Para 16 alunas do 1º ano do Ensino Médio do Colégio Olavo Bilac, no bairro de São Cristóvão, zona norte do Rio de Janeiro, a noite de terça-feira, 21 de agosto, foi inesquecível. E para as “adultas” envolvidas no evento Meninas na Ciência: Uma Aventura no Museu, também.
Promovida pela Academia Brasileira de Ciência em parceria com o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), como parte da programação do evento “Promoting Gender Equity in Science”, a noite começou com uma atividade de observação do céu, sob responsabilidade da astrofísica do MAST Patricia Figueiró Spinelli, da museóloga bolsista Claudia Sá Rego Matos e da física bolsista Gabriela de Assis Costa Moreira.
As pesquisadoras mostraram a Lua, os planetas Marte e Saturno, o Cruzeiro do Sul, as Três Marias, as luas de Saturno e explicaram como identificar esses objetos astronômicos no céu. “Fazemos esse programa de observação do céu toda semana, às quartas e sábados, com o público visitante do museu”, contou Cláudia.
Dois diferentes de telescópio foram usados: o Schmidt-Cassegrain de 125 mm, usado ao ar livre, e a Luneta 21, que fica numa cúpula. “Esta é uma luneta histórica, centenária, sendo o único instrumento científico do acervo do museu que pode ter interação com o público. Desde que foi instalada na cúpula, que originalmente não seria para ela, nunca deixou de estar em funcionamento. Realizou muitos registros fotográficos de estrelas, participou da missão Apolo e hoje segue proporcionando ao público do museu lindas imagens do Cosmos”, relatou Cláudia. “Chamamos de Luneta 21, porque sua lente objetiva tem 21 cm de diâmetro”, explicou.
Uma lanterna laser de longa distância transformou o céu em tela, apontando com clareza os planetas e estrelas observados e mostrando o desenho da constelação de Escorpião. Apenas fascinante.
O grupo teve a companhia das pesquisadoras Eliade Ferreira Lima, professora de física da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e e coordenadora do Projeto Energéticas, do grupo Cientistas do Pampa, e de Daniela Pavani, diretora do Planetário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do projeto Meninas na Ciência, que deram inúmeras contribuições.
A diretora da ABC e física Márcia Barbosa foi a Acadêmica responsável pela ideia geral do evento. A equipe do MAST organizou a logística para que as meninas dormissem no museu e coordenou o contato com a ABC. Márcia destaca que projetos como estes devem ser incentivados. “O CNPq acaba de lançar um edital para apoiar grupos que desenvolvem trabalhos com meninas nas escolas. Esperamos que este edital entre para o calendário do CNPq e seja oferecido todos os anos bem como copiado por outras agências. Afinal, ciências exatas são importantes demais para deixarmos somente nas mãos dos homens”. declarou.
O processo criativo: arte, ciência e feminismo
Circulando pelo amplo terreno onde se localizam o Museu de Astronomia e o Observatório Nacional, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro, as meninas e as acompanhantes lancharam na biblioteca e foram encaminhadas para o prédio do MAST, no qual um salão equipado com colchonetes lhes foi apresentado como o quarto em que passariam a noite. Livres das mochilas, voltaram ao andar térreo, onde teve início a verdadeira aventura.
E como foi elaborada a atividade? Patricia conta que propôs às bolsistas Claudia e Gabriela, em abril, que planejassem uma visita noturna ao Museu, com lanternas, “alguma coisa envolvente”. E Gabriela, inspirada, emendou: “Que tal um mistério no museu!?” Assim definiu-se a atividade que seria desenvolvida pelas duas pesquisadoras bolsistas, que se debruçaram sobre ela com autonomia, superando as expectativas.
Ao aceitarem a proposta, as duas pesquisadoras contam que percorreram várias vezes o Museu em busca de inspiração e se fixaram na biblioteca histórica – que hoje armazena a parte ainda não processada do acervo da Academia Brasileira de Ciências. Pensaram em várias narrativas, incluindo mitos gregos, até que então surgiu a ideia de uma personagem de época, do início do século XX. O prédio havia sido construído entre 1918 e 1922. Elas imaginaram que 1932 seria uma boa época, quando as pesquisas no Museu já estariam todo vapor.
