O último dia do 5º Encontro Nacional de Membros Afiliados da Academia Brasileira de Ciências (5º ENMA ABC) começou com uma notícia negativa para o setor. A proposta de Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2024, enviada pelo governo ao Congresso em 31 de agosto, manteve a proporção 50/50 entre recursos reembolsáveis e não-reembolsáveis do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). “Houve uma votação no Conselho Deliberativo do FNDCT para ter 60% em não-reembolsáveis, aquele investimento mais fácil e direto na infraestrutura científica nacional, mas não foi respeitada”, afirmou o vice-presidente regional da ABC SP, Glaucius Oliva.

Em resposta à notícia, as entidades que compõe a Iniciativa para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), da qual a ABC faz parte, lançou uma nota oficial manifestando sua “decepção” com a decisão do governo e lembrando que “após anos de perseguição à ciência, à educação, cultura, saúde e meio ambiente, esperávamos uma recuperação mais robusta, ainda que escalonada, no FNDCT”.

O financiamento é tema prioritário para a ciência nacional. Para debatê-lo, a ABC promoveu o encontro de seus afiliados com os presidentes de quatro instituições que são alicerces do sistema nacional de CT&I: Odir Dellagostin, do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap); Mercedes Bustamante, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); Celso Pansera, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep); e Ricardo Galvão, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Odir Dellagostin, presidente da Confap e presidente da Fapergs

Bases de dados organizadas, abertas e transparentes são fundamentais para o desenvolvimento de políticas públicas. O presidente do Confap, o Acadêmico Odir Dellagostin, trouxe uma análise de informações obtidas nas plataformas GeoCapes, Scival e outros repositórios nacionais, apresentando um retrato do financiamento público à pesquisa.

A primeira informação para compreender o sistema nacional de C&T é a correlação perfeita da produção científica brasileira brasileira com a pós-graduação. “A pesquisa cresce na mesma proporção que a pós-graduação”, afirmou Dellagostin, que encabeça o órgão onde reúnem-se todas as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) do país.

Apesar de ainda muito concentrada no Sudeste, a ciência vem se tornando verdadeiramente “nacional” nos últimos 20 anos. No ano 2000, Rio de Janeiro e São Paulo eram 57% da produção científica brasileira, já em 2022 são 41%. Outro ponto a ser destacado é que, tanto no mestrado quanto no doutorado, nem metade dos alunos recebe bolsa (38% e 48%, respectivamente).

A área vive uma crise de financiamento que, em parte, explica a queda de 7% na produção científica brasileira em 2022 – a maior no mundo inteiro. Os números mostram que o montante investido está nos mesmos patamares desde 2006, período em que o número de doutores formados por ano mais do que dobrou. É o mesmo volume de recursos para um sistema com muito mais profissionais.

Os dados também são importantes para entendermos o que cada agência financia. Com quase 80% das bolsas, a Capes é a principal fonte de recursos diretos para pesquisadores no país – lembrando que, na pós-graduação, as bolsas funcionam praticamente como os “salários” dos cientistas. Já CNPq e FAPs têm papel maior no financiamento a projetos, cobrindo outros custos inerentes às pesquisas, para além da remuneração dos pesquisadores. Para Dellagostin, devemos ter em mente essas vocações e delimitar melhor qual o papel de cada agência dentro do ecossistema.

Mas há exceções. No Amazonas, por exemplo, quase 70% das bolsas são pagas com recursos da Fapeam. Um olhar atento às necessidades e à capacidade das Fundações de cada estado é fundamental, além da sempre presente necessidade de aumentar o investimento. “A contribuição das FAPs é de apenas 0,086% do PIB nacional. Precisamos ampliar esses valores se realmente quisermos produzir CT&I relevante em nosso país”, finalizou Dellagostin.

Mercedes Bustamante, presidente da Capes

Para a presidente da Capes, Mercedes Bustamante, o fato de dois terços dos alunos de mestrado e doutorado atuarem sem bolsas no país é consequência da rápida expansão da pós-graduação no país. “De certa forma, pagamos o preço do nosso próprio sucesso, por ter um sistema que cresceu muito mais do que as bolsas poderiam acompanhar”, disse.

