pt_BR

Vinton Cerf: IA ainda não compreende contextos

Para a primeira Conferência Magna da Reunião Magna 2024, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) teve o prazer de receber on-line, no Museu do Amanhã, o matemático norte-americano Vinton Cerf, vice-presidente da Google e considerado um dos pais da Internet moderna por ter co-projetado o protocolo TCP/IP que define como os computadores se comunicam em rede.

Apesar de não ser um especialista em inteligência artificial, como ele próprio se descreve, Vinton Cerf está numa posição de liderança na mais famosa big tech do planeta, entendendo o potencial revolucionário dessa tecnologia. Ele explicou que a ideia de criar sistemas artificiais de interpretação de dados já motiva pesquisas desde a década de 60, mas estes protótipos sempre sofreram para progredir conforme o volume e a complexidade dos dados aumentavam.

Nos anos 90, surgiu a ideia das redes neurais, uma forma de modelo matemático inpirado no cérebro humano – a partir de milhares de nós interconectados em redes dispostas em centenas de camadas. Através desse modelo, é possível encontrar padrões semelhantes em grandes quantidades de dados. As redes neurais são parte de um conjunto de algoritmos conhecidos como algoritmos de aprendizado de máquina (machine learning), onde os próprios algoritmos aprendem a reconhecer um padrão, por exemplo, a partir dos dados de entrada. “Na Google temos o Google Knowledge Graph, que associa entidades, como o nome de pessoas ou lugares, a fatos sobre elas. que melhoram o desempenho desses algoritmos. Já temos cerca de 5 bilhões de entidades com 500 bilhões de informações relacionadas”, exemplificou Cerf.

Vinton Cerf, vice-presidente da Google, participou da Reunião Magna da ABC de forma online (Foto: Marcos André Pinto)

As redes neurais são a base dos chamados Large Language Models (LLM), dos quais o ChatGPT talvez seja o mais famoso. O ChatGPT consegue reconhecer comandos de texto complexos e responder através da geração de textos também altamente complexos. Ele faz isso pela associação de palavras, analisando bases de dados imensas para determinar quais palavras são as mais prováveis a partir de textos anteriores e do contexto de uma conversa. Tecnologias semelhantes já são utilizadas para geração de imagens e funcionam de forma parecida, a partir de modelos de aprendizado de máquina.

“Algumas aplicações possíveis estão na tradução e geração de textos, controle de sistemas de resfriamento de reatores, programação automatizada e até no diagnóstico de doenças por imagens. Mas é preciso ter cuidado. Com textos, por exemplo, se você não dominar um assunto, um LLM pode fornecer respostas falsas. É o que chamamos de ‘alucinação’”, afirmou Cerf.

Em um experimento prático, o palestrante disse que pediu para um LLM escrever um obituário de si mesmo, com base em diversos obituários da internet e em sua própria biografia. “Ele inventou uma data – próxima demais pro meu gosto! – misturou coisas que eu fiz com coisas que outras pessoas fizeram e chegou até mesmo a inventar familiares”, contou bem-humorado.

Para resolver essas “alucinações”, os engenheiros terão de trabalhar para que cada vez mais as máquinas entendam contextos. “Quando treinamos um LLM, o modelo não tem muito contexto para saber onde surgem conflitos nos dados. Dessa forma, peças de origens diferentes podem ser unidas, gerando informações completamente falsas. O problema é que quando usamos isso para diagnósticos médicos ou análises financeiras estamos em áreas de alto risco. É preciso proteger o usuário”, explicou.

Mas para além de problemas técnicos, existem também os riscos que essas tecnologias representam quando utilizadas de forma consciente para fins espúrios. “A geração de imagens e sons com alta qualidade, por exemplo, pode gerar um volume imenso de fake news. É fácil imaginar essas tecnologias sendo ótimas para a indústria do entretenimento e péssimas para o mundo político e o debate público”, alertou Cerf.

Em debate junto aos cientistas brasileiros, Vinton Cerf foi mais a fundo em aplicações específicas da inteligência artificial. Respondendo à presidente da ABC, Helena Nader, sobre como cientistas poderiam confiar nos resultados fornecidos por esses sistemas, o palestrante disse que é preciso nunca perder de vista a origem daquele resultado. “Qualquer output deve vir junto do input, daquilo que foi pedido, deve-se levar em consideração como o sistema foi calibrado e quais bases de dados foram utilizadas. E sempre ter em mente que pode estar incorreto, é preciso olhar criticamente para o resultado”.

Isso vale também para aplicações na educação. “Me parece possível que as IA sejam utilizadas de forma tutorial, ajudando os estudantes a entender e interpretar suas respostas de forma personalizada e detectando lacunas no aprendizado. Talvez a parte mais importante seja fazer os estudantes quererem aprender e utilizar os sistemas a seu favor. Mas, para isso, precisamos primeiro resolver o problema das alucinações”, avaliou Cerf.

O palestrante se mostrou otimista quanto a riscos existenciais dessa tecnologia. “Sem dúvida é algo que pode fazer estrago, por exemplo quando utilizado na tomada de decisão sobre penas criminais. Precisamos ter um foco regulatório no uso da IA e demonstração por parte dos provedores de que eles estão atuando para mitigar os riscos. Não há dúvidas de que a IA pode fazer coisas que não podemos, mas não acho que os robôs nos dominarão se utilizarmos de forma responsável”.

Assista a palestra de Vinton Cerf a partir de 2h49m:

Confira a galeria de fotos da Reunião Magna 2024:

Reunião Magna discutirá impactos da Inteligência Artificial com palestrantes nacionais e internacionais

Quais os impactos da inteligência artificial (IA) e como garantir que ela seja usada de maneira ética? O assunto será o ponto central da Reunião Magna 2024 da Academia Brasileira de Ciências (ABC), que levará ao público os diferentes olhares da comunidade científica sobre a influência dessa tecnologia em áreas como ciência, educação e saúde. O evento acontecerá entre 7 e 9 de maio no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas neste link.