O mistério criado por Claudia – graduada em museologia (UniRio) com especialização e mestrado em geologia (UFRJ), além de estar terminando uma outra licenciatura em geografia (UERJ) – e Gabriela – física graduada pela UERJ, com especialização em popularização e divulgação de ciência pela Fiocruz – envolvia o sumiço de uma assistente administrativa do Museu, ocorrido em 1932.
Usando seu acervo de conhecimentos sobre mitologia, batizaram a personagem de Estela (estrela), levando o sobrenome Argo – referência à constelação de Argo, que deu nome ao navio dos heróis gregos Argonautas, liderados por Jasão e enviados pelo rei de Aetes em busca do velocino de ouro. Jasão foi o nome dado ao pai de Estela – e seu sobrenome – de Aetes – referia-se à sua cidade de nascimento. E assim nasceu Estela Argo de Aetes. Os outros nomes foram surgindo assim, atrelados a referências mitológicas e históricas.
“Dossiês policiais” continham cópias das plantas baixas originais do interior do prédio, cedidas pela Coordenação de Museologia do MAST, e depoimentos colhidos “na época”, incluindo uma foto produzida da desaparecida. O material foi distribuído para cada equipe. Cada um dos grupos, compostos por quatro estudantes e uma pesquisadora, tinha que procurar pelo prédio pistas sobre o ocorrido, seguindo as informações do dossiê, que foi lido em conjunto antes do início da “investigação”.
Claudia e Gabriela foram fundo na pesquisa. Buscaram as plantas do prédio que, originalmente, era do Observatório Nacional; as regras da época, que incluíam autorização de frequência exclusiva para pesquisadores na biblioteca. “Como não era permitido que mulheres se tornassem pesquisadoras, elas não tinham acesso aos livros nem ao espaço de leitura”, conta Gabriela, que descobriu ainda que apenas na década de 1950 foi contratada a primeira pesquisadora no Observatório Nacional. Levantaram informações sobre as pesquisas que eram desenvolvidas na época, universidades no Ocidente que aceitavam mulheres e dezenas de detalhes que fizeram a diferença. O nível de cuidado que tiveram, contando com a luxuosa contribuição das designers do MAST Edilene Ferreira e Mariana Corrêa, tornou a vivência muito realista, o que foi fundamental para garantir o interesse e envolvimento das estudantes.
Aprendizagem significativa
E o jogo cooperativo, não competitivo, foi um excelente experimento de aprendizagem significativa. Se a teoria do pesquisador norte-americano David Paul Ausubel (1918-2008) destaca que, para que a aprendizagem aconteça, é preciso em primeiro lugar gerar interesse no estudante e provocar reflexão sobre o significado do conteúdo, a atividade foi um grande sucesso. A excitação e envolvimento transformou as alunas em verdadeiras detetives. A cada etapa, todas se reuniam na escadaria para analisar as provas encontradas, relacioná-las com o dossiê e dar continuidade a investigação.
Toda a ação foi sendo desenvolvida pelos diversos ambientes do Museu, até chegar ao desfecho, na porta da biblioteca histórica. Até lá, as “detetives” descobriram que embora a maioria dos depoimentos apresentados no dossiê levassem a crer que Estela tinha uma vida desregrada, pois chegava em casa “em horários incompatíveis com o comportamento adequado a uma moça de boa família”, isso ocorria porque ela estudava à noite, escondida, na biblioteca do Museu. E foram alertadas, também, de que esta é a maneira mais corriqueira e cruel que nossa sociedade tem para oprimir uma mulher: desmoralizando-a.
Mas não, Estela não tinha um amante: tinha um projeto de pesquisa, que queria desenvolver. E assim, quando o pai vendeu a fazenda e deixou para ela a pequena fortuna de 8 mil contos de réis, ela se organizou para fugir e estudar em Harvard – única universidade do Ocidente que aceitava mulheres nos anos 30.
