O casal de Acadêmicos Célia Carlini e Jorge Guimarães redigiu um texto pessoal e cheio de boas lembranças para a ABC sobre o recém falecido companheiro de Academia, pai dela e sogro dele.

Da filha

Meu pai era um homem complexo e multifacetado. Nada com ele era linear. Mas como a filha primogênita, sinto que conheci facetas dele que outros, mesmo os meus irmãos, desconhecem.

Foi ele que acordou meu lado cientista. Eu tinha 5 anos quando ele me presentou com uma taturana, acomodada dentro de um frasco de vidro. Ele me ensinou a cuidar da lagarta, que só podia ser alimentada com um tipo específico de folhas, que eu tinha que colher no jardim todos os dias. Vi a lagarta crescer, trocando de pele de vez em quando, e um dia, para minha enorme surpresa, não achei a taturana dentro do frasco, e sim, uma crisálida (pupa).

Naquele dia, esperei aflita meu pai voltar do trabalho para me explicar o que tinha acontecido com minha taturana.  Ele me disse que o “mistério” ainda não tinha terminado, e me instruiu a manter a crisálida no escuro, e observá-la todos os dias.

Quando a borboleta finalmente emergiu da crisálida, eu, completamente fascinada, já havia me tornado uma cientista.

Nessa fase de criança, vivi com ele outras experiências com a natureza, que foram determinantes para desenvolver uma cumplicidade que era só nossa. Como as que vivemos no litoral paulista, nas férias na Praia Grande ou Itanhaém, caçando siri na praia. Para pegar esses crustáceos, ele tinha uma técnica especial. Tinha que ser ao entardecer. Após uma onda, quando a água do mar retornava e antes da areia aparecer, os siris formavam “montinhos” escondidos sob a água que corria. Esse era o momento em que ele se colocava atrás dos animais, impedindo que voltassem para o mar, jogava-os na areia, longe da água. Eu era só sorrisos, chegando na casa da praia após a caçada, com um balde cheio de siris, que depois de cozidos, eram saboreados por todos nós.

Outra vez, também nessas praias, vimos um fenômeno raro, uma maré de plâncton bioluminescente, que fazia as ondas, ao quebrarem, emitirem uma luz verde azulada.

Pura magia, que observamos juntos, com as gargantas embargadas de emoção.

Em 1967, eu me mudei com minha mãe e irmãos para Ribeirão Preto. Ainda que a convivência diária com ele tivesse sido interrompida, a forte ligação que nós tínhamos não estremeceu. Talvez até tenha sido reforçada por este afastamento forçado.

Ele nos visitava em Ribeirão Preto periodicamente, mas eram as férias escolares que eu esperava com ansiedade, quando eu e meus irmãos, Beatriz e Álvaro, viajávamos para São Paulo para ficar algumas semanas com ele. Foi nessa época, eu com onze anos, que ele me iniciou na vida de laboratório.

Eu ia com ele para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, onde ele era professor então. Ele me ensinou a segurar ratos e camundongos, e comecei a participar do treinamento dos animais em várias tarefas, como andar por um labirinto ou subir uma corda para ganhar comida. Depois de bem treinados, os animais eram usados para avaliar os efeitos do delta 9- tetrahidrocanabinol e de outros princípios ativos da Cannabis sativa.

Aprendi a injetar os animais e também ajudei em diversos outros experimentos para avaliar efeitos da maconha, como a caixa de Skinner, agressividade e outros comportamentos sociais, coordenação motora, etc.

Aos dezesseis anos, minha participação nesses experimentos renderam um agradecimento por ajuda técnica em um artigo científico do grupo. Nessa época, eu já não questionava minha vocação profissional. Eu queria ser cientista.

