No dia 8 de maio, a Reunião Magna 2024 da Academia Brasileira de Ciências (ABC) convidou o advogado Carlos Affonso Souza, o ecólogo Fabio Scarano e a socióloga Elisa Reis, para compor a Sessão Plenária III, um debate especulativo sobre o futuro de nosso planeta e da sociedade com a inteligência artificial.

Como o Direito vem legislando sobre as tecnologias digitais?

Continuando as discussões sobre regulamentação das tecnologias digitais – tema de uma sessão plenária no dia anterior – o jurista Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), traçou um panorama de trinta anos da experiência legislativa global com a internet.

As discussões começaram nos EUA dos anos 90, onde o advento da rede mundial foi acompanhado de otimismo e expectativas por uma nova era de liberdade de expressão irrestrita. Nessa época, movimentos progressistas advogavam por uma “Declaração de Independência da Internet”, defendendo que o Estado não deveria ter qualquer tipo de inserção neste novo espaço.

“Em 1996, o Congresso americano elaborou o Communications Decency Act, que obrigava as plataformas digitais a criarem filtros para que menores não pudessem acessar conteúdo adulto. Entretanto, a lei impunha obrigações impossíveis de serem implementadas e foi considerada inconstitucional pela Suprema Corte. Sobrou apenas a seção 230, que isentava as plataformas de responsabilidade sobre as postagens de usuários. De certa maneira, essa ampla imunidade fez com que os EUA dominassem o mercado digital nas décadas seguintes”, explicou o palestrante.

A partir dos anos 2000, surge a ideia da “Web Colaborativa”, onde o foco passa a estar cada vez mais no usuário como produtor de conteúdo. No Brasil, esse movimento demorou a ser compreendido pelas autoridades. Uma série de decisões judiciais acabaram resultando na derrubada de plataformas inteiras. Em 2006, quando um vídeo íntimo de uma celebridade viralizou no Youtube, o site foi proibido de atuar no país durante dias. “Começou-se a perceber que as soluções estavam desproporcionais, afetando centenas de outros atores que nada tinham a ver com o mal-feito”, contou Souza.

A ideia de que a regulamentação precisava equilibrar a liberdade coletiva com os direitos individuais começou a ganhar força. Em 2013, após anos de debates e consultas públicas online, o Brasil aprovou o Marco Civil da Internet. “Foi um texto muito original para a época, elogiado inclusive pelo “pai” da Internet, Tim Berners-Lee, e inspirou regulações na Itália e depois na França”, contou.

Outro marco legal foi a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), de 2018. A lei veio na esteira do escândalo da Cambridge Analytica, empresa ligada a um professor da Universidade de Cambridge que comercializou dados de usuários do Facebook para guiar a campanha presidencial de Donald Trump, nos EUA, em 2016. “De certa forma nunca nos recuperamos desse escândalo, que aumentou a desconfiança mútua entre academia e setor privado. Hoje, grandes empresas fecham o acesso aos seus dados ou colocam preços impeditivos, o que dificulta muito a pesquisa”, explicou o palestrante.

Atualmente, Souza acredita que o país peca por não atualizar as legislações, já que a internet evoluiu muito nesse período. Ainda assim, considera que tanto o Marco Civil quanto a LGPD devem servir de exemplo para um marco regulatório em inteligência artificial. “O Marco Civil foi uma lei principiológica, nunca objetivou ser uma lei final. Muitos temas novos não foram abarcados, é preciso um novo olhar. Minha preocupação com as IA é o Congresso criar uma lei e achar que está tudo resolvido. Se tem uma lição que aprendemos é que a tecnologia traz desafios progressivos, o desenho regulatório de IA precisará de calibragem periódica”.

A inteligência natural da biotecnosfera

Fabio Scarano é professor de Ecologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), curador do Museu do Amanhã e titular da Catédra Unesco de Alfabetização em Futuros, uma parceria entre o Museu do Amanhã e a UFRJ. A Cátedra trabalha com ensino, pesquisa e extensão a partir das perspectivas de um grupo diverso de saberes e pessoas, promovendo educação socioambiental e pensando formas criativas de buscar um futuro sustentável para além das perspectivas limitadas do presente.

O palestrante iniciou sua fala analisando etimologicamente a palavra “inteligência”. “Temos o costume de associá-la a humanos, o que é uma confusão entre inteligência e racionalidade. A palavra vem do latim e junta os termos intus, ‘entre’, e legere, que significa ‘escolher’ ou ‘ler’. Inteligência, portanto, é discernir, saber escolher a melhor alternativa. É uma propriedade de todos os seres vivos”.

Para ele, a inteligência artificial (IA) se insere no que chama de “biotecnosfera”, a soma da matéria biológica com a matéria transformada pela ação humana. Ele lembra que se somarmos o peso de tudo que o homem construiu no planeta ultrapassamos o peso de toda a biomassa. Nesse cenário, Scarano ecoa a ideia do célebre filósofo Bertrand Russel que, na primeira metade do século 20, já defendia que possuíamos o suficiente para sustentar uma jornada de trabalho de seis horas diárias. “Mas o que temos feito é justamente o contrário, cada vez mais transformamos a natureza e as próprias pessoas em commodities”, criticou.

