No dia 8 de maio, a segunda Sessão Plenária da Reunião Magna 2024 da Academia Brasileira de Ciências (ABC) tratou dos avanços da computação e da inteligência artificial. A sessão reuniu o Acadêmico e cientista da computação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Edmundo de Souza e Silva, o professor titular de computação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Altigran Soares da Silva e Clarice Sieckenius de Souza, professora emérita da PUC-Rio especializada linguística computacional, retórica digital e filosofia da tecnologia.

A corrida em IA: desafios e estratégias para reduzir a lacuna tecnológica 

Edmundo Souza e Silva, Coppe/UFRJ

Membro titular da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Nacional de Engenharia, Edmundo de Souza e Silva é doutor em Ciência da Computação pela Universidade da California (UCLA/EUA) e professor titular do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ). Suas pesquisas abrangem a modelagem e análise de sistemas de computação, redes de comunicação de dados e aprendizado de máquina. Ele contribuiu significativamente para a expansão da internet no Brasil.

“Estamos vivenciando uma nova era tecnológica em andamento, impulsionada pela computação, comunicação de dados e inteligência artificial”, apontou Edmundo. Segundo ele, desde 2019 já estava claro que haveria um ponto de inflexão, que está ocorrendo agora.

Ele abordou inicialmente os Grandes Modelos de Linguagem (“Large Language Models” ou LLMs), que são modelos de inteligência artificial (IA) capazes de interpretar e gerar texto de forma análoga à humana. “LLMs tentam prever as respostas baseando-se no contexto do diálogo e na sequência das frases anteriores”, explicou. Entre as aplicações mais usadas estão o ChatGPT-4 (OpenAI), o Gemini (Google) e o LLaMA 2 (Meta), Edmundo comentou que o teste de Turing, para tentar diferenciar um humano de um computador a partir do diálogo com ambos, já foi “quebrado” (ou “ultrapassado”)  pela IA.

Edmundo comentou que IA é um conceito amplo, objetivando fazer com que  o computador imite a inteligência humana.  Para tanto, a IA usa modelos de “aprendizagem de máquina”, que são métodos que possibilitam a detecção automática de padrões em dados, ou ainda “métodos úteis para fazer com que sistemas de computação possam realizar cada vez melhor uma determinada tarefa, através da experiência. O sistema ‘aprende’ parâmetros de um modelo que representa os dados”.

O poder computacional no mundo aumentou exponencialmente a partir de 2010. “Isso custa caro, requer máquinas poderosas e não se deu repentinamente”, ressaltou o pesquisador. “Requer investimento contínuo e crescente, e é isso que as grandes economias fazem”, destacou.

Em 2022, as agências governamentais de suporte à pesquisa dos EUA alocaram US$ 1,7 bilhão em IA para pesquisa e desenvolvimento (P&D), o que representou um aumento de 13% em relação ao ano anterior e um aumento de 209% em relação a 2018. Além do enorme investimento do governo, o setor privado investiu US$ 67.2 bilhões em 2023, quase nove vezes mais do que a China, que estava em segundo lugar no ranking.

Mas máquinas poderosas não bastam. É preciso ter massa crítica de pessoas altamente qualificadas que saibam desenvolver a tecnologia – e os EUA vêm investindo de forma crescente em recursos humanos devidamente qualificados mostra o gráfico apresentado por Edmundo sobre o número de professores e graduados em computação.

No Brasil, o Acadêmico avalia que haja em torno de três mil docentes em computação e 17 programas de excelência (avaliação Capes) nessa área nas universidades federais. “Acredito que formamos pouco menos de 400 doutores por ano em 2019. É preciso aumentar a nossa força de trabalho – e com qualidade”, ressaltou. Porém, ao aumentar a formação de recursos humanos precisamos pensar também na empregabilidade dos egressos. A capacidade de gerar empregos na área aumentou enormemente nos EUA entre 2011 e 2023. “Isso não acontece no Brasil, e por isso muitos dos nossos alunos de computação são contratados por empresas de outros países ainda nos cursos de graduação.”

De modo geral, a IA pode trazer vários benefícios ao processo de ensino e aprendizagem, facilitando a compreensão de conceitos em diferentes áreas, resumindo literatura num tema específico, possibilitando que alunos e professores interajam com tutores virtuais, estimulando o desenvolvimento de análise crítica durante a escrita, facilitando a análise de dados e outros benefícios que vão sendo descobertos com a experiência.

No entanto, para que seu uso seja eficaz é preciso que haja um certo nível de “alfabetização” digital, tanto da parte dos alunos como dos professores. “A disparidade na alfabetização digital pode aumentar as desigualdades educacionais. Os conteúdos precisam ser personalizados para refletir diversos contextos culturais e linguísticos. Se usarmos soluções prontas de IA, podemos criar mais problemas do que obter benefícios”, alertou o cientista. E ressaltou que é preciso reformular a maneira de ministradas as aulas, dando também suporte adequado para os professores – que continuarão indispensáveis.

Em suma, para que a IA tenha impacto positivo na educação, é preciso planejar como integrar os recursos que ela oferece em sala de aula, em todos os níveis educacionais. “E refletir sobre o que queremos com a educação, pois é fundamental formar jovens que tenham espírito crítico”, observou Edmundo. O pesquisador afirma que os LLMs não conseguem substituir a criatividade de um profissional com conhecimento. “A IA não é exatamente ‘inteligente’. Essa é uma palavra que ajuda a difundir a ideia, mas não é como um humano.” E sim, você pode ser enganado. A IA apresenta textos convincentes, mas, eventualmente, com erros. É preciso cautela e planejamento cuidadoso no uso. E, nesse quesito, os países com mais recursos levam vantagens.

Considerando, portanto, que a IA já está impactando a sociedade de muitas maneiras, é urgente que sejam feitas considerações éticas, entendendo benefícios e riscos. “A IA pode criar oportunidades de empregos em tecnologia. Porém, os empregos com mão de obra menos qualificada serão impactados. E quais as estratégias para requalificar mão de obra? Como promover redes de apoio social? Como promover as reformas educativas necessárias para acompanhar os avanços tecnológicos e gerar frutos para o país? Devemos também preservar nossos bancos de dados para que possamos resolver nossos problemas. Temos banco de dados riquíssimos e são eles que alimentam os algoritmos de IA.

O palestrante avalia que o uso de IA na solução de problemas sociais, especialmente, exige uma abordagem multidimensional. “Por isso, é fundamental engajar a sociedade, engajar estudantes para que desenvolvam soluções alimentadas por IA que abordem questões sociais nas suas comunidades”. Para Edmundo, temos uma janela de oportunidade pequena. “Mais do que nunca, precisamos unir ciência, legisladores e empreendedores para agir rapidamente.”

Reflexões Sobre o Desenvolvimento da IA no Brasil 

O tema de reflexão seguinte foi sobre a relevância de criação de um LLM brasileiro, dado que as Big Techs detêm liderança na área. Elas mantêm atualizações contínuas e lançamentos de novos modelos, enquanto os centros de pesquisa brasileiros possuem recursos restritos em financiamento, infraestrutura e de acesso a grandes volumes de dados.

Para o professor titular do Instituto de Computação da Universidade Federal do Amazonas (IComp/UFAM) Altigran Soares da Silva, é essencial que o Brasil e a academia brasileira não aceitem passivamente as soluções “prontas” de IA. “Devemos assumir o protagonismo no desenvolvimento de tecnologias e aplicações de IA que sejam verdadeiramente adaptadas nossa realidade sociocultural. Isto inclui investir em pesquisa e desenvolvimento locais, expandir os centros de inovação e formar parcerias estratégicas dentro do país.”

O professor amazonense, que foi cofundador de empreendimentos de tecnologia, como a Akwan, adquirida pela Google, a Neemu, adquirida pela Linx Sistemas, e a Teewa, adquirida pela JusBrasil, ressaltou a importância de o país desenvolver uma agenda de pesquisa autônoma, visando liderar inovações em áreas críticas, e estabelecer parcerias estratégicas e interdisciplinares que ampliem o impacto e a aplicabilidade da pesquisa em IA dentro do contexto nacional.

