A trajetória na carreira científica costuma caracterizar-se por sua estabilização tardia. Em geral, pesquisadores são efetivamente contratados pelas universidades somente após se tornarem doutores, e a maioria ainda atravessa um período de pós-doutorado. Nesse período, as bolsas desempenham um papel crucial no sustento desses profissionais, efetivamente constituindo a principal fonte de renda. Além das bolsas de mestrado e doutorado, uma modalidade não tão amplamente difundida, mas de extrema importância, que é a bolsa de iniciação científica. Apesar dos valores modestos, essas bolsas são fundamentais para a permanência de muitos estudantes de graduação.
O caso da professora Gardênia de Sousa Pinheiro, eleita membra afiliada da Academia Brasileira de Ciências no período 2023-2027, ilustra a relevância da bolsa de iniciação científica. Hoje, doutora em física, ela relata que um dos fatores determinantes para a escolha dessa área foi a perspectiva de obter um estágio com bolsa de iniciação científica logo no início da graduação, única forma que teria de se manter na faculdade.
Nascida em Itapiúna, no interior do Ceará, Gardênia cresceu na capital, Fortaleza. Em um ambiente com poucas crianças na sua idade, era uma menina quieta, observadora e muito dedicada aos estudos, co m clara vocação para matemática. “Eu assimilava rapidamente o conhecimento,sem grande esforço. Minha mãe, percebendo isso, sempre procurava estimular o meu raciocínio me presenteando com jogos”, lembrou.
Outro fator determinante para sua carreira científica foi sua escolha, durante o ensino médio, pelo curso técnico em informática industrial no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Lá, teve a oportunidade de conhecer excelentes professores de física, a quem começou a admirar e a se espelhar. Embora a escolha óbvia apontasse para a área de computação, Gardênia percebeu que a Física poderia proporcionar-lhe uma base mais sólida no início de sua jornada universitária. “Em conversas com meus professores, percebi que na área da Física eu teria mais oportunidades de conquistar uma bolsa de iniciação científica logo no início do curso, o que representaria um significativo apoio financeiro”, observou.
Dessa forma, Gardênia ingressou na Universidade Federal do Ceará (UFC) e, imediatamente, buscou uma oportunidade de estágio. “Na segunda semana de aulas, procurei o professor Francisco Erivan de Abreu Melo, que indagou sobre minhas habilidades em eletrônica e programação. Naquele momento, ele necessitava de alguém com o perfil para cuidar da parte de instrumentação do laboratório.”
Durante esse período, Gardênia inicialmente ficou responsável pelo desenvolvimento de software no laboratório, porém, logo se apaixonou pelo objeto principal de pesquisa: os cristais. Na ciência, os cristais são definidos como materiais sólidos cujas unidades constituintes, sejam átomos ou moléculas, se organizam de maneira tridimensional, adotando formas geométricas bem definidas. “O que me fascina é que, dependendo de suas propriedades, os cristais podem ser utilizados de maneiras extremamente diversas na indústria”, explicou.
Na área de pesquisa com cristais, Gardênia realizou mestrado e doutorado, aplicando técnicas como difração de raios-X, espectroscopia Raman e infravermelho, bem como análise térmica, a fim de compreender o comportamento desses materiais em condições extremas de temperatura e pressão. Esse processo permite antever como esses materiais se comportarão em processos industriais, incluindo aplicações na indústria farmacêutica. Ao longo de sua jornada de graduação, mestrado e doutorado, recebeu orientação de diversos professores: foi orientada por Francisco Erivan de Abreu Melo, coorientada por Paulo de Tarso Cavalcante Freire e colaborou com Josué Mendes Filho e Alejandro Pedro Ayala. “Todos são exemplos de cientistas para mim, seja na dedicação, na competência ou na liderança que exercem“, enfatizou.
Após obter o título de doutora em 2013, Gardênia alternou períodos de pós-doutorado entre a UFC e a Universidade Claude Bernard, em Lyon, na França, até ser contratada como professora de física na Universidade Federal do Piauí (UFPI). “Além de atuar como professora e cientista, agora pretendo contribuir para o fortalecimento da pesquisa científica no Piauí como membra da ABC”, ressaltou.
Sua entrada na Academia Brasileira de Ciências ocorreu em um momento oportuno. Gardênia retornou de sua licença-maternidade na metade de 2022, após o nascimento de sua filha, Nina, que completou dois anos e com quem agora compartilha a vida. “A nomeação como membra afiliada da ABC ocorreu em um momento significativo de minha trajetória profissional e pessoal. Considero-o um reconhecimento de minha dedicação à física e à academia”, concluiu.