Ela defendeu que, para conseguir continuar crescendo de forma racional e a longo prazo, a avaliação das pós-graduações feita pela Capes deve ser tratada como prioridade, algo que não ocorreu no último governo. “Estamos vendo um movimento preocupante de entrada de novos atores privados na pós-graduação, assim como já ocorreu para a graduação. As pressões que isso gera faz com que corramos o risco de aprovar novos cursos sem a qualidade devida”, alertou.

Entretanto, o projeto de LOA para 2024 destina à Capes um orçamento menor do que para 2023, embora mais cursos e mais bolsas precisem ser pagas. “Essas indefinições ano a ano não combinam com os ciclos longos necessários à ciência e educação. O investimento não pode ser algo pelo qual se precise brigar todo ano”, criticou.

Outro ponto abordado por Bustamante foi o acesso aberto. Em 2018, um consórcio internacional de entidades de financiamento e pesquisa – sobretudo de países desenvolvidos – criaram o Plano S, que estabeleceu que todas as pesquisas financiadas com recursos públicos deveriam ser publicadas em plataformas e repositórios de acesso aberto. A motivação é nobre, mas no atual ecossistema de publicações científicas, isso significa um acréscimo significativo no valor pago pelos próprios cientistas para publicar seus estudos, afetando principalmente os países em desenvolvimento. “Hoje somos um país rico demais para ter acesso às isenções previstas no Plano S e pobres demais para arcar com os altos custos de publicação”, lamentou.

O Brasil é um país com experiência na infraestrutura de acesso aberto, com plataformas de excelência como a Scielo e a bem-sucedida política dos Periódicos Capes, onde a agência centraliza a assinatura de centenas de revistas científicas e disponibiliza para os pesquisadores do sistema nacional. Com um orçamento de R$ 440 milhões, a plataforma tem 459 mil usuários cadastrados e foi acessada 263 mil vezes apenas em 2022. “Ao centralizarmos as negociações, ganhamos poder de barganha com as editoras e conseguimos diminuir os custos para o país”, argumentou Bustamante.

Mas com o impulso pelos novos modelos de acesso aberto, o formato da plataforma deverá ser repensado. Enquanto a Capes paga hoje pelo acesso, provavelmente terá de focar no pagamento de taxas de publicação futuramente, o que demanda todo um redesenho da plataforma. “Acima de tudo, precisamos evitar o duplo pagamento, quando pagamos para publicar e ler”, finalizou.

Os Acadêmicos Mercedes Bustamante, presidente da Capes, e Odir Dellagostin, presidente do Confap

Celso Pansera, presidente da Finep

A Finep é uma empresa pública associada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) que concede recursos reembolsáveis e não-reembolsáveis à instituições de pesquisa e empresas brasileiras. O apoio da Finep se dá em todas as etapas do desenvolvimento científico, desde à pesquisa básica até a inovação. “A comunidade tende a conhecer menos a Finep, pois esta financia instituições e não pessoas, como é o papel da Capes e CNPq”, relatou o presidente da entidade e ex-ministro da CT&I, Celso Pansera.

Ele argumentou que há um descompasso entre o ritmo em que o país produz ciência e o que a transforma em melhorias sociais.  Uma das consequências disso é a dificuldade da economia nacional de absorver  talentos. “É preciso gerar uma economia de inovação, até como forma de empregar e colocar para atuar na prática aqueles que se formam nas universidades”, disse.

Pansera lembrou que a Finep perdeu 30% de seus servidores desde 2015, o que afeta sua capacidade de atuação. Ele defendeu também um modelo de investimento orientado pelos grandes desafios nacionais, que em grande parte estão contemplados nos quatro grandes eixos definidos pelo MCTI, são eles: (I) Recuperação, Expansão e Consolidação do Sistema Nacional de CT&I; (II) Reindustrialização em Novas Bases e Apoio à Inovação nas Empresas; (III) CT&I para Programas e Projetos Estratégicos Nacionais e (IV) CT&I para o Desenvolvimento Social.

