Da reflexão à ação: justiça e sustentabilidade na crise climática

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No contexto do evento “Um chamado científico para a COP30: Academias de Ciências Unidas pela Ação Climática”, organizado pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Rede InterAmericana de Academias de Ciências (Ianas), foi realizada na tarde do dia 21 de outubro, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), a sessão temática “Da reflexão à ação: justiça e sustentabilidade na crise climática”. A sessão reuniu o Acadêmico e médico Mauricio Barreto, o cientista ambiental e educador indígena Dzoodzo Baniwa e a jornalista científica Gabriela Marques di Giulio.

Pesquisa em saúde populacional e mudanças climáticas: a Plataforma Cidacs-Clima

O epidemiologista e sanitarista Maurício Lima Barreto, membro da Academia Brasileira de Ciências e referência internacional em saúde coletiva, apresentou o trabalho desenvolvido na Plataforma Cidacs-Clima, que investiga os impactos das mudanças climáticas sobre a saúde da população brasileira. Barreto é professor emérito da UFBA, doutor pela London School of Hygiene & Tropical Medicine e fundador do Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs/Fiocruz-Bahia), criado em 2016 para integrar grandes bases de dados e subsidiar políticas públicas.

O Acadêmico e médico Maurício Lima Barreto, da Fiocruz-Bahia

Barreto abordou as ameaças à saúde no contexto climático, informando que as mudanças climáticas poderão causar 250 mil mortes adicionais por ano até 2050, com custos estimados em US$ 1,1 trilhão anuais. Fenômenos extremos — como secas, enchentes, ondas de calor e incêndios florestais — agravam a poluição, ampliam habitats de vetores e afetam o saneamento e a disponibilidade de água. Entre os principais impactos estão doenças respiratórias, cardiovasculares, infecciosas, desnutrição, problemas mentais e mortes associadas ao calor.

Os efeitos mais graves recaem sobre países de baixa renda e populações vulneráveis, incluindo povos indígenas, comunidades negras, migrantes e pessoas idosas. Projeções indicam que ondas de calor poderão causar 1,6 milhão de mortes até 2050. No Brasil, cerca de 900 mil indígenas enfrentam secas severas, queimadas e dificuldades de acesso a serviços básicos. Em áreas urbanas, como São Paulo e Recife, a desigualdade territorial aumenta o risco de desastres e agravos à saúde.

Em função dessa realidade, foi elaborado um Plano de Ação em Saúde e Clima (“Plano Belém”). A proposta de adaptação do setor de saúde visa reduzir vulnerabilidades sociais e regionais, com foco na equidade em saúde e na participação de comunidades tradicionais, povos indígenas e movimentos sociais na formulação de políticas públicas. A plataforma Cidacs-Clima integra dados ambientais, climáticos, socioeconômicos e de saúde para gerar evidências sobre os efeitos do clima na saúde e avaliar o papel de políticas sociais na mitigação desses impactos. A plataforma utiliza bases como a Coorte de 100 Milhões de Brasileiros, que permite analisar a relação entre pobreza, programas sociais e indicadores de saúde ao longo do tempo.

Os principais resultados desse estudo mostraram que o risco de mortalidade relacionada ao frio aumenta 42% entre idosos, 51% entre pessoas negras e 163% entre povos indígenas. Já o risco de mortalidade por calor cresce 8% entre idosos, 45% entre indígenas, e até 169% entre indígenas da região Sul. A má qualidade das moradias eleva em 102% o risco de morte associada ao calor.

Outro estudo sobre o Programa Cisternas, no semiárido, mostrou redução da mortalidade infantil ao ampliar o acesso à água em regiões afetadas pela seca. Já a análise do Bolsa Família indicou que o programa ajuda a mitigar os efeitos das secas sobre o baixo peso ao nascer.

O médico ressaltou que entre 2000 e 2018, estima-se que 85,6 mil mortes de pessoas de baixa renda no Brasil estejam associadas a um aumento médio de 0,92°C devido ao aquecimento global. As evidências reforçam que populações historicamente marginalizadas são as mais afetadas pelas mudanças climáticas, mas também que políticas sociais eficazes podem reduzir vulnerabilidades e desigualdades. “Defendo a integração entre ciência, política e sociedade para construir uma adaptação climática justa e baseada em evidências”, resumiu o médico.