Gostinho de “quero mais”
Ao final da aventura, sentadas em círculo dentro da biblioteca histórica, todos os aspectos do mistério foram sendo esclarecidos na conversa das pesquisadoras com as estudantes. Foram discutidas as questões científicas das órbitas planetárias estudadas por Estela, assim como foi detalhada a contribuição da cientista pioneira Bertha Lutz, que era uma das personagens do enredo.
Principalmente, foram debatidas questões sociais e de gênero. “Vocês viram a foto”, lembrou Gabriela. “De que cor era a pele de Estela?”, perguntou. E todas responderam: “branca”. “E qual era a sua classe social?”, perguntou Gabriela. Por conta da herança que teria recebido a personagem e por residir em Botafogo – dados do dossiê policial – concordaram que ela seria de classe média alta. “E qual a possibilidade de uma moça preta, pobre e da periferia poder ser pesquisadora naquela época?”, acrescentou Gabriela, obtendo resposta unânime: “Zero”.
Hoje, mais de 80 anos se passaram desde o período em que a história foi contextualizada, e as possibilidades das moças pretas, pobres e de periferia se ampliaram um pouco. Embora muito chão ainda exista a ser percorrido para chegarmos a uma mudança socioeconômica e científica consistente nesse sentido, eventos como esse promovido pela ABC e MAST trazem esperança. Especialmente quando no dia seguinte, durante as atividades matutinas oferecidas às “detetives” por grupos de mulheres cientistas nas áreas de computação, engenharia e física – Engenheiras de Borborema, Tem Menina no Circuito e ProgramAmazonas -, ouvimos a pergunta tímida de uma das estudantes envolvidas: “Tia, o que que a gente têm que estudar pra fazer isso aí que você faz?” Este é o momento que faz todo trabalho valer a pena.
Veja aqui a galeria de fotos da noite no Museu.
O que você aprendeu? Conte sua experiência!
Carla Gonzaga de Sena, 18 anos, gostou mais de ver a Lua. Ela aprendeu que as mulheres devem se valorizar, não só falar de homem. “As mulheres também têm poder”.
Imara dos Santos Cabral, 17 anos, quis participar do evento para “fazer uma coisa diferente”. Ela achava que ia ser chato e se surpreendeu. O que mais gostou foi da aventura, pois “se divertiu à beça”.
Khecia das Neves Silva, 16 anos, disse que o que aprendeu com a aventura é que “a gente não depende de homem pra viver a vida, nem de emprego nenhum”.
Sthefanny Santana Nascimento, 17 anos, quis participar para aprender coisas novas e pela oportunidade de dormir “nesse Museu tão lindo”. Gostou mais de ver as cores dos planetas, até porque “tudo era novidade”. Da aventura, o que ficou para ela é que “a gente nunca pode desacreditar de si; que se a gente vê alguém se jogando pra baixo, deve estender a mão pra levantar. E que a gente não deve julgar as pessoas sem antes se colocar no lugar dela, para saber o que ela está sentindo.”
Taniele Santana Silva, baiana de 17 anos, está no Rio há três anos com a mãe, “porque é melhor para estudar e para conseguir trabalho”. Ela quis participar “porque gosta muito de descobrir o novo” e achou a Lua muito bonita. Ela quer ser psicóloga no futuro, “porque quer entender melhor as pessoas, porque as pessoas são ‘assim'”.
Valéria da Silva, 16 anos, disse que gostou de ver a Lua e os planetas Marte e Saturno. Na atividade de desvendar o mistério, ela disse que o que aprendeu foi que o objetivo da vida “não é só ganhar, e sim compartilhar e se aventurar”.
Yasmin dos Santos Pereira, 17 anos, aprendeu sobre os planetas e a constelação de Escorpião. Sobre a aventura, disse que aprendeu “que não se pode julgar o livro pela capa” e que “curtiu muito e nunca vai se esquecer” daquela noite no Museu.
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Confira os projetos apresentados na sessão “Promovendo a Equidade de Gênero na Ciência: Experiências Brasileiras”:
“Contando Nossa História”, “Engenheiras da Borborema” e “Tem Menina no Circuito”
“Meninas na Ciência”, “Energéticas” e “ProgrAmazonas”
“Meninas no Museu”, “Parent in Science”, “Ciências da Terra – ON” e “NINA”