No dia 21 de outubro de 2025, foram realizadas no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia três sessões temáticas e uma mesa-redonda no âmbito do evento Um Chamado Científico para a COP 30. O encontro de representantes de 30 entidades científicas de todos os continentes foi organizado pela Academia Brasileira de CIèmncias e pela Rede Interamericana de Academias de Ciências (Ianas).
A sessão temática “Biodiversidade: um tesouro vivo e uma solução global”, coordenada pelo vice-presidente da ABC Jailson de Andrade, contou com três apresentações.
“A diversidade é a maneira que a vida encontrou de sobreviver às mudanças”
O biólogo Adalberto Val, vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências para a região Norte e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) desde 1981, estuda as adaptações biológicas às mudanças ambientais, naturais ou induzidas pelo ser humano, tanto em ambientes naturais quanto de aquicultura. Ex-diretor-geral do INPA (2006–2014), tem se dedicado a compreender as necessidades científicas, educacionais e tecnológicas da Amazônia e a defender sua conservação como questão vital para o planeta.
Val lembra que a biodiversidade amazônica é o maior sistema vivo da Terra — uma rede que conecta clima, água e vida em escala global. Para ele, a Amazônia funciona como o próprio metabolismo do planeta: suas florestas reciclam água, seus rios distribuem nutrientes e sua biodiversidade transforma luz solar em equilíbrio. Cada espécie, do menor microrganismo ao gigante pirarucu, tem um papel essencial nesse sistema e carrega uma invenção evolutiva que garante a sobrevivência em condições extremas. Alguns peixes respiram ar, outros suportam águas ácidas ou vivem meses com pouco oxigênio — exemplos de uma resiliência moldada pela variação, que é a base da vida nos trópicos.

Essa diversidade, afirma, não se mede apenas pela quantidade de espécies, mas pela variedade de formas de viver — uma verdadeira biblioteca de adaptações construída ao longo de milhões de anos. No entanto, Val alerta que as populações de espécies de água doce caíram 83%, resultado do “Trio da Morte” das mudanças climáticas: aquecimento das águas, acidificação e falta de oxigênio. Secas prolongadas, cheias imprevisíveis e rios cada vez mais quentes e rasos revelam um sistema à beira do limite. A mortandade em massa de peixes em 2023 foi um aviso claro: quando os peixes morrem, famílias perdem alimento, renda e identidade. “Na Amazônia, os rios não são apenas água — são vida, cultura e memória”, enfatiza.
O biólogo lembra que outras pressões agravam a crise: mineração com metais tóxicos, poluição por plásticos, desmatamento e as próprias mudanças climáticas. Mesmo assim, acredita que conservar e estudar a biodiversidade é nosso melhor seguro contra a incerteza, pois cada espécie adiciona resiliência, estabiliza ecossistemas e ajuda a amortecer choques climáticos. As soluções baseadas na natureza, como florestas que regulam chuvas, planícies que filtram água e peixes que redistribuem nutrientes, são essenciais.
Para Val, é urgente tratar o clima, a biodiversidade e a sociedade humana como sistemas interligados. A conservação e a ação climática precisam andar juntas, nas cidades e no campo. A variabilidade, diz ele, é o coração da vida e da ciência — a capacidade de ajustar-se, improvisar e sobreviver. Assim como os peixes se adaptam a águas em mudança, a humanidade precisa mudar seus modos de vida e respeitar os limites do planeta.
Ele defende que a ciência, por si só, não é suficiente: é preciso empatia, cooperação e coragem para unir saberes, regiões e gerações. Às vésperas da COP30, em Belém, o mundo voltará seus olhos à Amazônia — não apenas por suas florestas, mas por sua sabedoria ancestral, expressa nas lições de coexistência gravadas em cada rio e raiz. No Pavilhão da Ciência, vozes científicas e tradicionais se encontrarão para mostrar que proteger a vida é um ato de inteligência e gratidão.
Encerrando, Val lembra que a biodiversidade é um tesouro vivo — que precisa ser cuidado e renovado coletivamente. “A diversidade é a maneira que a vida encontrou de sobreviver às mudanças”, afirma. E conclui: que na COP30 essa lição seja levada adiante, não apenas por cientistas e formuladores de políticas, mas por todos os cidadãos de um planeta vivo.
“É preciso reconstruir ecossistemas autossustentáveis”
A botânica Kaoru Kitajima, professora de Recursos e Ambientes de Florestas Tropicais da Universidade de Kyoto, no Japão, dedicou quase 30 anos à Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, antes de retornar ao seu país em 2023. Especialista em ecofisiologia vegetal, ela estuda a sustentabilidade dos ecossistemas florestais tropicais na América Latina, Sudeste Asiático e África, e tem contribuído para iniciativas internacionais de conservação no IPCC e na ONU. Atualmente, integra o Conselho de Ciência do Japão, preside o Comitê de Biologia Integrativa e a Sociedade Ecológica do Japão.
Em sua análise, Kitajima destacou a relação entre biodiversidade e ecossistemas, ressaltando a importância de considerar o solo, a geologia e a sazonalidade no manejo das florestas tropicais. “As florestas são essenciais para conservar a biodiversidade e mitigar as mudanças climáticas, abrigando mais de 80% das espécies terrestres de animais, plantas e insetos”, afirmou. Segundo ela, as florestas também são uma das maneiras mais eficazes e econômicas de combater a crise climática: ações baseadas nesses ecossistemas poderiam reduzir até 15 gigatoneladas de CO₂ por ano até 2050, volume necessário para conter o aquecimento global abaixo de +2°C, conforme o IPCC (2019).

