O quão simples é complexo o suficiente? Na pesquisa básica da área de construção de materiais, o mais elementar dos estudos pode salvar a vida de bilhões de pessoas ao redor do mundo. No entanto, segundo Kristi Anseth, da Universidade de Colorado em Boulder, nos Estados Unidos, a resposta à pergunta inicial envolve anos de estudo e sofisticação sob medida para que um material consiga resolver facetas complexas de mecanismos celulares e de doenças.

Na prática, o grupo de pesquisa de Anseth – ligado ao Departamento de Engenharia Química e Biológica – está imerso em investigações sobre o desenho de materiais para a aplicação biomédica, priorizando o desenvolvimento de elementos que possam interagir com células humanas para promover a regeneração tecidual. Para isso, eles precisam conhecer a fundo todos os processos bioquímicos e biofísicos envolvidos na regeneração e adoecimento de um tecido, os quais ditam as regras no mundo microscópico. 

Auditório do Museu do Amanhã na palestra de Kristi Anseth

Tudo começa com o modelo in vitro dos tecidos, onde é possível estudar o comportamento celular em laboratório e conhecer bem os processos para, então, pensar na engenharia e no desenvolvimento de materiais. Um dos componentes utilizados por Anseth e colaboradores são os hidrogéis, versáteis para interagir com células do corpo humano e eficientes para a entrega de medicamentos.

“O hidrogel é simplesmente um material que gosta da água e, em vez de se dissolver nela, ele absorve grandes quantidades de líquido”, explica a pesquisadora. Essa característica o torna muito útil e semelhante a muitos tecidos moles dentro do corpo e, assim, é possível colocar células dentro desse material no laboratório para que elas sobrevivam. “Depois disso, busco coordenar muitos eventos que ocorrem em escalas e tempos distintos”, complementa.

Por exemplo, após um corte na mão, uma cascata de efeitos transcorre até a formação do coágulo sanguíneo e todo o restante do fluxo de cicatrização. Segundo Anseth, seu grupo de pesquisa quer intervir e redefinir esse processo quando a cura não ocorre.

Um dos pontos positivos de se trabalhar com hidrogéis derivados de materiais sintéticos, como os polietilenoglicóis (PEGs), é que o corpo humano não os reconhece, o que permite à macromolécula ficar praticamente inerte, sem desencadear processos inflamatórios ou uma resposta imune do organismo.

“A água fica ao redor de todo esse material e assim eles conseguem se mover. Este é um dos materiais sintéticos mais amplamente utilizados na medicina. É usado para modificar drogas e em sistemas de entrega de substâncias vacinais dentro do corpo, por exemplo”, detalha Anseth.

No entanto, mesmo com pontos positivos, um dos problemas é como fazer células de diferentes tecidos sobreviverem in vitro dentro desses materiais, proliferando-se assim como fariam normalmente dentro do organismo. Assim, o time de Colorado também se preocupa em desenhar o material de forma a dar pistas biológicas para as células para que sobrevivam, se dividam e se multipliquem.

“Desenhamos dois tipos diferentes de sistemas, dependendo dos objetivos. Um deles é orientado por células, onde queremos que o ambiente do material seja muito parecido com a matriz celular encontrada dentro do corpo. Assim, mimetizamos o ambiente corporal e as células decidem os processos de degradação, reprodução e tantos outros”, explica Anseth.

O outro sistema citado por ela é um material que é orientado pelo usuário. Neste caso, o grupo de pesquisa coloca as células em hidrogéis sob as lentes de um microscópio e desencadeia uma mudança para manipular o microambiente. Então, consegue observar como as células respondem ao estímulo. “Assim, aprendemos algo básico sobre quais sinais são necessários para que as células assumam certas funções”, ressalta.

Saindo do modelo in vitro e indo para o modelo in vivo em animal, um dos trabalhos do grupo envolveu um experimento com camundongos que tinham um defeito no crânio que não se regenerava sozinho. Eles aplicaram hidrogéis repletos de células-tronco da medula óssea do roedor na ferida e observaram que, com um determinado tipo de hidrogel, houve um nível de regeneração do osso após nove semanas de tratamento – mas, ainda assim, não foi possível alcançar a recuperação completa.

“Podemos introduzir todos os tipos de complexidade nos materiais, mas talvez seja mais difícil tratar um paciente com uma perda óssea muito grande, pacientes jovens ou mesmo mais idosos. No dia a dia da nossa pesquisa, enfrentamos perguntas básicas constantemente. Como fazemos algo simples o suficiente para que possa ser um produto que ajude os pacientes? E como entramos na complexidade de modo a saber como as coisas podem funcionar melhor?”, indaga a pesquisadora.

Segundo ela, o campo de desenho de materiais também está interessado em como personalizar os produtos para cada pessoa, de modo que não haja apenas um único exemplar pronto para uso. Anseth observou que “seria interessante levar em conta as diferenças entre os seres humanos, as especificidades dos ferimentos e como tratá-los – o que acrescenta uma nova camada de complexidade à engenharia e elaboração de materiais.” Além disso, é necessário considerar as diferenças entre os sexos biológicos, não tomando o corpo masculino como exemplo a ser seguido na hora dos experimentos científicos e nas considerações finais dos artigos.”

Ainda há uma longa estrada a percorrer até a utilização em larga escala desse tipo de tecnologia no dia a dia por pacientes ao redor do mundo, mas o caminho é promissor. Segundo Anseth, é possível sintetizar hidrogéis versáteis com propriedades ajustáveis para direcionar células e processos de regeneração. E a resposta está na união entre a química avançada de materiais e a biologia de caracterização celular e tecidual.

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Auditório do Museu do Amanhãa na palestra de Kristi Anseth