Com o tema “Inteligência Artificial e as Ciências: Oportunidades e Riscos”, a Reunião Magna terá a presença de palestrantes nacionais e internacionais. A primeira conferência magna vai ser na terça-feira (7), às 11h30, com Vinton G. Cerf, um dos arquitetos da Internet moderna, vice-presidente do Google e um dos responsáveis por identificar novas tecnologias e aplicativos para a empresa. A conferência de Cerf será sobre inteligência artificial e ciências. Ranveer Chandra, diretor de tecnologia para agricultura alimentar da Microsoft, mostrará ao público, na quinta-feira (9), às 11h30, como a inteligência artificial pode ser usada na agricultura sustentável.

O evento contará também com a conferência do físico Matthias Scheffler, diretor emérito do Fritz Haber Institute, parte da Max Planck Society. Scheffler defende que toda a informação tenha um conjunto de características que facilitem a análise de dados e o uso delas pelas IAs. Já o sociólogo Nick Couldry, professor da London School Of Economics, mostrou, em um dos seus trabalhos recentes, como as informações fornecidas para empresas ao se usar serviços online são usadas para lucrar. Em sua conferência, ele irá abordar a IA na perspectiva do chamado colonialismo de dados, conceito que aborda a apropriação de dados na era digital.

Também estão confirmadas as participações de Margaret Martonosi, professora de ciência da computação da Universidade de Princeton, que vai abordar oportunidades e riscos da IA, e da antropóloga Karen Strier, professora da Universidade De Wisconsin-Madison e membro correspondente da ABC, que falará sobre inteligência artificial e o futuro dos primatas. A programação completa pode ser vista aqui.

“Ao mesmo tempo em que temos conferências importantes de cientistas dos EUA e Europa, temos vários pesquisadores e pesquisadoras brasileiras discutindo o papel da IA no contexto brasileiro e como poderíamos avançar nessa área. Vamos cobrir temas críticos e fundamentais para o avanço da economia e da qualidade de vida no país, e também  discutir temas de pesquisa de ponta do exterior”, explica o professor emérito da UFMG Virgílio Almeida, membro titular da ABC e um dos coordenadores da Reunião Magna deste ano.

Ganhos que educação, saúde e agricultura podem ter com as IAs

A agenda conta ainda com conferências sobre outros temas que têm sido alvo de debates no país e no mundo em relação à inteligência artificial. Em uma delas, o uso de IAs generativas e as dificuldades e benefícios que isso pode trazer à educação básica serão pontos debatidos pelo presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e membro titular da ABC, Renato Janine Ribeiro, pela professora de inteligência artificial na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Teresa Ludermir, e por Naomar Monteiro de Almeida Filho, professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA). IAs generativas são as ferramentas que conseguem criar textos e outros conteúdos semelhantes aos feitos por uma pessoa, como o ChatGPT.

Em outro debate, a secretária nacional de informação e saúde digital do Ministério da Saúde, Ana Estela Haddad, o biólogo e pesquisador sênior do Hospital Israelita Albert Einstein Helder Nakaya e o médico e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Antonio Ribeiro irão se debruçar sobre os principais resultados que as IAs podem trazer para área de saúde –desde os impactos para a prática médica até as mudanças para a política nacional de informação e saúde digital do SUS.

A programação conta ainda com conferência de especialistas sobre a regulação da inteligência artificial, além de debates sobre os principais avanços já alcançados na área, o uso de IAs na agricultura e previsões sobre o futuro da sociedade com essa tecnologia. Confira a lista completa de palestrantes e temas aqui.

Novos membros da ABC e entrega do Prêmio Almirante Álvaro Alberto 2024 

Ao fim do segundo dia da Reunião Magna, na quarta-feira (8), será realizada a cerimônia de diplomação dos novos membros titulares e correspondentes da ABC, na Escola Naval do Rio de Janeiro, também no centro da cidade. Confira aqui os nomes dos eleitos. A solenidade, para convidados, também irá marcar a entrega do Prêmio Almirante Álvaro Alberto 2024 à arqueóloga Niède Guidon, diretora presidente emérita da Fundação Museu do Homem Americano.

Considerada a maior láurea científica do país, o prêmio é concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), em parceria com a Marinha do Brasil. É um reconhecimento pelo trabalho de pesquisadores que atuam pelo desenvolvimento da ciência no país.

Ao longo de sua carreira, Niède Guidon identificou mais de 700 sítios pré-históricos, sendo 426 deles paredes de pinturas antigas e evidências de habitações humanas antigas no Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí (PI). A arqueóloga foi uma das principais responsáveis pelo desenvolvimento e conservação do parque.

“Niède Guidon é uma mulher que sempre esteve à frente dos seus tempos. Ela mostra de forma clara, na minha visão, a chegada do homem nas Américas não há cerca de 13 mil anos, mas nos últimos 100 mil anos. Poderia ter ficado só na produção científica e só isso já bastaria, mas não para ela. Niède montou uma fundação em São Raimundo Nonato, no Piauí, e criou o Parque Nacional da Serra da Capivara. E lutou contra muitos para manter aquela unidade de conservação. Parabéns à Marinha do Brasil, parabéns ao MCTI e parabéns ao CNPq por ter indicado essa grande brasileira para a premiação”, afirma a presidente da ABC, Helena Nader.


CREDENCIAMENTO DE IMPRENSA

Jornalistas interessados em acompanhar os eventos devem enviar nome, veículo e telefone para henriquegimenescorcovadoestrategica܂com܂br até às 17h do dia 6 de maio.