Povos indígenas e emergências climáticas: impactos locais e sistêmicos das mudanças climáticas na Amazônia

Nascido na remota aldeia de Santa Isabel do Rio Aiari, próxima à fronteira entre Brasil e Colômbia, Dzoodzo Baniwa é uma das vozes mais representativas da nova geração de líderes indígenas da Amazônia. Educador, pesquisador e defensor da integração entre saberes tradicionais e ciência, ele tem atuado para fortalecer a educação indígena e propor soluções sustentáveis para os desafios ambientais e sociais que afetam a floresta e suas comunidades.

Sua trajetória começou na Escola Indígena Pamáali, a primeira criada para os povos Baniwa e Koripako, onde iniciou sua formação e, anos depois, retornou como professor e coordenador. Nesse espaço, ajudou a consolidar um modelo de ensino intercultural, que valoriza a cosmovisão indígena e o diálogo com o conhecimento científico.

Atualmente, Dzoodzo é assessor de educação escolar indígena em São Gabriel da Cachoeira (AM), atuando na elaboração de currículos interculturais e na formação de professores indígenas. Graduado em Física Intercultural pelo Instituto Federal do Amazonas (IFAM) e mestre em Educação em Ciências Ambientais pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), ele defende a educação como ferramenta de autonomia, resistência cultural e transformação socioambiental.

O educador e cientista ambiental Dzoodzo Baniwa

Em 2025, foi agraciado com o Prêmio Fundação Bunge (categoria Vida e Obra), em reconhecimento às suas contribuições à conservação da biodiversidade e à valorização dos sistemas de conhecimento indígena. É autor de materiais científicos e educacionais e coautor de um livro finalista do Prêmio Jabuti, sobre educação, território e sustentabilidade. “Educar é cuidar da floresta e das pessoas. Quando fortalecemos o conhecimento indígena, fortalecemos o planeta”, resume.

No evento organizado pela ABC e Ianas, Dzoodzo destacou que os povos indígenas mantêm sistemas próprios de saberes ambientais, fundamentais para a governança territorial e o bem viver na Amazônia. No Rio Negro, por exemplo, existe o sistema chamado “manejo do mundo”, um conjunto de práticas e rituais socioambientais que orientam a convivência sustentável entre pessoas, espíritos e natureza.

Segundo o pesquisador, as ameaças sistêmicas que atingem a floresta incluem crises políticas, econômicas, científicas e ecológicas, impulsionadas por frentes de exploração que veem a Amazônia como um “El Dorado” ou “nova terra prometida”. Já as oportunidades sistêmicas surgem da valorização da floresta como pulmão do planeta, casa comum e base para uma bioeconomia sustentável.

Dzoodzo apresentou dados alarmantes sobre os impactos locais das mudanças climáticas. As queimadas na região do Rio Negro, que somaram menos de 200 focos em 2014 e 2015, saltaram para 14.321 em 2016 — um aumento de 70 vezes. “Essa grave combinação de verões mais longos e floresta seca resulta, evidentemente, em incêndios florestais”, alertou.

A seca severa tem afetado diretamente a economia e a segurança alimentar das comunidades. Em 2018, São Gabriel da Cachoeira entrou em estado de alerta, com perda de plantações, morte de peixes e alta incidência de malária — 5.072 casos naquele ano e 7.400 em 2020. A estiagem extrema de 2023 levou à suspensão de aulas e racionamento de energia, elevando o preço dos alimentos: o quilo do peixe chegou a R$ 40,00. Entre 2016 e 2020, a falta de chuvas reduziu a frutificação de plantas que alimentam animais e populações locais, comprometendo cadeias ecológicas inteiras. O fenômeno provocou ataques de animais às roças, aumento da mortalidade de peixes e proliferação de doenças de pele e mosquitos vetores.

Já as enchentes extremas de 2021 e 2022 causaram perdas expressivas: apenas na região do Rio Içana-Ayari, oito aldeias foram atingidas, resultando na destruição de 50 roças e 20 toneladas de mandioca.

Dzoodzo apresentou um conjunto de demandas e propostas concretas para adaptação climática nas comunidades indígenas. Entre elas, a criação de fundos de investimento para projetos comunitários e tecnologias sustentáveis, o apoio à elaboração de planos de mitigação e adaptação e o investimento em saneamento básico comunitário, especialmente para garantir acesso à água potável durante secas e cheias extremas. “Queremos inclusão, igualdade, justiça social e climática – para valorizar, fortalecer e proteger as vidas de quem protege a Amazônia para o bem viver global”, concluiu. 