Em outro ponto abordado, o presidente destacou a importância dos recursos não-reembolsáveis no financiamento à CT&I. Embora essa modalidade de crédito não deva ser a prioritária – pois está mais sujeita a contingenciamentos e é de mais difícil acesso que o investimento direto – ela cumpre um papel importante tanto no fomento quanto no re-investimento no FNDCT. “Operações de créditos ao setor privado já fez com que a Finep reintroduzisse mais de R$9 bilhões no FNDCT”, destacou.

Pansera lembrou que o país investe pouco, em porcentagem do PIB, em pesquisa. Enquanto estamos num patamar de 1,2% do PIB em CT&I, a maior parte dos países desenvolvidos investe mais de 2%. Outra importante forma de fomento são as compras públicas e, de novo, estamos abaixo. Enquanto nos países da OCDE a média das compras públicas em tecnologia está em 29%, no Brasil é de apenas 12%.

Algumas ações podem servir para começarmos a mudar esse cenário. O Projeto de Lei 5876/2016, que tramita no Congresso e propõe que 25% do Fundo Social do Pré-Sal – cuja própria existência é consequência direta do investimento em ciência – seja destinado ao FNDCT. Outra alternativa são emendas à atual Lei 13800/2019, chamada “Lei dos Endowments”, que rege os usos de fundos patrimoniais e filantrópicos no país. “A Lei dos Endowments foi aprovada no último governo com vetos sobre a dedução de impostos, o que retira contrapartidas e incentivos, indo na contramão dos países desenvolvidos”.

Carlos Aragão, Acadêmico, Helena Nader, presidente da ABC e Celso Pansera, presidente da Finep

Ricardo Galvão, presidente do CNPq

A ciência brasileira é resiliente, mas está no seu limite. Foi assim que o presidente do CNPq, Ricardo Galvão, abriu a apresentação final do 5º ENMA. Ele lembrou que o FNDCT é um exemplo de política de Estado bem-sucedido e de longo prazo e expôs algumas de suas prioridades à frente do CNPq no investimento do fundo.

Para Galvão, o CNPq não deveria focar em bolsas, como faz a Capes, e se fortalecer no fomento às demais etapas da pesquisa. Durante o debate, os membros afiliados da ABC defenderam a importância das bolsas de produtividade do CNPq no estímulo à prática científica dentro das universidades e criticaram os atuais valores e número de bolsas dessa categoria. O presidente do CNPq reconheceu a legitimidade na demanda dos jovens cientistas, mas reforçou que sua prioridade é o fomento.

As bolsas de produtividade possuem um caráter duplo. Além do estímulo financeiro a quem faz pesquisa de excelência, elas conferem um certo status que tem forte influência na competição por financiamento. Acadêmicos argumentaram pela criação de novas formas de reconhecimento aos cientistas, que não necessariamente envolvam recursos, para que mesmo aqueles com menos financiamento possam competir em pé de igualdade.

Outra crítica dos afiliados se deu sobre a Chamada Universal do CNPq de 2023. O incentivo a projetos interdisciplinares e com equipes maiores não foi bem recebido por parte da comunidade científica, para qual o novo modelo prejudica o caráter individual de cada laboratório. Galvão defendeu que o modelo anterior pulverizava demais os projetos, influenciando negativamente na avaliação. “Hoje temos uma quantidade menor de submissões, feitas por projetos maiores, isso melhora a qualidade da tomada de decisão e reduz a pulverização nas ações”, disse.