Em 1972, voltei para São Paulo para morar com meu pai. Dessa segunda fase de convívio diário com meu pai ficaram duas marcas permanentes em mim, resultados de ensinamentos dele. Ele me apresentou a música lírica, a ópera, os réquiens, missas e oratórios, que ambos ouvíamos em êxtase, até ir às  lágrimas. Como bom descendente de italianos, aprendi com ele a saborear um bom vinho tinto, a única bebida alcoólica que ambos de fato apreciávamos.

Em 1975, chegara o momento de me preparar para o vestibular, e decidir qual carreira queria seguir. Outra vez, meu pai me ajudou a decidir não fazer medicina, já que o que eu queria era fazer pesquisa (ele era médico, mas nunca exerceu a medicina). Ingressei no curso de Ciências Biológicas – Modalidade Médica, da então Escola Paulista de Medicina (EPM).

Mas não foi fácil ser aluna, na EPM, sendo filha do Carlini, ele que já havia criado e chefiava o Departamento de Psicobiologia. Minhas notas eram excelentes, mas alguns dos meus colegas olhavam com desconfiança, achando que a correção das minhas provas tinha sido “facilitada”. E eu, todavia, comparando a correção das minhas provas com a dos colegas, achava o contrário, que tinha sido exigido mais conhecimentos de mim do que dos outros.

Isso me incomodava e logo decidi que, apesar de me fascinar a psicobiologia, não conduziria minha carreira como cientista na “sombra” do meu pai. Ele me entendeu perfeitamente, e muito me incentivou a descobrir qual a área de conhecimento que eu queria seguir na pós-graduação, e então, eu optei por Bioquímica.

Meu pai era um professor fantástico, entusiasmado, com boa oratória, e ao mesmo tempo era acessível, e assim cativava os alunos. Aliás, ele tinha o dom de encantar e fascinar qualquer tipo de plateia, como eu testemunhei inúmeras vezes. Fiquei muito feliz quando minha turma da EPM elegeu meu pai como nosso Patrono. Foi muito emocionante quando eu me formei, em 1978, ter recebido o meu diploma das suas mãos.

Em 1980, eu e Jorge mudamos para Niterói, e logo depois para o Rio de Janeiro, onde começara uma nova fase das nossas vidas. Morando longe, via meu pai com menos frequência, quando ele vinha nos visitar no RJ ou quando eu ia para SP. Eu era docente da UFRJ, e minha carreira começava a se afirmar.

Eu me lembro de um episódio, em meados de 80’s, de um dia ter recebido uma correspondência, em resposta a um pedido de separata, que era para ele. Comemorei a confusão dos Carlini(s), pois isso acontecia pela primeira vez depois dele ter recebido várias correspondências que eram para mim. Brincamos muito sobre esse episódio, ele dizendo que temia que EU faria “sombra” sobre a carreira dele.

Apesar de nunca termos publicado juntos, atuando como guest editor, eu o convidei a escrever uma revisão para um volume especial do periódico Toxicon em 2004, e um capítulo para o livro Plant Toxins (editora Springer) em 2015, ambos na temática de Cannabis e outras drogas psicoativas. Inúmeras e repetidas vezes ele me disse o quanto estava orgulhoso do meu sucesso profissional. Certamente não teria acontecido assim, sem o sempre presente incentivo e exemplo dele.

Do genro

A convivência com o Carlini era de momentos de intensa satisfação para muitas pessoas que se acercavam dele, e especialmente eu, na condição de ser seu genro.

Apesar de ser meu sogro, nossa diferença de idade não era grande. Menos de dez anos, o que facilitava muito a descontração nos frequentes encontros. Nossas conversas giravam em torno de vários assuntos desde a atualidade política, onde tinha inabaláveis convicções e intensa prática pessoal, como um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, o PT, em São Paulo, aos temas cotidianos e, obviamente, sobre ciência e seus avanços.

Da parte dele, a paixão pelos efeitos medicinais das plantas e dos produtos naturais em geral e, claramente a paixão maior, a Cannabis sativa, e suas crescentes e entusiasmadas descobertas dos efeitos do canabidiol. Como meu laboratório no Departamento de Bioquímica, da então Escola Paulista de Medicina, ficava muito próximo do Departamento de Psicobiologia que ele havia criado em 1971, ficavam facilitados nossos contatos.

