Quando o Estado esquece a vida – um alerta da ciência brasileira

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A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) manifestam profunda consternação e indignação diante da operação policial realizada em 28 de outubro de 2025 nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, considerada a mais letal da história recente do país.

Mais de uma centena de pessoas perderam a vida em um único dia, a maioria delas moradores de favelas. O Estado, que deveria garantir direitos, atuou como força de extermínio. A SBPC e a ABC não podem se calar diante do avanço de uma lógica que transforma comunidades inteiras em campos de batalha e vidas humanas em números descartáveis.

Combater o crime organizado é dever do Estado. Mas fazê-lo por meio da aniquilação é negar a própria ideia de civilização. Este não é um exemplo isolado da falência do Estado em promover justiça e segurança pública com estratégia e inteligência, como mostra nossa história recente, no Massacre do Carandiru (1992), no Complexo do Alemão (2007), em Jacarezinho (2021), entre tantos outros. Todos foram tratados, à época, como “respostas necessárias”. Hoje, são lembrados como tragédias que envergonham a nação. A ofensiva de 2025 repete e amplia essa lógica, agora sob o olhar de uma sociedade anestesiada, que normaliza a barbárie em nome da “ordem”. Quando a exceção se torna método, a democracia se desfigura.

A SBPC e a ABC reafirmam que a ciência não é neutra diante da morte.

Cabe à pesquisa pública e às instituições científicas compreender e denunciar a reprodução de políticas de segurança que não se baseiam em evidências, mas em ideologias de medo e exclusão. Quando a política de segurança ignora a ciência e a ética o resultado é a produção sistemática da morte em territórios marcados por pobreza e cor.

Entre as centenas de vítimas na última década, estão vidas interrompidas antes mesmo de começar, futuros ceifados como o do menino Marcus Vinícius, morto aos 14 anos, em 2018, por uma bala disparada durante uma ocupação policial no Complexo da Maré. “Mãe, eles não viram que eu estava de uniforme?”, perguntou à mãe antes de morrer. A pergunta comoveu o país na época, mas, passados oito anos, ela ainda não teve resposta efetiva do Estado. Dados mostram que 86% das pessoas mortas por ações policiais no Rio de Janeiro são negras, embora representem pouco menos de 60% da população fluminense.

Trata-se, portanto, de uma política racializada de extermínio, como alertou a nota da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), assinada pela ABA, ANPOCS, ABCP, SBS e SBPC, em repúdio conjunto à escalada da violência de Estado e à anuência do Ministério Público na condução da operação. A SBPC e a ABC reiteram integralmente os termos dessa nota: o Estado brasileiro está falhando em proteger a vida e a ciência não pode assistir em silêncio.

O que ocorreu no Rio também reflete a nós, sociedade civil. Por que certas vidas continuam a ser vistas como descartáveis? Por que a comoção é seletiva, e o luto só ganha manchete quando a vítima tem sobrenome conhecido? Quando o medo e a indiferença nos tornam espectadores, participamos, mesmo que involuntariamente, da perpetuação da barbárie.

A imprensa, por sua vez, tem papel crucial e responsabilidade redobrada. A cobertura inicial dessas operações costuma reproduzir versões oficiais, chamando massacres de “megaoperações”, “sucesso tático” ou “enfrentamento ao tráfico”. Pouco se ouve sobre as vítimas, as mães, os corpos levados em silêncio pela comunidade.

A cobertura midiática e a percepção amplamente positivas nas redes sociais, com índices majoritários de apoio à ofensiva, revelam o poder das narrativas oficiais e midiáticas na formação do senso comum. Esse aparente apoio público não deve ser lido como consenso, mas como expressão da banalização da violência e da normalização da morte de populações negras e periféricas. O contraponto da ciência é essencial: diante da euforia punitiva e da legitimação simbólica do uso extremo da força, cabe à comunidade científica, à imprensa e à sociedade civil questionar não apenas o que foi feito, mas também como se formou a percepção de aprovação. A popularidade de uma tragédia não a torna aceitável e a opinião pública não pode ser substituto da justiça, da ética e da verdade.

A SBPC e a ABC reconhecem e valorizam o jornalismo livre, mas lembram: noticiar sem investigar é legitimar. Jornalismo e ciência compartilham um mesmo princípio: o compromisso com a verdade e com a dignidade humana.

É igualmente relevante observar que a legitimação pública dessa ofensiva se apoia em moldes discursivos que vêm ganhando força no Brasil com a ascensão de correntes conservadoras. O apelo à “guerra ao crime”, à punição exemplar e à “mão forte do Estado” tornou-se um dos pilares de mobilização dos setores da direita política, que transformam a violência em linguagem de autoridade e a repressão em espetáculo. Essa convergência entre retórica punitivista e ação letal reforça o ciclo da violência de Estado e enfraquece o papel da ciência e do debate público. Quando a segurança vira espetáculo e a política pública se reduz a performance de poder, cabe à ciência e a todos os cidadãos interrogarem o espectro ideológico que sustenta a normalização da letalidade e reafirmar o valor universal da vida humana como fundamento da democracia.

A SBPC e a ABC exigem uma investigação independente, com acompanhamento do Ministério Público Federal, da Defensoria e de organismos internacionais de direitos humanos, assegurando transparência imediata dos dados sobre mortos, feridos, desaparecidos e circunstâncias da ofensiva.  Também requerem reparação integral às famílias das vítimas e a reconstrução dos serviços públicos nas comunidades atingidas. É urgente a revisão da política de segurança pública, substituindo a lógica da guerra pela da prevenção e da cidadania, bem como o acesso público a informações e pesquisas sobre letalidade policial, condição essencial para o debate democrático e para a formulação de políticas baseadas em evidências.

A SBPC e a ABC reafirmam o compromisso histórico com a vida, com a justiça e com a verdade. Quando o Estado esquece a vida, a ciência precisa lembrá-lo de que toda morte é um fracasso coletivo. Não há progresso possível sobre o alicerce da violência e da omissão.

O futuro do Brasil depende da coragem de enfrentar a barbárie com razão, humanidade e conhecimento e de não permitir que a ciência, a democracia e a vida sejam esquecidas ao mesmo tempo.

Francilene Procópio Garcia, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

Helena Bonciani Nader, presidente da Academia Brasileira de Ciências – ABC