Antonio Galves

Matemático, Professor Titular da Universidade de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Ciências.

Vou contar duas histórias ocorridas há cerca de 2.000 anos. Duas histórias que ocorreram no mundo da ciência. Duas histórias trágicas: um incêndio e um assassinato.

Aproximadamente um século separa uma história da outra. Mas um elo simbólico parece ligá-las E, tristeza suprema, ambas parecem se repetir nos dias de hoje.

Alexandria era então o centro do mundo científico. E a grande biblioteca era o centro da vida cultural de Alexandria. A maior biblioteca do mundo fundada pelo rei Ptolomeu I, dito o Salvador, sucessor de Alexandre, o Grande.

A grande biblioteca, repositório do saber acumulado em sua época, era também um centro de pesquisa ativo e uma universidade. Mestres e alunos ali se encontravam, no estudo e na busca de novos conhecimentos.

Um incêndio destruiu tudo aquilo. Uma parte importante da memória e do saber acumulado até então partiu em chamas, junto com os laboratórios e as salas de aula.

Reduzida a cinzas várias e repetidas vezes. Na verdade, o incêndio não foi um só, foram vários, incêndios e atos de vandalismos. Uma sucessão de tragédias anunciadas, o fogo ocorreu uma vez, outra, até não deixar mais pedra sobre pedra.

A primeira vez aparentemente por descuido do futuro imperador Júlio César que, para se proteger de um ataque, incendiou os cais da cidade, sem atentar para o perigo do fogo se espalhar. A segunda vez, por obra deliberada do imperador romano Aureliano que atacou e incendiou a cidade que se rebelara contra seu domínio. Mais tarde, uma das estruturas anexas à biblioteca foi queimada junto com templos pagãos por ordem do patriarca Teófilo de Alexandria. Assim repetidamente até sua destruição final pelo exército do Califa Omar.

Moral da história: a grande biblioteca ardeu vítima da incúria, do descaso, da selvageria repetidos dos poderosos da época que pouco ligaram para a proteção e salvaguarda daquele tesouro científico inestimável.

Reduzida a cinzas sua grande biblioteca, a cidade definhou como centro de ensino e pesquisa. Hoje em dia, Alexandria é uma cidade que ocupa um lugar muito periférico no mapa-mundi da ciência.

A segunda história ocorrida também em Alexandria, fala de uma mulher, cientista notável, brilhante matemática e astrônoma. Seu nome era Hipátia. Saindo do trabalho num anexo da biblioteca, em pleno dia, ela foi arrancada de seu carro por uma multidão de fanáticos religiosos, arrastada pelas ruas da cidade até uma igreja, onde foi assassinada. Os assassinos de Hipátia diziam-se cristãos.

Qual era o crime de Hipátia? Obviamente o simples fato de ser mulher e cientista bastaria para despertar a fúria de fanáticos religiosos. Conjectura-se também que o bispo de Alexandria ordenou seu assassinato em represália ao papel político que Hipátia exercia, como conselheira do prefeito da cidade .

Hipátia, a primeira mulher matemática conhecida, linchada por fanáticos religiosos. De sua obra científica quase nada sabemos. Conjectura-se que certos comentários de textos clássicos sejam de sua autoria. Mas de seguro mesmo, de toda a sua vida de pesquisadora só nos restou a memória horrenda do seu assassinato.

O ódio à ciência e ao ensino é o funesto elo ligando essas histórias entre si. O assassinato de Hipátia e a destruição da grande biblioteca são expressões extremas desse ódio que atacando instituições científicas e cientistas tirou o brilho da cidade de Alexandria, outrora centro do mundo civilizado.

Essas histórias ecoam tragicamente no Brasil neste mês de setembro de 2018. Seis meses depois do assassinato da socióloga Marielle Franco, vereadora eleita da cidade do Rio de Janeiro, um incêndio destruiu o Museu Nacional, mais antiga instituição científica brasileira que completa seu segundo centenário reduzido a cinzas.

Nestes dias de cinzas e luto, é preciso ler o manifesto assinado conjuntamente pela Academia Brasileira de Ciências e pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência junto com dezenas de sociedades científicas. Convido todos os leitores do blog Ciência e Matemática a lerem e divulgarem esse texto solene. Um país que não protege suas instituições científicas, um país que não preserva sua memória histórica não tem futuro.

A carta da Academia pode ser lida no endereço

http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/a-vida-e-a-morte-da-ciencia-e-da-memoria-nacionais/