Por Tiago da Mota e Silva, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), graduado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero (FCL) e pesquisador em Comunicação desde 2012. É membro do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (CISC). Investiga temas relacionados à Ecologia da Comunicação, conservação ambiental e mudança climática. 

O biólogo canadense Chris Wood trabalha com peixes em embarcação, durante expedição na Amazônia

No dia 21 de novembro de 2023, um grupo de 18 cientistas partiu de Manaus em um barco Amazônia adentro para uma expedição. Dentre esses homens e mulheres, há uma das maiores referências no estudo da fisiologia de peixes: o biólogo canadense Chris Wood — que certamente não é um estranho a viagens deste tipo.

Em 1976, Chris esteve na lendária expedição do Alpha Helix, barco que serviu de apoio para pesquisas de europeus, norte-americanos e sul-americanos pelo Rio Negro e pelo Rio Solimões. De lá para cá, Manaus é como uma segunda casa do pesquisador, que mal sabe precisar quantas vezes já esteve por aqui.

Além da Amazônia, Chris também já fez expedições pela América do Norte e pela África. Em cada uma delas, aprendeu a se virar. “Não existe um experimento perfeito”, conta Chris. Então é preciso se adaptar e improvisar diante de imprevistos. Pelo menos assim foi em Nairóbi, capital do Quênia, onde ele transformou garrafas de cerveja em respirômetros, recipientes nos quais é possível medir a respiração de peixes.

“Para mim, tudo se resume a essa experiência de ir a campo e trabalhar com animais na natureza, e não os domesticados de laboratório”, explica Chris, empolgado em estar na Amazônia.

Desta vez, o experiente cientista de 73 anos está investigando os limites em que alguns animais do Rio Negro, sobretudo um peixe chamado bodó, são intoxicados por cobre. Infelizmente, concentrações deste metal em níveis acima dos estabelecidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) são registrados, por exemplo, nos igarapés de Manaus, muito devido à poluição.

Chris é uma memória viva de como, com o tempo, a cidade de Manaus mudou e cresceu, e do como os ecossistemas amazônicos têm passado por transformações significativas. Neste ano, a região passou pela pior seca já registrada na história, com o Rio Negro chegando a níveis abaixo dos 13 metros de profundidade, segundo o Porto de Manaus.

Em 2022, Chris e o cientista brasileiro Adalberto Val assinaram um artigo prevendo toda sorte de dificuldades para os peixes da Amazônia diante das alterações climáticas. Não imaginaram, porém, que algumas de suas previsões ocorreriam já em 2023, em meio à seca: águas mais quentes com menor disponibilidade de oxigênio, por exemplo, levam a uma perda severa nas suas populações, ainda sequer contabilizada.

Nessa entrevista, Chris comenta sobre suas experiências de campo no sétimo de 15 dias de expedição. Além disso, opina sobre o atual momento do Brasil e da pesquisa: “agora é o momento para os cientistas pressionarem por bolsas para estudantes e por investimentos em educação.”

Como você está se sentindo no sétimo dia de expedição?

Estou realmente muito feliz por estar aqui. É sempre uma aventura fantástica realizar essas viagens de pesquisa na Amazônia. Claro, temos os problemas habituais que acompanham essas viagens, mas a pesquisa é muito empolgante. Estamos vendo muitas espécies de peixes e, atualmente, estamos nos concentrando mais nos bodós.

Li sobre uma história envolvendo você e salmões no rio Bella Coola. Olhando para os primeiros anos do seu trabalho e a experiência que você tem agora, quais são as principais diferenças?

Claro que as perguntas mudam ao longo do tempo e a tecnologia também muda. Mas, para mim, tudo ainda se resume à experiência de levar o laboratório para o campo e trabalhar com os animais recém-coletados na natureza, não com animais domesticados que nunca estiveram realmente no mundo real. E sempre há aqueles problemas imprevistos que enfrentamos ao trabalhar no campo. Nada funciona exatamente como se espera, e então é preciso se adaptar, mudar o plano. É realmente importante ser flexível. Acho que a história sobre a qual você está falando é quando estávamos colocando sondas de fluxo sanguíneo em salmões desovando no rio Bella Coola e fizemos um pequeno cercado com rochas para manter os peixes lá depois de uma cirurgia bastante extensa. Naquela época, as sondas valiam bastante dinheiro, provavelmente mil dólares canadenses [R$ 3.600 na cotação de hoje]. Na manhã seguinte, os peixes tinham escapado. E naquele rio havia cem mil peixes. Então, tivemos que vasculhar o rio para cima e para baixo procurando pelo nosso salmão, mas nunca o encontramos. Acabamos tendo que coletar dados de outro peixe.