Em referência a outros grandes pensadores, o professor lembrou da visão positiva que o teólogo francês Teilhard de Chardin tinha sobre o rádio, o qual unia a todos numa consciência única universal. Também evocou o geógrafo Milton Santos para lembrar que há um intervalo de tempo entre o surgimento de ferramentas técnicas e sua incorporação no dia-a-dia. “Diante de tudo isso, o que falta para que de fato incorporemos essas tecnologias, de forma a termos mais tempo livre e nos unirmos definitivamente enquanto humanos?”, indagou. “Está tudo ao nosso alcance.”

Nesse cenário, a IA surge como mais uma dessas ferramentas que podem transformar nossas vidas. Entretanto, o mundo está cada vez mais fraturado e não parecemos saber consertar. “Talvez a IA possa ser uma camada a mais, uma ferramenta para que todas as inteligências do planeta se conectem e se permitam transcender essa estranha fase que vivemos. A essência da tecnologia é fazer o bem, é melhorar a nossa vida”, avaliou.

Scarano lembrou que a antecipação e a prevenção são características fundamentais da espécie humana que não estão sendo exercitadas no presente. “Cada vez mais olhamos para as tragédias com distância, como se nunca fosse acontecer com a gente. É o caso da crise climática, foi o caso do coronavírus. Precisamos regenerar nossa conexão com o mundo”, finalizou.

Uma visão social sobre IA

Elisa Reis é socióloga e atual coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade na Universidade Federal do Rio de Janeiro (NIED-UFRJ), onde também é professora no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Ao lado de Virgilio Almeida, foi uma das idealizadores do tema da Reunião Magna de 2024. Sua palestra começou lembrando que inovações tecnológicas sempre foram recebidas com perplexidade ao longo da história. “Paul Berger, ‘pai’ da engenharia genética, temeu tanto seus usos que liderou um movimento por sua regulação”, exemplificou.

Com a inteligência artificial estamos vendo movimentos parecidos. Enquanto ocupava a posição de Alta-Comissária da ONU para Direitos Humanos, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet chegou a pedir uma moratória no comércio e desenvolvimento de IA até que a humanidade compreendesse melhor seus riscos. No campo oposto, o cientista-chefe em IA da gigante de tecnologia Meta e vencedor do Prêmio Turing, Yann LeCun, defende que a regulação prematura pode matar a tecnologia ainda no berço. “Nós da comunidade cientifica precisamos fazer um balanço entre riscos e oportunidades. A ciência tem o compromisso de minimizar os primeiros e maximizar os segundos. Mas não é só papel nosso, é também da política e da moral”, sumarizou Reis.

Para ela, ter máquinas mais inteligentes do que nós é, ao mesmo tempo, assustador e emocionante. “Quando afirmamos que as máquinas permanecerão sob nosso controle, precisamos nos perguntar: ‘nós quem?’. Pensamos sempre nos ganhos para a humanidade, mas quais os objetivos imediatos de quem de fato tem o controle. A IA vem evoluindo de forma muito mais veloz que outras inovações do passado, demandando recursos crescentes. Ao mesmo tempo, o espaço dos estados nacionais é cada vez mais restrito”.

Ainda assim, a experiência recente mostra que as nações mais poderosas ainda conseguem manter as rédeas da inovação, como mostra a crescente queda de braço entre EUA e China sobre o TikTok. Para Elisa Reis, todos nós hoje vivemos numa dupla dinâmica: convivemos num espaço global possibilitado pelas redes mas ainda somos cidadãos de Estados-Nação nos moldes tradicionais. “Sempre é preciso lembrar que grande parte das pessoas vivem uma cidadania de segunda classe e ainda estão afastadas das revoluções da comunicação. No Brasil, isso significa que, mesmo que logremos nos inserir nessa tecnologia, arriscamos produzir um apartheid cultural ainda mais profundo que já temos”, alertou.

“Há muitos motivos para alarme. Nossos jovens não estão sendo preparados para um futuro de IA, mesmo nas melhores universidades do país. A grande maioria chega ao ensino superior sem a motivação e o arcabouço necessário para fazer as perguntas que levem ao desenvolvimento. O elitismo é tão naturalizado entre nós que nos privamos de recursos valiosos para avançar. Ao desperdiçar talentos renunciamos à inteligência coletiva do nosso país”, completou a palestrante.

A Acadêmica defende que o futuro da IA começa hoje, definindo metas básicas de avanço social e utilizando-a nesse sentido. A tecnologia pode ser chave para uma gestão pública mais veloz e transparente, com políticas sociais mais efetivas e focalizadas. Mas para que isso se concretize é preciso investir em capacitação. “Eu vejo a IA do futuro como um instrumento que pode agravar ou romper padrões excludentes, compete a nós fazer dela algo positivo”.

Assista a sessão a partir dos 26 minutos: