O anúncio caiu como uma bomba na comunidade científica brasileira: ao menos 93 mil bolsas de pesquisadores e pós-graduandos e outras 105 mil de profissionais da educação poderão ser cortadas a partir de agosto de 2019, agravando ainda mais o cenário de crise atravessado pelas áreas de ciência, tecnologia e inovação no país.
O alerta feito na semana passada pelo presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (Capes), Abílio Baeta Neves, instigou protestos nas ruas e nas redes sociais e reacendeu o debate sobre o impacto da emenda constitucional que instituiu um teto de gastos pelos próximos 20 anos. “Os impactos serão graves para os programas de fomento da agência”, declarou o presidente da Capes.
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, pesquisadores enfrentaram o tempo chuvoso e protestaram na Avenida Paulista e na Cinelândia, exigindo a revisão da medida. Nas redes sociais, hashtags como #existepesquisanobr e #minhapesquisacapes viralizaram, com cientistas compartilhando suas pesquisas e justificando a importância das bolsas para a manutenção dos trabalhos e também para a sobrevivência dos estudantes. Segundo análise da Fundação Getúlio Vargas, houve ao menos 124 mil menções ao tema no Twitter.
“Quando pessoas dentro da própria estrutura de uma entidade como a Capes fazem esse alerta é porque a situação já chegou ao limite”, analisa Roseli de Deus, professora da Escola Politécnica da USP, coordenadora da Feira Brasileira de Ciência e Engenharia (Febrace) e integrante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC). Entre as principais bolsas oferecidas pela Capes estão as de graduação (R$ 830), mestrado (R$ 1,5 mil) e doutorado (R$ 2,2 mil).
Brasil investe menos que Europa e EUA
A repercussão levou a uma sinalização de recuo por parte do governo federal. Nesta segunda-feira (06/08), o ministro da Educação, Rossieli Soares, reafirmou que as bolsas da Capes para 2019 serão mantidas, declaração também reforçada pelo presidente Michel Temer. “Estamos trabalhando para buscar uma solução”, disse Soares. Até o momento, porém, nenhuma proposta concreta foi apresentada.
Para Tatiana Roque, pesquisadora da UFRJ e coordenadora da campanha Conhecimento Sem Cortes, a resposta não foi satisfatória. “Não foi um recuo, estão tirando o corpo fora. É preciso acompanhar e continuar pressionando”, criticou ela, afirmando que, caso os cortes se concretizem, o impacto será drástico. “Significa desmontar toda a estrutura de pesquisa e de pós-graduação conquistada nos últimos anos, que hoje tem níveis de excelência, perder estudantes, além da instabilidade provocada na vida desses pesquisadores, que contam com essa bolsa para os seus projetos de futuro e para sua sobrevivência”, diz.
“Faltam insumos para os laboratórios, há equipamentos obsoletos ou quebrados, sem verba para conserto ou substituição, além dos jovens pesquisadores brilhantes que começam a deixar o país”, lamenta o físico Luiz Davidovich, professor da UFRJ e presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC). “É um cenário muito ruim, com cortes abruptos no orçamento. É uma situação crítica”, afirma, informando que, em outros países, a solução para crises econômica, muitas vezes, é contrária: aumentar os investimentos no setor, e não optar por uma redução.
Atualmente, o Brasil investe menos de 1% do PIB na área de ciência, tecnologia e inovação. Em países da Europa, o percentual gira em torno de 3%, e nos Estados Unidos, é de cerca de 2%.
Lei do Teto de Gastos
Os cortes na Capes são um reflexo da Lei do Teto de Gastos, aprovada em 2016 e que limita os gastos públicos no Brasil até 2036. Em 2017 cortou-se 44% do orçamento previsto para o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicação (MCTIC): dos R$ 5,8 bilhões previstos para o setor, só R$ 3,4 bilhões foram liberados, já descontando salários e custos administrativos.