SERVIÇO:
Reunião Magna da Academia Brasileira de Ciências
Data:
7, 8 e 9 de maio
Local: Museu do Amanhã. Praça Mauá, Centro, Rio de Janeiro.
Horário: de 8h15 às 17h

Assessoria de Imprensa:
Corcovado Comunicação Estratégica

Henrique Gimenes
(21) 99383-0031 / henriquegimenes@corcovadoestrategica.com.br

Natália Cancian
(61) 98175-0172 / nataliacancian@corcovadoestrategica.com.br

Carla Russo
(21) 99196-4250 / carlarusso@corcovadoestrategica.com.br

Raphael Gomide
(21) 98734-5544 / rgomide@corcovadoestrategica.com.br


Veja a programação (PT) (EN) e inscreva-se aqui.

Conheça aqui os palestrantes


EVENTO COM TRADUÇÃO SIMULTÂNEA E EMISSÃO DE CERTIFICADOS DE PARTICIPAÇÃO PRESENCIAL


SERVIÇO
• Data: 07 – 09/05/2024
• Formato: Presencial
• Local: Museu do Amanhã – RJ.
• Informações: Gabriella Fialho de Mello. E-mail: gfmello@abc.org.br. Tel: (21) 3907-8100 r. 8148

 

*A imagem que compõe o logotipo da Reunião Magna 2024 da ABC foi gerada via inteligência artificial. A composição foi efetuada por um humano. =)

Reunião Magna da ABC 2023 está disponível no Youtube

A Reunião Magna da Academia Brasileira de Ciências 2023 já está disponível no Youtube!

Entre 9 e 11 de maio, a ABC realizou o seu encontro anual para um auditório lotado no Museu do Amanhã, Rio de Janeiro. O tema deste ano foi “Ciência Básica para o Desenvolvimento Sustentável” e reuniu diversos membros da Academia e outros expoentes da ciência brasileira e internacional.

Durante as treze sessões, divididas entre conferências e mesas-redondas, foram abordados temas nas áreas de saúde, economia, filosofia, educação, meio ambiente, direitos dos povos originários, políticas públicas e muito mais.

E agora, se você não pode estar conosco presencialmente, pode acessar a íntegra dos debates, separados por palestrante, na playlist Reunião Magna 2023 no canal da ABC no Youtube.

Não perca essa oportunidade e fique por dentro das discussões sobre os rumos da ciência no país.

Assista as palestras da #RM2023!

O auditório do Museu do Amanhã recebeu a Reunião Magna da ABC 2023 entre os dias 9 e 11 de maio 

#RMagna2023: Educação básica e divulgação científica

A tarde do último dia de Reunião Magna da Academia Brasileira de Ciências 2023, 11 de maio, foi dedicada à educação. As discussões buscaram cobrir as muitas faces do ensino de ciência no século 21, e passaram também pelo debate atual sobre reforma do ensino médio.

Para a última sessão plenária da #RMagna2023, a ABC convidou os educadores Eduardo Fleury Mortimer e Iamni Torres Jager, que trouxeram experiências sobre ciência e sala de aula, além de impressões sobre o Novo Ensino Médio (NEM). Também foi convidado o físico Ildeu de Castro Moreira, experiente divulgador científico, que apresentou resultados de uma pesquisa sobre percepção pública da ciência no Brasil.

Pesquisa em educação científica no Brasil

A pesquisa em educação científica só começa a se consolidar no Brasil nas décadas de 60 e 70 e se expandindo apenas no século 21, com a criação da área 46 da Capes para ensino de ciências e matemática. Quando surgiu, a área abrigava apenas sete programas de pós-graduação ao redor do país, número que cresceu para 60 em apenas dez anos. “Para se ter uma ideia, a institucionalização da área de ensino de ciências nos EUA se deu há mais de um século”, comparou Eduardo Mortimer, professor da Faculdade de Educação da UFMG.

Para o pesquisador, existe uma tensão perene entre duas visões no ensino de ciências. A primeira, compartilhada pelos cursos de Educação, é mais ligada às humanidades, mesmo que os professores sejam formados em ciências naturais ou exatas. A segunda visão é mais característica dos próprios departamentos de física, biologia ou matemática das universidades, portanto mais ligada às chamadas “ciências duras”. “Esse cenário traz problemas metodológicos e de avaliação, já que cada área tem exigências diferentes”, argumentou Mortimer.

O problema se reflete na dicotomia entre sociedades científicas específicas das áreas e sociedades voltadas ao ensino – como a Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBenBio), a Sociedade Brasileira de Ensino de Química (SBEnQ) e a Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (Abrapec). Mortimer avaliou que essas sociedades independentes dão dinamismo a área, pois criam congressos e publicações focadas no ensino de ciências.

“Ainda constatamos uma falta de reconhecimento para a área de educação em ciência, que se reflete, por exemplo, na criação de mestrados profissionais para professores pelas associações específicas das áreas, passando ao largo das sociedades de ensino”, avaliou. “Deveria ser, no mínimo, um trabalho conjunto”.  

Ciência em sala de aula

Iamni Torres Jager é doutora em Ciência, Tecnologia e Educação pelo Cefet-RJ e atualmente leciona biologia na rede pública do Rio de Janeiro. Ela compartilhou sua experiência pedagógica, tentando fazer com que as ciências façam sentido dentro da realidade dos alunos. “Desde a graduação sempre carreguei o questionamento sobre o porquê de pesquisar botânica e genética, por exemplo”, conta. “Quando passei para a sala de aula essa dúvida se transformou em ‘por que ensinar ciência?’”.

Ao longo da carreira, a professora passou pelos mais diversos ambientes de ensino, desde colégios públicos, particulares, pré-vestibulares  até uma experiência com educação de mulheres em privação de liberdade. A partir de uma perspectiva freiriana, ela esclareceu que o ensino de ciência precisa estar conectado ao cotidiano e a localidade, e que a relação professor-aluno deve ser regida pelo que Paulo Freire denominou “amorosidade”.