Então, esse é um exemplo das suas habilidades de improvisação.

Acho que sempre temos que improvisar. Não existe algo como um experimento perfeito.

Imagino que suas habilidades de improvisação tenham melhorado muito com o tempo. Na atual viagem que está realizando na Amazônia, já houve algum momento de improvisação?

Bem, ontem estávamos tentando fazer o que chamamos de estudos de CTmax, que é medir a temperatura crítica do peixe colocando-o em um recipiente e ir gradualmente aquecendo a água. Mas os peixes estavam escapando do nosso recipiente porque eram muito pequenos para eles. Como trouxemos algumas meias-calça conosco para manter as amostras no nitrogênio líquido, tivemos a ideia de colocá-las ao redor do recipiente e funcionou. É um exemplo de uma adaptação simples que podemos fazer no campo.

Li sobre uma solução que você encontrou com garrafas de cerveja, eu acho…

As garrafas de cerveja, claro! Isso foi no Quênia. Naquele caso, não tínhamos equipamento, porque tudo foi confiscado pelas autoridades aduaneiras. Tivemos que improvisar em tudo. Precisávamos de respirômetros em que coubessem esses pequenos peixes de dois gramas. Então, bebemos essas garrafas de cerveja, que eram do tamanho perfeito, e pudemos usá-las como respirômetros.

Desculpe, mas como mesmo você esvaziou essas garrafas?

Com dificuldade! (risos) A primeira parte foi muito fácil, tirar o peixe da garrafa é muito mais difícil. Você tem que meio que sacudir ele para fora.

Ao longo dos anos em que você tem visitado a Amazônia, está ficando mais fácil lidar com o inesperado ou você ainda fica surpreso com diferentes situações?

A segunda opção. Você nunca sabe o que esperar. Talvez eu seja um pouco mais esperto e astuto à medida que envelheço, mas sempre é surpreendente. Nem sempre se antecipa os problemas que se precisa enfrentar. Mas para mim, essa é uma das grandes alegrias de fazer pesquisas, resolver problemas no momento.

Um dos experimentos montados na base flutuante do ICMBio, em Anavilhanas 

Estamos vivendo essa estação seca excepcional, a mais severa de todas. Do seu ponto de vista, apenas observando as coisas e estando aqui, as mudanças são perceptíveis? O que chamou sua atenção?

Claro, apenas a extensão da linha costeira que está exposta chama muito a minha atenção. Mas o que realmente me impactou foi andar pelo campus do Inpa e ver quantas árvores estão mortas ou morrendo nos bosques. Isso foi bastante chocante para mim, porque estive no campus tantas vezes ao longo dos anos e aquele sempre foi um ambiente muito saudável e de atmosfera selvagem. Agora estamos vendo todas essas árvores mortas… é realmente bastante perturbador. Já aqui em Anavilhanas, tudo o que posso realmente ver são os níveis de água, muito baixos. Dal e eu escrevemos um artigo no ano passado, publicado no Journal of Experimental Biology, onde prevemos o que ia acontecer. O que previmos que aconteceria lentamente está ocorrendo rapidamente, como é com essa seca. Isso é tão deprimente… Nunca pensamos realmente, quando escrevemos, que iriámos ver isso no ano seguinte.

Você se lembra de algum momento comparável a este?

De jeito nenhum. Eu estava aqui, talvez em 2009, quando o rio estava excepcionalmente alto e Manaus inundou. Mas nunca vi o nível da água tão baixo.

