espaço de disciplinas como química e física justamente na fase em que os jovens estão mais propícios a introdução dessas ciências. “A ênfase passa a ser em competências e habilidades muito genéricas e não em domínio conceitual”, criticou Mortimer.

O NEM institui também os itinerários formativos, que pressupõem maior liberdade aos estudantes ao montar sua grade. Esses itinerários são divididos em ciências da natureza, ciências humanas, matemática e linguagens, além de formação técnica e profissional. Entretanto, a lei não obriga as escolas a oferecerem todos os itinerários, apenas dois, o que os pesquisadores apontam como uma grave fonte de exclusão. “O que estamos vendo é o aumento no abismo entre instituições públicas e privadas”, disse Jager.

O foco na interdisciplinaridade também é visto com preocupação. Para os palestrantes, tratar temas como evolução de forma pulverizada é perigoso, dados os contextos socioculturais e religiosos diversos entre as regiões do país. Outra questão é a formação dos professores, que não estão preparados para essa nova abordagem. “Estamos trocando um marco seguro e consolidado – o ensino disciplinar – por uma aventura interdisciplinar a qual só uma minoria dos professores vivenciou durante a formação”, resumiu Mortimer.

O pesquisador avaliou também que o incremento na carga horária é uma das coisas que pode ser mantida da proposta, mas que essa se dá em um período pouco propício. “A contradição é que o NEM foi aprovado num período histórico de corte de gastos, mas ele é naturalmente expansivo. Para atender as demandas precisaríamos de um investimento significativo na formação de professores e infraestrutura que simplesmente não se vê”, argumentou.

Percepção pública da ciência

Mudando o foco do debate, a última palestra ficou a cargo do físico e divulgador científico Ildeu de Castro Moreira. Ele apresentou resultados ainda não publicados da pesquisa “Confiança na Ciência no Brasil em tempos de pandemia”, desenvolvida pelo INCT de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT).

A pesquisa entrevistou 2.069 pessoas em todo o Brasil, entre agosto e outubro de 2022, e buscou aferir a confiança da população nas instituições e nos cientistas. O trabalho sondou também a opinião pública em temas científico de alta relevância, como vacinas e mudanças climáticas. “O que aferimos foi que visões ideológicas e políticas influenciam na percepção das pessoas sobre ciência”, sumarizou Ildeu.

A confiança dos brasileiros na ciência continua alta – 68,9% dos entrevistados dizem confiar e 55,6% afirmam que a confiança aumentou na pandemia. Entretanto, esses números representam uma ligeira queda na confiança com relação ao pré-pandemia, e 10% dos entrevistados afirmou ter perdido a confiança nesse ínterim. Alguns recortes saltam aos olhos: a média de desconfiança no Centro-Oeste, por exemplo,  é 14% mais alta que a média nacional.

A pandemia também parece ter familiarizado o brasileiro com seus centros de pesquisa. Enquanto, em 2019 apenas 9,4% dos entrevistados sabiam citar alguma instituição, agora são 25,4%. As principais instituições foram, como era de se esperar, a Fiocruz e o Butantan, que estiveram no centro dos holofotes na busca por vacinas durante a crise.

E por falar em vacinas, 86% dos entrevistados as consideram um instrumento importante de saúde pública, o que mostra que a cultura vacinal brasileira ainda vive. Por outro lado, 8% disseram não vacinar os filhos, posição mais frequente entre homens que se identificam como conservadores. Quanto às mudanças climáticas, 91% dos respondentes acreditam que é um fenômeno em curso e 84% enxergam riscos graves para o futuro. De novo, o negacionismo parece interligado com visões de mundo mais conservadoras.

“Podemos ver que o negacionismo pouco tem a ver com escolaridade, e sim com visões de mundo”, comentou Ildeu.

Mais de dois terços do brasileiro confiam na ciência, mas crescimento de posturas negacionistas em segmentos específicos preocupa (Fonte: INCT – CPCT)