“Todas as experiências em sala de aula possuem aspectos comuns. Muitas demandas são trazidas ou ressignificadas pelos próprios alunos, a partir de suas realidades sociais. A perspectiva histórica atua como forma de entender o presente e vislumbrar o futuro”, explicou a educadora. “A sala de aula deve ser um espaço de reflexão crítica das ciências, de forma a trazer esse conhecimento para o campo da justiça social”, finalizou.

Eduardo Mortimer, Ildeu Moreira e Iamni Jager durante a última sessão plenário da #RMagna2023 (Foto: Miguel Sá)

Novo Ensino Médio

Como não poderia deixar de ser, ambos os palestrantes dedicaram o final de suas apresentações a discutir o Novo Ensino Médio (NEM). A política, instituída em 2017, vem enfrentando dificuldades de implementação e tanto educadores quanto alunos reclamam que levou a uma perda de qualidade no ensino. O prazo previsto pelo Ministério da Educação (MEC) para que se completasse a transição é 2024, mas a falta de avanços recentes coloca em xeque esse objetivo.

O NEM institui uma nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que ocupa 60% da carga horária dos alunos. Tanto Mortimer quanto Jager argumentam que o novo modelo diminui o espaço de disciplinas como química e física justamente na fase em que os jovens estão mais propícios a introdução dessas ciências. “A ênfase passa a ser em competências e habilidades muito genéricas e não em domínio conceitual”, criticou Mortimer.

O NEM institui também os itinerários formativos, que pressupõem maior liberdade aos estudantes ao montar sua grade. Esses itinerários são divididos em ciências da natureza, ciências humanas, matemática e linguagens, além de formação técnica e profissional. Entretanto, a lei não obriga as escolas a oferecerem todos os itinerários, apenas dois, o que os pesquisadores apontam como uma grave fonte de exclusão. “O que estamos vendo é o aumento no abismo entre instituições públicas e privadas”, disse Jager.

O foco na interdisciplinaridade também é visto com preocupação. Para os palestrantes, tratar temas como evolução de forma pulverizada é perigoso, dados os contextos socioculturais e religiosos diversos entre as regiões do país. Outra questão é a formação dos professores, que não estão preparados para essa nova abordagem. “Estamos trocando um marco seguro e consolidado – o ensino disciplinar – por uma aventura interdisciplinar a qual só uma minoria dos professores vivenciou durante a formação”, resumiu Mortimer.

O pesquisador avaliou também que o incremento na carga horária é uma das coisas que pode ser mantida da proposta, mas que essa se dá em um período pouco propício. “A contradição é que o NEM foi aprovado num período histórico de corte de gastos, mas ele é naturalmente expansivo. Para atender as demandas precisaríamos de um investimento significativo na formação de professores e infraestrutura que simplesmente não se vê”, argumentou.

Percepção pública da ciência

Mudando o foco do debate, a última palestra ficou a cargo do físico e divulgador científico Ildeu de Castro Moreira. Ele apresentou resultados ainda não publicados da pesquisa “Confiança na Ciência no Brasil em tempos de pandemia”, desenvolvida pelo INCT de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT).

A pesquisa entrevistou 2.069 pessoas em todo o Brasil, entre agosto e outubro de 2022, e buscou aferir a confiança da população nas instituições e nos cientistas. O trabalho sondou também a opinião pública em temas científico de alta relevância, como vacinas e mudanças climáticas. “O que aferimos foi que visões ideológicas e políticas influenciam na percepção das pessoas sobre ciência”, sumarizou Ildeu.

A confiança dos brasileiros na ciência continua alta – 68,9% dos entrevistados dizem confiar e 55,6% afirmam que a confiança aumentou na pandemia. Entretanto, esses números representam uma ligeira queda na confiança com relação ao pré-pandemia, e 10% dos entrevistados afirmou ter perdido a confiança nesse ínterim. Alguns recortes saltam aos olhos: a média de desconfiança no Centro-Oeste, por exemplo,  é 14% mais alta que a média nacional.

A pandemia também parece ter familiarizado o brasileiro com seus centros de pesquisa. Enquanto, em 2019 apenas 9,4% dos entrevistados sabiam citar alguma instituição, agora são 25,4%. As principais instituições foram, como era de se esperar, a Fiocruz e o Butantan, que estiveram no centro dos holofotes na busca por vacinas durante a crise.

E por falar em vacinas, 86% dos entrevistados as consideram um instrumento importante de saúde pública, o que mostra que a cultura vacinal brasileira ainda vive. Por outro lado, 8% disseram não vacinar os filhos, posição mais frequente entre homens que se identificam como conservadores. Quanto às mudanças climáticas, 91% dos respondentes acreditam que é um fenômeno em curso e 84% enxergam riscos graves para o futuro. De novo, o negacionismo parece interligado com visões de mundo mais conservadoras.

“Podemos ver que o negacionismo pouco tem a ver com escolaridade, e sim com visões de mundo”, comentou Ildeu.

Mais de dois terços do brasileiro confiam na ciência, mas crescimento de posturas negacionistas em segmentos específicos preocupa (Fonte: INCT – CPCT)

Convidado da Reunião Magna da ABC na GloboNews

O repórter Marcelo Lins, do Especial de Domingo da GloboNews, entrevistou Ernesto Polcuch, diretor de Ciência da Unesco para América Latina e Caribe.  O especialista foi convidado pela Academia Brasileira de Ciências para proferir conferência em 11 de maio, na sua Reunião Magna, realizada no Museu do Amanhã.

Na entrevista, Polcuch destacou a importância do evento anual da ABC, que este ano discutiu a contribuição da ciência para o desenvolvimento sustentável. “Nós da Unesco viemos dar uma perspectiva regional global sobre estes temas”, relatou.