Neste Departamento, Carlini absorveu por um bom tempo outro qualificado e conhecido pesquisador argentino especialista na área da memória, o Dr. Ivan Izquierdo, que ali ficou até sua mudança para Porto Alegre, como professor da UFRGS.  Nessa época, presenciei e acompanhei vários dos criativos experimentos com animais e com humanos que ele e seu grupo faziam.

Criatividade experimental, aliás, era um dos seus conhecidos predicados, tendo criado um método de indução de úlcera gástrica em camundongos, uma etapa importante para estudar o efeito protetor da úlcera pelo extrato da espinheira santa. Os avanços nos estudos com a espinheira santa lhe trouxeram grande tristeza ao saber que pesquisadores de japoneses tinham usurpado a ideia, e patenteado extratos da planta para tratamento da úlcera gástrica.

Em certa feita, Carlini criou um roteiro de estudos farmacológicos sem instrumentos laboratoriais complexos. Ele era um arsenal de ideias experimentais.  Num estudo sobre a possível indução de um comportamento violento, tido como efeito social da Cannabis, me chamou para ver como os ratos tratados, ou não, se comportavam na tentativa de buscar alimento no final de um corredor no qual haviam sido treinados, tendo o empecilho de ter que ultrapassar o bloqueio gerado por outro rato treinado no sentido contrário neste mesmo corredor, que só permitia a passagem de um único rato. Experimento simples e altamente conclusivo a respeito deste comportamento. Sim, sob efeito do extrato bruto, os ratos se tornavam agressivos e violentos, especialmente estimulados pela fome.

Numa dessas conversas, me convenceu a ser voluntário num experimento que era parte da tese de doutorado de um dos vários brilhantes alunos, o Isac Karniol, até recentemente professor e pesquisador da Unicamp. Novamente, um experimento simples, como de resto era seu estilo, mas altamente elucidativo sobre efeitos psicológicos do extrato da Cannabis bruta.  Consistia em identificar por estudos em larga escala, e comprovação estatística, qual era a reação fisiológica e comportamental dos indivíduos após serem expostos à tragada da fumaça do extrato, queimado em um tipo de forno que simulava o hábito de fumar um cigarro.

Obviamente o voluntário não sabia se estava tragando fumaça da queima de um placebo ou da própria planta, como foi o meu caso, uma vez que o pesquisador extraía antes, quimicamente, o odor típico que a queima da Cannabis exala. Assim eram as conversas e a convivência no laboratório, em sua casa ou nos sempre aguardados encontros gastronômicos.

Carlini, embora tenha mantido ao longo da vida seu peso normal sem engordar, era um guloso gourmet, ou seja, um grande apreciador da boa comida, em especial da comida da nossa sofisticada cozinha brasileira.  Com nossas origens parecidas, ele de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, e eu de Campos dos Goitacazes, no estado do Rio de Janeiro, tínhamos muitas afinidades sobre a culinária brasileira.  Sobre este tema tivemos inúmeras alegrias. Para isso valia muito meu gosto pela culinária, e cada encontro era uma festa.

Ainda quando morávamos em são Paulo, era frequente levá-lo para Embu das Artes, onde a escolha dele era precisa: um bom virado paulista ou comida mineira.

Também nos inúmeros almoços, onde um bom churrasco na Prazeres da Carne, perto da EPM, ou na sofisticada Rubayat na Alameda Santos, ou ainda a feijoada do Bolinha, nos Jardins,  eram opções imperdíveis.

Para jantares, uma escolha frequente era o Pastasciutta, no Brooklyn Paulista. Mais recentemente, tivemos o prazer de um dia tê-lo conosco na casa de massas do mesmo nome em Gramado.

