Paulo Cruz Terra, novo afiliado da ABC

O Brasil vive no presente as contradições mal resolvidas de seu passado e compreendê-las é crucial para pensarmos nosso futuro. É com esse intuito que a Academia Brasileira de Ciências (ABC) recebe seu novo afiliado, o historiador Paulo Cruz Terra, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em história do trabalho e história do Rio de Janeiro.

No início de 2023, com o surgimento de denúncias sobre trabalho análogo à escravidão em vinícolas do Sul e em um grande festival de São Paulo, voltou à tona no Brasil a maior ferida não cicatrizada de seus cinco séculos: o trabalho escravo. Entender como se deu a transformação – e as continuidades – nas relações de trabalho desde 1888 até hoje é um dos objetivos intelectuais de Paulo Cruz Terra.

Sua trajetória é prova da importância do estímulo à leitura desde cedo na vida de uma criança. Criado em Campos dos Goytacazes, RJ, Paulo teve acesso às bibliotecas da família e do SESC da cidade, onde adquiriu o gosto por literatura latino-americana e romances policiais. “Tive muita sorte de ter contato cedo e contínuo com a literatura. Uma mãe leitora, uma avó leitora – mesmo tendo estudado só até a oitava série – e tios leitores vorazes, todos serviram de exemplo”, contou.

Durante a infância rodeada de afeto, Paulo passava o tempo inventando todo tipo de brincadeiras com as irmãs mais velhas. “Brincávamos muito de dar aula e confesso que riscamos alguns livros da biblioteca da minha casa fingindo corrigir provas”, relembrou. Livros, aliás, sempre estiveram presentes nas memórias afetivas, desde os contos de fada que ganhou de seu avô, até obras que eram mantidas longe das crianças. “As coleções de Jorge Amado eram proibidas na infância, mas uma vez roubei ‘Gabriela’ para ler escondido”, revelou.

Da família também herdou o interesse pela luta política, pela valorização dos serviços públicos e pelo combate às desigualdades, temas que sempre permearam sua trajetória acadêmica. A escolha por história se deu em parte graças às aulas que teve no Liceu de Humanidades de Campos, sobretudo as lições da professora Denise. Mas a influência definitiva apareceu na hora do vestibular, quando sua vida passaria por uma grande mudança.

Na época dividido entre cursar cinema ou jornalismo, Paulo foi estimulado a prestar vestibular para história na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) por Silvia Cristina Souza, amiga de sua mãe e doutoranda na área. “Silvia, a quem carinhosamente chamo de Tininha, foi a minha primeira inspiração, a quem agradeço muitíssimo pelo convite e pela acolhida na sua casa, com sua maravilhosa família”, recorda.

Na graduação, Paulo Terra descobriu que queria ser pesquisador, fazendo iniciação científica no Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) sob orientação da professora Silvia Hunold Lara. “O projeto tinha como objetivo a análise de imagens de viajantes sobre a escravidão, e logo escolhi investigar os trabalhadores negros envolvidos no carregamento pelas ruas do Rio de Janeiro no século XIX. Essa pesquisa acabou pautando toda a minha carreira”.

Após se formar em 2005, Terra retornou ao estado do Rio, dessa vez para Niterói, e ingressou na pós-graduação na UFF. Sob orientação da professora Gladys Sabino Ribeiro, fez mestrado e doutorado estudando a situação dos carregadores e carroceiros negros no Rio de Janeiro entre 1824 e 1906, antes de depois da Abolição, portanto. “Tive o privilégio de conviver com professores a quem lia e admirava. Além de minha orientadora, com quem aprendi o ofício da pesquisa, cito também Marcelo Badaró Mattos, Martha Abreu e Ismênia Martins”, lembrou Terra, que anos depois se tornaria colega de trabalho de suas referências científicas.

No doutorado, Terra teve a oportunidade de internacionalizar sua carreira, passando uma temporada em Portugal como parte de um projeto de pesquisa coletivo. Também fez pós-doutorado no Centro de Estudos sobre Dependência e Escravidão, em Bonn, na Alemanha, graças a uma bolsa da Capes. “Reforço a importância do financiamento público em minha trajetória, desde a iniciação até o pós-doutorado”, afirmou o Acadêmico.

Atualmente, estuda as relações entre criminalização, trabalho e a interseção entre classe, gênero e raça. Em um de seus projetos investiga as conexões entre a proibição da vadiagem e as mudanças nas relações de trabalho no período da Abolição, tanto no Brasil quanto nas colônias portuguesas na África. “Uma das evidências encontradas é a ampla circulação internacional de discursos racistas semelhantes, que reforçavam a ideia de uma ociosidade natural dos negros para justificar medidas que os obrigassem a trabalhar de forma precária”, explicou Terra.

Em outro projeto com o qual colabora, Paulo Terra compara dois momentos históricos em que uma nova tecnologia foi introduzida no policiamento urbano. Hoje em dia, com as câmeras de reconhecimento facial por inteligência artificial, e no final do século XIX, com a fotografia. “Tenho estudado como a sociedade civil questiona o uso de novas tecnologias por parte da polícia, apontando que sob o discurso da ‘neutralidade’ das invenções científicas se opera o aumento do controle de parte da população, principalmente de trabalhadores e negros”.

Agora na ABC, o novo Acadêmico chama atenção para o fato de ter sido o único afiliado das Humanidades eleito em 2023, e pretende lutar para trazer mais visibilidade à área. Dentre as ideias que traz consigo, Paulo pretende construir um projeto de história oral com membros da Academia, revisitando momentos marcantes da trajetória institucional, inclusive as lutas recentes contra o obscurantismo científico.

“É um enorme engano acreditar que a pesquisa em história está ligada somente ao passado. Não importa quão antigo seja o objeto, as perguntas são pautadas por questões do presente. Muito recentemente tivemos embates em torno de interpretações históricas que positivavam, entre outras coisas, a escravidão. Isso reforça que história não pode ser questão de opinião: é uma área da ciência com métodos consolidados.” 

Se o amor por livros veio de berço, ele foi reforçado depois que Paulo conheceu o marido, professor de Letras, com quem atualmente compartilha a vida. “Além da paixão pela leitura que ambos cultivamos, filmes e músicas complementam nossos momentos de fruição do cotidiano”.