O repórter contextualizou a situação ruim no Brasil, que enfrentou um período terrível com negacionismo, fake news, desinformação e ataques contra a ciência. Polcuch apontou que, apesar disso, foi mostrado na Reunião Magna que a população brasileira confia mais na ciência hoje do que antes da pandemia.

Assista a entrevista na íntegra aqui!

#RMagna2023: Ciência básica nas mudanças climáticas

As mudanças climáticas são o desafio do século 21, e um desafio para cujo enfrentamento a humanidade já está atrasada. Enquanto no Acordo de Paris, de 2016, os países assinantes se comprometeram a limitar o aquecimento do planeta a 2°C, hoje menos de um quinto dos cientistas envolvidos no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) acreditam que isso seja possível. A maior parte deles já trabalha com o objetivo de limitar o aquecimento a 3°C com relação ao período pré-industrial.

Para debater esse tema urgente, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) convidou seus membros titulares Paulo Artaxo (USP), Carlos Alfredo Joly (Unicamp) e Ima Célia Vieira (Museu Goeldi). Os Acadêmicos abordaram os diferentes aspectos da emergência climática – e como o Brasil está inserido nesse problema global – durante a quinta Sessão Plenária da Reunião Magna 2023, realizada no dia 10 de maio. A coordenação ficou por conta de Artaxo, que aproveitou para traçar um retrato atual – e nada otimista – sobre a crise.

A urgência climática e a transformação da sociedade

Um estudo publicado na Nature em 2020 mostrou que o mundo alcançou uma marca emblemática: a massa de materiais feitos pelo homem já ultrapassou toda a biomassa do planeta Terra.

Foi esse exemplo que o climatologista Paulo Artaxo usou para abrir a sessão, na esteira das discussões sobre o Antropoceno que haviam ocorrido na parte da manhã. Esse novo período geológico, em que o ser humano é capaz de alterar padrões geofísicos da própria Terra, tem nas mudanças climáticas sua mais emblemática representação.

Mas essa discussão não começou agora. Desde 1972, quando a Conferência de Estocolmo juntou líderes mundiais pela primeira vez ao redor do tema, já foram realizadas a Rio 92, a Rio +20 e 27 Conferências das Partes da ONU sobre o tema. “Para se ter uma ideia, só na COP 26, em 2021, se reconheceu o problema dos combustíveis fósseis, mas ainda não avançamos na retirada de subsídios do setor”, criticou Artaxo. “Por isso a descrença dos climatologistas nos acordos diplomáticos”.

Composição das emissões de Gases do Efeito Estufa (GEE) de 1990 a 2019. Em azul estão os GEE originados de combustíveis fósseis e da indústria, principais fontes de emissão (Dados: IPCC)

De acordo com o IPCC, no ritmo atual o planeta chegaria a uma elevação de 4°C na temperatura média em 2100. Isso significa um aumento médio de 5,5°C para o Brasil, e as consequências são alarmantes. Regiões como o vale do São Francisco e o leste da Amazônia já estão cerca de 2°C mais quentes. “O semiárido vai se tornar árido, e o Brasil inteiro ficará mais seco, imaginem o impacto na agricultura”, alertou Artaxo. “Outro problema são os eventos climáticos extremos, que se tornarão cinco vezes mais frequentes. Imaginem a degradação social que tudo isso causa”, alertou.

Para ele, não se trata mais apenas de reduzir emissões, a emergência climática requer uma rápida transformação da sociedade. Ele ressaltou que, para ficar nas metas traçadas, o mundo precisaria reduzir emissões em uma taxa de 5% ao ano até 2050. “Isso depende de inovações em transição energética, uso da terra, uso da água, captura de carbono e uma série de outras áreas. Muitas dessas tecnologias ainda nem existem, por isso a ciência básica é tão fundamental”, argumentou.

O Brasil possui uma série de vantagens em sustentabilidade que o tornam líder natural no debate. A matriz energética brasileira é comparativamente limpa e o país tem condições de cortar pela metade suas emissões, apenas combatendo o desmatamento. O potencial eólico e solar, sobretudo no Nordeste, também é significativo, assim como o fato de possuirmos experiência e programas consolidados de biocombustíveis. “Precisamos fazer valer essa vocação, essa década é fundamental para todo o resto do século 21”, finalizou.

Amazônia: um mosaico de florestas

A Amazônia não é uma floresta única: é um mosaico de florestas em disputa, e muitas delas já foram alteradas. A influência humana na maior floresta tropical do planeta não se dá apenas pela derrubada, mas por diversas formas de degradação. Essas florestas alteradas e degradadas perdem muito de seus serviços ecológicos, cruciais para as mudanças climáticas, e esse foi o foco da fala da Acadêmica Ima Célia Vieira, pesquisadora do Museu Paraense Emilio Goeldi.

Segundo ela, é impossível fugir da questão fundiária quando se trata da preservação da Amazônia. O grosso da apropriação de terras públicas na floresta se dá por latifundiários, muitas vezes de forma ilegal. O crime de grilagem é um problema recorrente, mas o trabalho dos órgãos de fiscalização é dificultado pelo amplo poder político dos donos de terra, em nível local e nacional. “Em comparação, temos 40% da Amazônia em posse de povos indígenas e tradicionais, e lá a destruição não avança. É urgente limitar o mercado de terras na floresta”, argumentou a Acadêmica.

Vieira lembrou do histórico de pesquisas ambientais na Região Norte, destacando que a floresta era mais resiliente à ação humana na década de 80 do que é hoje. O impacto do avanço da fronteira agrícola, com aumento no volume de queimadas, exploração madeireira e expansão de pastagens foi gradativamente enfraquecendo essa capacidade regenerativa da Amazônia. “Se nada for feito, a Amazônia pode ser reduzida à metade do original até 2050”, alertou.