Em outra oportunidade, também no Rio Grande do Sul, o levamos a comer o melhor galeto do mundo, na Casa Di Paolo na entrada do Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha.

Ainda em São Paulo, com frequência nos convidava para irmos a Itapecerica da Serra, a uns 30 quilômetros de São Paulo, só para apreciarmos uma especialidade da casa: Leitão à Pururuca. Este, aliás, sempre foi uma das suas preferências.

Com nossa mudança para o Rio em 1980, os encontros gastronômicos com Carlini e o restante da família foram muitas vezes feitos numa casa que ele alugava no verão, na praia de Toque-Toque, no Litoral Norte de São Paulo. Um paraíso local, isolado por montanhas e Mata Atlântica.  Aqui, me cabia preparar a comida. A preferência: Moqueca Capixaba, mas também a Paella Valenciana e o Tutu à Mineira com couve, quibebe e Carré de Porco Assado no forno.

Saíamos do Rio levando nossas traquitanas de cozinha e as panelas de argila preta, feitas por quilombolas em Vitória no Espírito Santo, para preparar os quitutes. Íamos, os dois, a São Sebastião comprar peixe e outros frutos do mar. Enquanto preparava a moqueca, ia fazendo o camarão alho e óleo como tira-gosto, para acompanhar a indefectível caipirinha de boa cachaça, reconhecida e extraordinária contribuição paulista à culinária brasileira. Mal dava conta de fritar os camarões. Ele comia com prazer e se deliciava com o aperitivo. Dava prazer vê-lo se deliciando com essa consagrada maneira brasileira, paulista na verdade, de preparar o camarão.

Ele ia ao Rio, geralmente a trabalho ou para conferências, ou de passagem para Porto Seguro, para em comboio, seguirmos todos juntos de férias na Bahia. Fizemos isso várias vezes, até nos decidirmos desfrutar as férias juntos em Toque-Toque.

Antes disso, logo no começo da nossa mudança para o Rio, ele havia começado a articular a montagem de um laboratório filial do que  tinha na EPM na UFRN, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Nos convocou e estimulou a mim e à Célia a nos envolvermos nessa aventura original que ele concebeu, ajudando com nossa expertise na área bioquímica.

Corriam os anos de 1980 a 1982 e foi um período rico em desafios. Nos transferíamos para Natal no período de férias no Rio para levar avante a ideia do Carlini de criar na UFRN um núcleo ativo em Psicobiologia, que hoje se configura como um grupo de pesquisa altamente qualificado naquela universidade.

Quando tinha mais tempo em visita ao Rio, a escolha do Carlini era que eu preparasse o Frango ao Molho Pardo, cozido com aipim e sangue de galinha, ou um Peixe aberto pelas costas, recheado e assado inteiro no forno. Morando no começo dos anos 80 em Niterói, era fácil encontrar os ingredientes: um bom e rico badejo, robalo ou namorado  no Mercado São Pedro ou o frango comprado vivo nas diversas casas chamadas avícolas que existiam na cidade. Ali havia a possibilidade de coletar e aproveitar sangue da ave.

Guardo tristeza grande: Porto Alegre não só não tem peixes de qualidade, como também não tem casas avícolas pra gente comprar o frango fresco limpo e seu sangue para o molho pardo. Uma pena, porque o aipim gaúcho, de primeiríssima textura, cozinha até quase desmanchar, tornando o frango ao molho pardo ainda mais saboroso.

Como dizia no começo, a convivência de sogro e genro, no nosso caso, não tão usual, não é também muito conhecida, mas o Elisaldo Carlini com quem tive a ventura de conviver mais de perto era assim: pessoa simples, cativante, papo alegre, envolvente e profundo.

E, o que muitas pessoas desconhecem, tínhamos um relacionamento amigo, muito próximo e envolvente, do qual guardarei muitas e boas lembranças agora que ele nos deixou aos 90 anos, ainda para todos nós, muito prematuramente.