Cidades e desigualdade no centro da crise climática

A jornalista científica Gabriela Marques Di Giulio, professora do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), tem se destacado na pesquisa sobre como as mudanças climáticas afetam os contextos urbanos, as práticas sociais e os processos de decisão. Seu trabalho integra ciência, sociedade e políticas públicas, com foco em adaptação, governança climática e transições sustentáveis.

Jornalista formada e doutora em Meio Ambiente e Sociedade, Gabriela realizou pesquisas no Reino Unido e na Alemanha e participa de redes internacionais sobre adaptação climática. Na USP, é co-líder do Grupo Meio Ambiente e Sociedade, vice-líder do CIRIS (Governança, Risco e Comunicação), vice-coordenadora do Centro de Estudos Amazônia Sustentável (CEAS) e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Global e Sustentabilidade. Em 2023, foi eleita membro da Academia de CIências do Estado de São Paulo (Aciesp), e desde 2024 integra o Urban Prediction Project, da Organização Meteorológica Mundial (OMM).

Gabriela Marques Di Giulio, professora do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP

Gabriela define as mudanças climáticas como a principal emergência de saúde global do século XXI, destacando seu caráter político e social. “A agenda climática não é apenas técnica. É também uma arena de disputas simbólicas sobre o futuro que queremos construir”, afirma. Ela observa que o cenário global é marcado por crise do multilateralismo, ascensão da extrema direita e disputas sobre os rumos da ação climática, enquanto o Sul Global — especialmente os países do BRICS — assume papel crescente. A pesquisadora defende maior investimento em adaptação sustentável, com governança multinível e participação das cidades.

Falando sobre urbanização e vulnerabilidade, Gabriela citou o Relatório Mundial sobre Cidades 2024 (ONU-Habitat), que mostra as cidades como o epicentro da ação climática e evidencia que as iniciativas atuais de enfrentamento da situação ainda não atingem a escala necessária. Falta financiamento para infraestrutura resiliente, e algumas políticas agravam desigualdades, afetando comunidades vulneráveis.

No Brasil, os desafios são imensos: 84% da população vivem em áreas urbanas, e mais de 33 milhões de famílias registradas no CadÚnico residem em cidades. Entre 1991 e 2024, o país registrou 5.448 mortes e 10,7 milhões de pessoas desalojadas por desastres climáticos, com R$ 636 bilhões em perdas totais (Atlas Digital de Desastres no Brasil). Para Gabriela, essa é uma “equação perversa”: a emergência climática multiplica os efeitos da pobreza e da desigualdade, sobretudo onde há urbanização precária e pouca infraestrutura verde.

Buscando respostas práticas, Gabriela lidera o Urban Adaptation Index (UAI), que sistematiza informações sobre políticas municipais de adaptação climática e mede a capacidade adaptativa das cidades brasileiras. Composto por cinco dimensões, o índice aplica uma lente de justiça climática, reconhecendo que as desigualdades definem quem sofre mais e quem se recupera mais lentamente. Os primeiros resultados revelam que os bairros mais pobres têm menos áreas verdes e enfrentam maior risco de enchentes e deslizamentos. “A existência de políticas não garante eficácia. É preciso enfrentar as desigualdades para que a adaptação beneficie todos”, ressalta a pesquisadora.

Gabriela defende que a ação climática no Brasil deve combinar evidências científicas e experiências locais, superando a fragmentação institucional e os entraves políticos.

“A ciência sozinha não transforma a realidade, mas pode orientar políticas mais justas e eficazes”, afirma. Para ela, o fortalecimento da governança local e a integração das políticas urbanas são passos essenciais para enfrentar a crise climática com equidade e resiliência.

Resumo e conclusões

A sessão mostrou que a crise climática é também uma crise de desigualdade. Os efeitos do aquecimento global, como a exposição ao calor e ao frio extremos, afeta desproporcionalmente idosos, pessoas negras e povos indígenas, e que políticas sociais eficazes podem reduzir desigualdades e mitigar impactos.

A mensagem central foi a demanda por adaptação climática justa e baseada em evidências científicas, integrando ciência, política e participação social, com respeito e escuta aos sistemas próprios de governança ambiental dos povos originários.


 

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Elisa Oswaldo Cruz para ABC, com IA | Fotos: Erikson Fernandes