Os impactos da fragmentação da mata, associados às mudanças climáticas que estão tornando as secas mais frequentes, já são sentidos na biodiversidade. Estudos recentes mostraram que a flora mais vulnerável à seca está desaparecendo e que áreas degradadas tem uma quantidade menor de espécies, o que dificulta esforços de restauração. “A degradação é um problema tão grande quanto o desmatamento, a floresta deixa de estocar carbono e passa a ser emissora”, explicou Ima Vieira.

Nesse sentido, a Acadêmica defendeu a inclusão da degradação no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). O plano, que havia sido extinto na gestão anterior, foi retomado no novo governo e deve ser ainda mais abrangente e guiado por ciência de ponta. Ela defendeu também os Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA), como uma forma de incentivar a preservação. “Tudo depende de governança, de coordenação dentro do pacto federativo. Vemos esforços muito fragmentados, é preciso continuidade e compreensão sobre as dinâmicas sociais do território”, apontou.

Os Acadêmicos Ima Célia Vieira, Paulo Eduardo Artaxo Netto e Carlos Alfredo Joly (Foto: Cristina Lacerda)

Crise da biodiversidade e do clima: duas faces da mesma moeda

Quando assinou o Acordo de Paris, o Brasil se comprometeu a restaurar 12 milhões de hectares de vegetação nativa até 2030, como forma de atingir as metas de redução de emissões. Entretanto, segundo dados de ONGs e outras fontes não-oficiais, apenas 79 mil hectares (0,68%) foram restaurados e o país permanece na estaca zero de suas obrigações.

A restauração como ferramenta para a preservação da biodiversidade e combate às mudanças climáticas foi o foco da apresentação do Acadêmico Carlos Alfredo Joly. Ele lembrou que a redução das emissões brasileiras passa fundamentalmente pela restauração. “Nenhum outro país consegue fazer tanto pelo combate às mudanças climáticas sem envolver outros setores da economia como nós”, disse.

O custo dessas iniciativas varia de acordo com o bioma e o estado de degradação do território. Para a Amazônia e a Mata Atlântica, o custo médio por hectare gira em torno de US$ 2 mil, enquanto para o Cerrado é um pouco mais alto, na faixa dos US$ 3 mil. Estimativas da iniciativa re.green mostram que restaurar áreas muito degradadas e com baixa regeneração natural pode ser dez vezes mais caro que áreas em melhor estado. “Nada é mais barato do que conservar”, resumiu Joly.

A preservação da biodiversidade é central nesses esforços e o Acadêmico defendeu que é preciso reconhecer e identificar alvos cruciais de preservação, como plantas eficazes na estocagem de carbono, espécies que dão sustentação à fauna, sobretudo a polinizadores, e espécies de interesse econômico, que possam atrair investimento e participação de comunidades locais.

Além disso, é preciso dominar técnicas de manejo de sementes, descobrindo formas de aumentar a produtividade do replantio. “Prática e pesquisa precisam caminhar juntos, nós temos grupos interessados capazes de acelerar o processo”, finalizou o Acadêmico.

Debate

Ao final das discussões, os integrantes da mesa debateram com os ouvintes no auditório do Museu do Amanhã. Observações e tendências sobre a atuação do novo governo foram levantadas. A presidente da ABC, Helena Nader, lembrou que a retomada dos investimentos, sobretudo do Fundo Amazônia, são um sinal positivo, mas falta articulação. “A questão climática deveria perpassar todos os ministérios, mas não estamos vendo isso”.

Para Paulo Artaxo, ainda é necessário um direcionamento mais claro para a transição energética, que precisa ser vista como prioridade. “Ciência nem sempre agrada aos ouvidos, mas é nossa obrigação alertar”, frisou.

 

#RMagna2023: esforço conjunto para acabar com a fome

Com 33,1 milhões de brasileiros passando algum grau de insegurança alimentar, como a ciência pode contribuir para remediar esta realidade? A Reunião Magna da ABC 2023 se debruçou sobre o tema na sessão plenária “Ciência para o combate à fome”, realizada no dia 11 de maio. Para um país que já conseguiu sair do Mapa da Fome, a situação de ter retornado a ele em 2022 é preocupante, já que fere gravemente um direito humano básico.

O quadro de insegurança alimentar apresenta vários níveis, sendo caracterizado pela condição de alguém que não consegue acesso pleno e contínuo a alimentos, e a fome é a forma mais grave. Por isso, a ciência não pode fugir do debate e precisa oferecer dados para políticas públicas que visam enfrentar o problema. A sessão contou com a mediação da diretora da ABC Mariangela Hungria, da Embrapa, com apresentações dos Acadêmicos José Oswaldo Siqueira (UFLA) e Ricardo Paes de Barros (Insper) e dos pesquisadores Antônio Buainain (Unicamp) e Dirce Marchioni (USP).

José Oswaldo Siqueira, Dirce Marchioni, Antônio Buainain, Mariangela Hungria e Ricardo Paes de Barros

Potência agrícola vs. milhões de brasileiros com fome

A fome é um processo fisiológico e uma dinâmica social que acompanha a humanidade há centenas de anos. Os diferentes meios de produção agrícola foram resultado de manejo humano para conseguir responder à necessidade de alimentação. Desde técnicas em menor escala até a industrialização, as ciências agrárias evoluíram para conseguir alimentar uma população crescente – 7,8 bilhões de vidas, segundo o Banco Mundial.

“No contexto da fome, a agricultura começou para fins de sobrevivência, depois se organizou como atividade familiar e foi evoluindo para um grande negócio tecnológico”, afirmou o engenheiro agrônomo José Oswaldo Siqueira, professor emérito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). O mercado está cada vez mais globalizado e capitalizado, com atuação de grandes corporações. Segundo Siqueira, é um negócio que movimenta cinco trilhões de dólares por ano.

“Hoje produzimos alimento suficiente para dez bilhões de pessoas. Mas como elas têm acesso a esses alimentos? A fome não é questão de escassez alimentícia, mas sim de pobreza e desigualdades”, diz o pesquisador. Em sua visão, a adoção de técnicas eficazes para otimizar a produção é um dos caminhos para apostar em qualidade, alto valor nutricional e preservação do meio ambiente.

“No Brasil, enfrentamos o paradoxo de representar 10% da produção global de alimentos e ter, ao mesmo tempo, mais de 33 milhões de brasileiros com insegurança alimentar”, reflete Siqueira. Para se tornar um dos líderes mundiais em agricultura, o país investiu em diversas tecnologias, como automatização, edição genética e manejo do solo, mas a fome persiste. “Este cenário ocorre porque as pessoas não conseguem comprar comida. A fome é muito mais intensa entre as mulheres, as pessoas negras e as pessoas com baixa escolaridade”, alertou.

Para erradicar a fome no mundo, segundo um estudo de 2021 publicado no periódico Food Policy, seriam necessários 39 a 50 bilhões de dólares por ano até 2030. No Brasil, Siqueira estima que 1% da produção total de alimentos seria suficiente para erradicá-la: “Apenas na lavoura, perdemos 10% da produção. É mais barato erradicar do que remediar as consequências. A sociedade precisa de ações imediatas com políticas públicas, melhorias na distribuição e no acesso, bem como no preparo para possíveis colapsos nos sistemas de produção futuramente”.

A fome e suas várias faces

Mais da metade dos países enfrenta fome por escassez de alimentos. A afirmação é de Antônio Márcio Buainain, professor livre docente do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). De acordo com ele, precisamos melhorar o diagnóstico sobre a fome e entendê-la de forma local, atentando para a realidade de cada país e sem generalizações.

“Quantos países do mundo não têm problema de produção de alimentos? Há diversos países com problemas de oferta e que importam de outras nações, o que agrava o acesso das pessoas aos alimentos necessários”, apontou. Portanto, a fome precisa ser tratada de acordo com o momento, a população e a localidade.

O segundo desafio, segundo Buainain, é combater desinformação, principalmente aquela produzida pela academia. “O debate sobre a fome e a insegurança alimentar vem da academia e há muitas narrativas que são pouco científicas”, alerta. Uma delas, segundo ele, é a crença de que a agricultura familiar produz cerca de 70% dos alimentos no Brasil. A importância desse tipo de produção não pode se basear em dados falsos, refutados desde 2015 em artigo científico, de acordo com o pesquisador. O índice rela seria de 25%, de acordo com o artigo referido.

Em sua opinião, as políticas de combate à fome que miram a erradicação da pobreza são importantes, mas não suficientes para enfrentar o problema em sua magnitude, já que a fome tem diversas facetas: “Temos a insegurança alimentar estrutural, mas há também aquela que se associa com as crises econômicas. A instabilidade, os conflitos, as guerras e crises do sistema financeiro requerem políticas públicas que apoiem as famílias de forma pontual, além das intervenções permanentes”.

Para acabar com a fome, a renda mínima é necessária

Para o Acadêmico Ricardo Paes de Barros – engenheiro eletrônico com mestrado em estatística e doutorado em economia -, professor do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, o problema da fome não é tão complexo no Brasil e é absurdo que ainda não tenha sido resolvido. Segundo dados apresentados por ele na sessão, o custo de uma das cestas básicas mais saudáveis é de R$ 664 reais por pessoa no mês.

“Para alimentar toda a nossa população com essa cesta, que é nutricionalmente equilibrada e que atende as necessidades calóricas, precisamos de R$ 679 bilhões de reais por ano. Na produção de alimentos, conseguimos cerca de R$ 789 bilhões por ano”, estima.

O problema está no poder aquisitivo da população, que é mal distribuído e ocasiona situações de pobreza extrema em diversas famílias. Outro aspecto que agravou o problema brasileiro foi o aumento dos preços. De janeiro de 2020 para cá, a inflação geral foi de quase 25%, mas o setor de alimentos e bebidas acumulou aproximadamente 40%.

Ainda assim, Barros nota que o cenário nacional foi melhor do que em outros países, justamente porque a produção de alimentos é muita alta por aqui: “Alimento no Brasil é mais barato do que em 70% dos países”. Ele explicou que se a agricultura brasileira não produzisse nos ritmos atuais, o preço dos alimentos no mercado nacional seria ainda mais alto, em função da desigualdade de renda no Brasil ser muito acentuada.

“O nosso problema é fazer com que os alimentos cheguem a quem precisa e que as pessoas tenham renda. Hoje em dia, o nosso programa de renda mínima, como o Bolsa Família, precisa ser maior que R$ 120 bilhões, e o novo orçamento atende essa expectativa, porque é da ordem de R$ 175 bilhões”, declarou Barros. O desafio, portanto, é fazer com que essa renda seja fiscalmente estável, contínua e que alcance quem precisa.

A qualidade da alimentação dos brasileiros

A comida representa valores culturais, religiosos e é motivo de sociabilidade. O mosaico da alimentação brasileira é constituído por tradições milenares, vindas de povos indígenas nativos, populações africanas, portuguesas e de outros países. Segundo a nutricionista e doutora em saúde pública Dirce Marchioni, professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), o padrão alimentar brasileiro vem mudando nas últimas décadas.

“Há cada vez mais participação de alimentos industrializados. Do início da década de 1970 ao início dos anos 2000, o brasileiro passou a comer mais carne, biscoitos, refrigerantes e menos arroz, feijões e raízes, por exemplo”, detalhou. 

Com as mudanças nos hábitos, algumas tradições permaneceram e outras foram derrubadas pelo atual estilo de vida. Em dez anos, de 2008 a 2018, o arroz e o feijão prevaleceram, mas houve redução na frequência de consumo de alguns alimentos, como o próprio arroz e feijão, frutas, carne bovina, pães, laticínios e carnes processadas. A tendência é observada independentemente do sexo, da idade e da faixa de renda.

“Grande parte da população não tem uma alimentação de qualidade. Há baixa adequação do consumo de frutas, verduras e legumes, bem como leite e derivados. Ao mesmo tempo, temos ingesta excessiva de carne e gorduras saturadas”, afirma Marchioni.

Por outro lado, um dado que vem apresentando estabilidade, segundo o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), é a redução da frequência de menores de cinco anos com altura reduzida e magreza acentuada. Na avaliação de Marchioni, o resultado é fruto do aumento de crianças atendidas pelo Sisvan em conjunto com políticas públicas para essa faixa etária.

Por último, a pesquisadora mencionou uma tendência preocupante em todo o mundo, que é a obesidade. Não basta só combater a fome: a alimentação adequada endereça, igualmente, questões de saúde pública: “A obesidade está intimamente ligada à elevação de risco para doenças crônicas e pode ser considerada má nutrição se a pessoa não se alimenta bem e com qualidade”.

#RMagna2023: Qualidade ambiental, políticas públicas e povos originários

A crise humanitária em curso na Terra Indígena Yanomami trouxe os olhares do mundo para a situação das populações indígenas brasileiras. Entre 2019 e 2022, morreram 570 crianças em uma população de cerca de 38 mil pessoas, o que levou muitos juristas a caracterizarem o cenário como genocídio. A principal causa da crise foi a invasão em massa de garimpeiros, estimulada pela desmonte de políticas públicas e órgãos de fiscalização.

A defesa dos povos originários também passa pela ciência e, por isso, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) realizou a sessão plenária “Qualidade ambiental, políticas públicas e povos originários”, em 10 de maio, durante sua Reunião Magna 2023. A coordenação da sessão ficou por conta do vice-presidente da ABC para a Região Norte, Adalberto Luis Val, e os convidados foram a advogada Samara Pataxó e o antropólogo Ricardo Ventura Santos.

Ricardo Ventura Santos, Adalberto Luis Val e Samara Pataxó

Val abriu a sessão lembrando do conceito de Saúde Única e como ele se aplica particularmente bem à questão indígena. A disrupção social causada pela invasão afetou profundamente o modo de vida tradicional dos yanomamis. Em paralelo, a destruição da terra e a contaminação por mercúrio expuseram os indígenas à mazelas como malária e fome.  “Clima, biodiversidade e sociedade estão acoplados. A saúde de seres humanos depende da saúde do meio ambiente e isso é muito claro na tragédia”, lembrou o Acadêmico.

Os indígenas e o Estado brasileiro

O termo “genocídio” foi criado no século XX para denominar um crime até então sem nome. Em 1948, a Convenção da ONU para a Repressão e Punição do Crime de Genocídio classificou como tal, entre outras ações, a “submissão intencional de um grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial”, o que sustenta as comparações com a situação dos Yanomami.

“A relação entre o Estado brasileiro e os indígenas é de extermínio, integração e tutela até a Constituição de 88, que pela primeira vez reconhece os direitos dos povos originários”, avaliou Ricardo Ventura Santos. As cicatrizes desse apagamento aparecem na nossa população, que possui a menor porcentagem de pessoas se autodeclarando indígenas na América do Sul – menos de 1%.

Apesar disso, dados mais recentes sugerem que as identidades tradicionais estão em alta. O Censo de 2010 apontava que existiam no país 817 mil indígenas. Deste então, a produção acadêmica e cultural só cresceu e, de acordo com dados preliminares do Censo de 2022, hoje são 1,6 milhão. “Esse crescimento reflete a demografia, mas, principalmente, se deve a um aumento no reconhecimento das próprias pessoas como indígenas”, explicou Ventura.

O Censo revela ainda a enorme diversidade desses povos. Em 2010, foram identificados no Brasil 305 etnias e 274 línguas originárias. Todo esse mosaico cultural guarda relações, hábitos e histórias distintas, mas a luta por direitos, sobretudo à terra, é pauta comum.

Comparação entre os últimos Censos do IBGE mostra crescimento no número de brasileiros que se autodeclaram indígenas

Movimento indígena e direitos fundamentais

A advogada Samara Pataxó pertence ao povo Pataxó da Terra Indígena da Coroa Vermelha, na Bahia. Ela compartilhou sua experiência na articulação jurídica dos povos tradicionais e destacou que a ADPF 709, movida no Supremo Tribunal Federal (STF) pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), foi um marco histórico nessa defesa. “Pela primeira vez, em nome próprio e com advogados próprios, os povos indígenas foram buscar seus direitos junto à mais alta corte do país”, afirmou.

Uma ADPF – Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental – é uma ação de controle de constitucionalidade movida quando se entende que algum preceito fundamental da Carta Magna não está sendo respeitado. No caso da ADPF 709, defendia-se que o governo precisava ser coagido a estabelecer ações mínimas de combate à pandemia entre os povos indígenas. “Durante a maior crise sanitária dos últimos cem anos, o que existia era uma estrutura acéfala nos órgãos competentes, que tinha dificuldade de realizar ações mínimas, quanto mais elaborar um Plano Nacional”, denunciou Pataxó.

Mas o precedente aberto pela ADPF não se restringe à covid-19. Para a advogada, o tema da saúde pública não pode ser dissociado da questão territorial, no caso dos povos indígenas. A demarcação e o respeito pelos territórios é central tanto para a proteção dos povos originários, quanto para a própria conservação ambiental. De acordo com dados da MapBiomas, entre 1990 e 2020 as terras indígenas perderam apenas 1% de sua área de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 20,6%.

“A mãe de todas as lutas é a luta pela mãe-terra”, afirmou Samara Pataxó, garantindo que as representações continuarão fazendo frente aos avanços sobre os direitos dos povos indígenas sempre que estes forem desrespeitados. “Nunca mais um Brasil sem nós”, finalizou.

teste