Há muita discussão sobre como a Amazônia está mudando à medida que se aproxima de alguns pontos sem retorno, ou tipping points. Eu sei que esses pontos são outra discussão difícil…

É difícil saber onde está o ponto sem retorno, ou quanto desmatamento vai causar um colapso em todo o sistema. Vimos estimativas entre 20% e 40% de desmatamento. Não sou especialista nisso, mas suspeito que estejamos muito, muito perto disso.

Do seu ponto de vista, quais têm sido os fortes indicativos de que estamos passando por uma mutação nos ecossistemas amazônicos na medida que nos aproximamos desses possíveis pontos?

Em seu laboratório, Adalberto Val conta com essas câmaras de mudança climática. O que elas fazem é monitorar os níveis de CO2 e temperatura na selva e depois enviar essas informações para o laboratório, adicionando quantidades adicionais de CO2 em um ambiente controlado, simulando o futuro das mudanças climáticas e seus efeitos nos organismos. Os níveis de gás carbônico captados pelo equipamento na floresta têm aumentado ao longo do tempo, e isso é uma evidência real das mudanças climáticas que estão ocorrendo aqui, provavelmente relacionadas com a queima das florestas. Também há muitas fotografias de satélite por meio das quais podemos ver que muitas estradas que saem de Manaus têm habitações. Então, à medida que os humanos invadem a floresta, obviamente estão queimando e destruindo a vegetação. E isso é outra evidência clara de que a Amazônia está passando por mutações.

Os peixes ajudam a contar essa história?

Essa é uma boa pergunta, e acho que não tenho a resposta. Sabemos, por exemplo, quais níveis de metais intoxicam os peixes e também sabemos que os níveis de metais registrados em muitos igarapés de Manaus são tóxicos para eles. Isso também é uma evidência forte de uma transformação induzida pelo homem nesses animais. Então, os peixes, eu acho, poderiam contar um pouco da história das mudanças relacionadas às ações humanas na Amazônia.

Gado pasta onde havia um lago. Na árvore, marcas escurecidas mostram onde a água costumava chegar 

Compreendendo essas mudanças e com toda a experiência que você acumulou ao longo dos anos, o que você acha que deve ser priorizado no seu campo de trabalho em termos de investigar os ecossistemas amazônicos? Quais são as questões que ainda intrigam você?

Ainda acredito que a biodiversidade na Amazônia é pouco estudada. Precisamos entender muito mais sobre ela. E também precisamos entender muito mais sobre os impactos gerados por humanos na Amazônia, principalmente os impactos de barragens hidrelétricas que devem ser estudados, da mineração, especialmente da mineração ilegal, e também o problema da falta de cobertura de saneamento básico em Manaus. Acho que a ciência realmente deve demonstrar que essas atividades têm impactos negativos para que possamos, talvez, exercer pressão política no sentido implementar o tratamento de esgoto, de parar a mineração ilegal e de interromper a construção de novas barragens para energia hidrelétrica. Essas são coisas que suspeitamos serem realmente prejudiciais para a Amazônia, mas precisamos de evidências fortes nesse sentido. Acho que agora o Brasil tem um governo que, novamente, é simpático à ciência. Como você sabe, o Brasil teve um governo anterior que era, eu diria, pouco simpático à ciência. Mas agora há o retorno de Lula e  eu vi como a ciência foi beneficiada ao longo do tempo por seus governos ao visitar universidades e laboratórios, observando quanto dinheiro foi investido em ciência no país. E então eu também vi o deterioramento que ocorreu durante o último governo. Agora acho que o Brasil está de volta com um governo mais simpático à ciência e ao meio ambiente, então agora é hora de apresentar as evidências que ajudam a Amazônia.

É um bom momento para buscar financiamento para a ciência e desenvolver novos projetos na Amazônia?

Sim, acho que é. O governo está tentando desfazer o dano causado nos últimos quatro anos, então ainda tem de lidar com muitas restrições. Mas também acredito que há um sentimento de começar a apoiar novamente a ciência. Então, agora é o momento para os cientistas pressionarem por bolsas para estudantes e por investimentos em educação. Porém, a expectativa não deve ser muito alta no curto prazo porque, como eu disse, o governo parece estar muito sobrecarregado.


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