Por essa opção por investimentos mais focalizados em missões nacionais, o presidente do CNPq apresentou os dez programas estruturantes que nortearão os investimentos do FNDCT nos próximos três anos, são eles:

  1. Programa de Recuperação e Expansão da Infraestrutura de Pesquisa Cientifica e Tecnológica em Universidades e ICTs (Pró-Infra): Previsto para setembro, o Pró-Infra pretende empenhar recursos na recuperação, expansão e modernização da infraestrutura de pesquisa, apoio a projetos que dialogam com as prioridades estratégicas e alavancagem de investimentos no interior e sobretudo nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
  2. Programa de Inovação para Industrialização em Bases Sustentáveis (Mais Inovação Brasil): Programa integrado de apoio à inovação empresarial para a transição ecológica, visando promover a reindustrialização nacional com base em conhecimento de ponta e objetivando a transição energética, a descarbonização da economia e a proteção de nossos biomas. 
  3. Programa de Difusão e Suporte à Transformação Digital (Conecta e Capacita Brasil): Programa para promoção da conectividade digital em todo o território, integrado a um esforço massivo de capacitação digital nas escolas, sobretudo voltadas às populações em maior vulnerabilidade socioeconômica.
  4. Programa Integrado de Desenvolvimento Sustentavel na Regiao Amazônica (Pró-Amazônia): Programa visando o desenvolvimento sustentável e soberano da Amazônia, voltado à consolidação das instituições de CT&I na região, à promoção de conhecimentos sobre sua diversidade biológica e humana e ao desenvolvimento de uma bioeconomia que proteja a floresta.
  5. Programa de Repatriação de Talentos (Conhecimento Brasil): Esforço para atrair de volta pesquisadores brasileiros que saíram do país, de forma a fixá-los em instituições e empresas nacionais, com foco nas áreas estratégicas e na redução das assimetrias regionais.
  6. Programa de Apoio à Políticas Públicas Baseadas em Conhecimento Científico (Política com Ciência): Estruturação de redes cooperativas de pesquisa sobre formulação, execução e avaliação de políticas públicas com base em dados e métricas adequadas e respaldadas pela ciência.
  7. Programa de Apoio à Recuperação e Preservação de Acervos Científicos, Históricos e Culturais Nacionais (Identidade Brasil): Focado na preservação, divulgação e restauração de acervos científicos, históricos e culturais brasileiros, com foco na digitalização e difusão através de apps e novos softwares.
  8. Programa de Apoio à Projetos Estratégicos Nacionais: Promover a capacidade e autonomia científica e tecnológica em setores críticos e transversais. Exemplos são o Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), o Projeto de Satélite de Observação Terrestre (Missão CBERS 6) e o Laboratório Nacional de Máxima Contenção Biológica NB4 – o primeiro da América Latina e incluído no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
  9. Programa de Promoção da Autonomia Tecnológica na Área da Defesa: Objetiva promover a autonomia científica e tecnológica em áreas críticas para a soberania nacional, priorizando projetos e arranjos transversais que possibilitem superar bloqueios à transferência tecnológica do exterior.
  10. Programa de Ciência, Tecnologia e Inovação para a Segurança Alimentar, a Erradicação da Fome e a Inclusão Socioprodutiva: Visa o desenvolvimento de soluções sustentáveis no combate à miséria e à fome, estruturando arranjos produtivos locais e inovações na geração de renda e emprego, considerando as múltiplas realidades espalhadas pelo Brasil.
O Acadêmico Ricardo Galvão, presidente do CNPq

Confira tudo sobre o 5º Encontro Nacional de Membros Afiliados ABC:

5º Encontro Nacional de Membros Afiliados em SP: 1ª Sessão

Evento na USP reuniu a categoria de jovens cientistas da Academia. Primeira sessão tratou da profunda integração entre o desafio climático e a preservação da biodiversidade.

2ª Sessão do 5º Encontro Nacional de Afiliados debateu desafios ambientais

Afiliados e os convidados Joana Angélica da Luz, reitora da UFSB, e o Acadêmico Carlos Nobre refletiram sobre os imperativos ambientais e o potencial do Brasil para ser protagonista na área.

3ª sessão do Encontro Nacional de Afiliados apresenta Perfil do Jovem Cientista Brasileiro

Projeto liderado e conduzido por afiliados da ABC buscou traçar a situação e as principais questões que afetam a vida dos cientistas nacionais em início e meio de carreira.

4ª sessão do 5º Encontro Nacional de Afiliados debate inovação no Brasil

Atividade fechou o segundo dia de encontro e contou com palestras dos afiliados Bruno Gimenez, Maurício Cherubin e Vinícius Campos.