“Competir com Big Techs é impraticável, mas podemos reorientar investimentos para áreas onde o Brasil pode oferecer contribuições únicas e relevantes. Devemos investir em nichos específicos, buscando desenvolver soluções adaptadas às necessidades locais e maximizar o impacto social”. Altigran reforçou a importância de utilização dos recursos existentes de maneira estratégica, para liderar em áreas menos exploradas, gerando inovação sustentável. “E podemos utilizar LLMs abertos como base para o desenvolvimento dos nossos”, apontou.

A adaptação de LLMs ao português é um passo importante, especialmente para línguas com recursos limitados, como as indígenas. Altigran exemplificou possíveis aplicações da IA em dados públicos brasileiros, como os do SUS, INEP e CadÚnico, ressaltando a necessidade de parcerias entre universidades, indústrias e governo.

Os exemplos envolvem ações que já estão sendo realizadas por parcerias entre universidades, como uma no âmbito do CI-IA Saúde (CPA) envolvendo UFMG e UFAM. “A hipótese é de que é possível utilizar IA para permitir o pareamento eficiente, efetivo e escalável de dezenas ou centenas de bases médicas do SUS e do setor privado de seguro de saúde – que são incompletas, multimodais e heterogêneas” explicou. 

Claro que muito mais é necessário, na avaliação de Altigran. Mas já há muito que pode ser feito com o que temos em mãos. “São oportunidades significativas. O Brasil pode liderar inovações alinhadas com as necessidades locais, maximizando o retorno dos investimentos e posicionando o país como um líder na aplicação de IA em governança e administração pública, por exemplo”, finalizou.

Reflexões sobre o design de tecnologias com IA para uso científico 

Professora emérita da PUC-Rio, Clarice Sieckenius de Souza é doutora em Letras e Linguística, tendo se dedicado ao estudo da inteligência artificial, linguística computacional, interação humano-computador, semiótica computacional, retórica digital e filosofia da tecnologia ao longo de sua carreira.

Ela destacou que os softwares são artefatos intelectuais coletivos, que envolvem as pessoas que utilizam a computação e as que estudam a computação. “Realmente, os processos sociais que acontecem na computação são muito diversos, muito complexos”, assentiu.

Clarisse destacou que, diante dos desafios que temos como sociedade, a interdisciplinaridade é fundamental. “A pluralidade e diversidade na ciência são uma conquista civilizatória, pela qual nos cabe zelar”, apontou. “A IA oferece oportunidades inéditas para descobertas científicas, ao mesmo tempo em que poderá beneficiar-se continuamente destas mesmas descobertas para aprimorar-se”, disse.

A pesquisadora ressaltou ainda a necessidade de que os especialistas reenquadrem seus discursos. “Como nossos conferencistas falam sobre IA? Geralmente, usando sujeitos ocultos e indeterminados. Atribuímos tudo ‘aos sistemas, à IA’. Tipo ‘mamãe, o vaso quebrou’… sozinho?”

A questão da responsabilização por aquilo que a IA produz foi levantada por Clarisse. “Quando alguém pergunta a um especialista sobre o uso de IA para criar deepfakes em política, por exemplo, muitas vezes obtém respostas do tipo ‘isso não é problema meu, não posso controlar o uso’. É aquela posição de neutralidade, bastante questionável”, observou.

Ela alertou que com a IA a maneira de conhecer fica automatizada e que teremos apenas mais do mesmo, se só trabalharmos sem cima das probabilidades baseadas no que já existe. “É o oráculo do passado”, disse. Nesse sentido, ela apresentou dois conceitos interessantes: o de monocultura científica, que afirma o retrocesso de conquistas na diversidade, e o de injustiça epistêmica, que indica ameaças ao pensamento inovador.

“A IA usa software aberto, muito bem. Mas, e a engenharia do software? Não adianta discutir o produto da IA sem refletir sobre como ela é produzida”, observou. E finalizou com um apelo. “Colegas de toda as áreas, venham nos ajudar a abrir esse processo de produção de IA, vamos formar os desenvolvedores da IA de que precisamos e que queremos.”