Em 2010, quando o ministério ainda não havia incorporado a pasta das Comunicações, o setor festejara um orçamento de R$ 10 bilhões, quase três vezes mais do que o dinheiro disponível hoje. Um dos projetos de maior visibilidade, o Ciência Sem Fronteiras, que enviou 94 mil graduandos e pós-graduandos brasileiros para instituições de ponta no exterior, deixou de existir em 2017.
“No Brasil, as autoridades econômicas estão preocupadas principalmente com a contabilidade, sem propor uma agenda nacional de desenvolvimento. Não adianta só fazer cortes, é preciso ter uma ideia clara de aonde se quer chegar”, critica o presidente da ABC. “É importante começar a recompor o orçamento para a área. Isso é urgente, até para dar uma sinalização otimista para manter os jovens pesquisadores no Brasil.”
“Temos observado novamente um movimento forte de fuga de cérebros. Tanto pessoas que estão no exterior e não veem condições para voltar quanto pesquisadores que estão aqui e vão para fora a fim de dar continuidade a suas pesquisas. É isso que precisamos evitar”, afirma Roseli de Deus, que também faz parte da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Os especialistas lembram, ainda, do retorno à sociedade dos investimento de longo prazo em pesquisa e inovação. A exploração do petróleo do pré-sal, o aumento da produtividade da soja e a rápida resposta à epidemia de zika são alguns dos exemplos. “Isso não foi sorte nem milagre, foi fruto do investimento em ciência”, afirma Davidovich.
A dura vida de pesquisador
Em Manaus, no Amazonas, Jessica Botelho, de 27 anos, dedica-se à pesquisa desde quando fazia a graduação na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Bolsista da Capes no mestrado na área de comunicação, ela analisa a atuação de diversos setores da sociedade em projetos de educação não formais, com foco no Centro Popular do Audiovisual, que faz formação em comunicação popular voltada para jovens periféricos, indígenas e ribeirinhos na região.
“É da bolsa que eu vivo e pago as minhas contas. Mesmo assim, é um valor irrisório, até porque não temos direitos trabalhistas como pesquisadores”, diz ela, que recebe R$ 1.500 mensalmente. Além disso, critica, o bolsista não tem direito a 13º salário, férias ou licença-maternidade. Também é proibido buscar outras fontes para complementar a renda.
A situação, que já não era fácil, ficou ainda mais nebulosa diante da ameaça de cortes nas bolsas de pós-graduação. “Meu marido acabou de passar no mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF) e se mudou para o Rio de Janeiro com a perspectiva de conseguir uma bolsa. Então, a notícia foi um baque para nós. Eu mesma queria emendar um projeto de doutorado e estudar as fake news no Brasil, mas agora já estou repensando”, lamenta ela, que conclui o projeto de mestrado em dezembro deste ano. Após esse período, o futuro é incerto.
Emyly Kataoka, de 32 anos, era professora concursada até entrar no doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde estudou os movimentos de democratização da educação nos anos 80 e 90. “Eu precisei abrir mão do concurso, mas arrisquei porque tinha a bolsa da Capes”, conta. Ela recebeu o benefício entre 2014 e 2018. “Tive sorte, pois a minha turma foi a última em que todos os pesquisadores conseguiram bolsa. Eu consegui, mas muitos vão deixar de fazer a pós-graduação. E aqueles que chegarem lá não terão bolsa e precisarão trabalhar em outras atividades, o que afeta a qualidade da pesquisa.”
Ambas relatam uma rotina bastante extenuante de estudos, com jornadas de até 12 horas. Em muitas universidades é comum o ambiente de alta pressão dos coordenadores dos programas sobre os bolsistas, que chega até ao assédio moral. “Já ouvi em uma reunião uma coordenadora pedir para os não-bolsistas vigiarem os bolsistas, já que não é permitido que eles tenham outras fontes de renda além da bolsa”, relata Jessica. Diante do cenário, o tom é de desesperança. “Sinceramente, a vontade é de desistir.”
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