A cientista alertou, porém, que a expansão agrícola e outras formas de mudança no uso da terra representam hoje a maior ameaça às florestas. O desafio global, segundo ela, é conciliar a segurança alimentar com a proteção da biodiversidade e do clima.
Kitajima também chamou atenção para o aumento dos incêndios em florestas que historicamente quase nunca queimavam. Árvores sem adaptações ao fogo estão sendo devastadas por novos fatores de ignição, como queimadas agrícolas e de pastagem, pela fragmentação florestal, que seca o interior das matas, e pelos períodos de calor e seca agravados pelas mudanças climáticas.
Com os solos férteis já ocupados pela agricultura, as florestas naturais remanescentes concentram-se em áreas pobres, como as florestas de areia branca e os pântanos de turfa, cujas árvores, embora tenham folhas perenes e raízes densas, não possuem resiliência ao fogo. Em Madagascar, por exemplo, o primeiro incêndio mata a maioria das árvores, e a madeira morta alimenta novas queimadas nos anos seguintes.
Para a pesquisadora, a boa gestão das florestas tropicais exige conservar os ecossistemas remanescentes — úmidos, secos ou savânicos —, compreender seus regimes naturais de fogo e repensar a restauração ambiental. O foco, diz ela, deve ser a reconstrução de ecossistemas autossustentáveis, capazes de manter a biodiversidade e os serviços essenciais à vida, e não apenas o plantio de árvores para ampliar a cobertura florestal.
Sistema agroalimentar global ameaça a biodiversidade e a saúde
O cientista político Ricardo Abramovay, professor da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia “Superando a Tríplice Monotonia do Sistema Agroalimentar”, lançou um alerta sobre o papel do sistema agroalimentar global como o principal motor da perda de biodiversidade e uma séria ameaça à saúde humana. O especialista, que assessora o G20 sobre o tema, ressaltou a grande lacuna entre a proteção de florestas e o silêncio quase completo em torno da destruição causada pela agricultura e pecuária.
Abramovay enfatiza que, embora a proteção das florestas tropicais seja crucial, a atenção global negligencia o impacto dos sistemas produtivos. Ele destaca que o sistema agroalimentar global é o principal motor da perda de biodiversidade, de acordo com o relatório do IPBES de 2019, sendo responsável por 30% das emissões globais. “O sistema é baseado na ‘economia do excesso’, onde a busca contínua por mais produção, visando combater uma escassez já superada, leva à destruição de ecossistemas.”, explicou.

O pesquisador lembra que a meta global de proteger 30% da terra e do mar até 2030 está distante. No contexto brasileiro, apesar da queda no desmatamento na Amazônia, o país perdeu 6.000 km² em 2024. Fora da Amazônia, menos de 5% do território nacional está sob proteção, com o Cerrado sendo o bioma com a menor porcentagem de áreas protegidas e apenas 51% de sua vegetação nativa conservada.
A raiz do problema, de acordo com Abramovay, reside em alguns pontos que geram “monotonia” e esgotam os ecossistemas. O primeiro é a separação entre agricultura e biodiversidade. ” No Brasil, as emissões de fertilizantes nitrogenados superam as de todo o setor industrial. O uso de fertilizantes e pesticidas sintéticos ataca a biodiversidade, com a produtividade por insumo despencando globalmente”, observou. Outro ponto é a monocultura: 75% das calorias globais vêm de apenas seis culturas (soja, trigo, milho, arroz, batata e cana-de-açúcar), cultivadas com métodos que tratam a vida (microrganismos, insetos, fungos) como inimiga.
Além disso, há a separação entre animais e fontes de alimento (pecuária industrial). “O confinamento de animais quebra as interações naturais, e a pecuária industrial é o motor da monocultura da soja, que ocupa mais de 65% das terras agrícolas brasileiras”, pontuou Abramovay. Ele acrescentou que o uso maciço de antibióticos nessa pecuária é um dos principais impulsionadores da resistência antimicrobiana, listada pela OMS como uma das maiores ameaças à saúde global. O pesquisador destacou, ainda, a separação entre alimentação e saúde: o consumo global de alimentos ultraprocessados explodiu, sendo a causa da pandemia de obesidade que atinge quase 40% da população nos EUA e Reino Unido, e das doenças não transmissíveis, como diabetes tipo 2, câncer e doenças cardiovasculares, que são as maiores causas de morte no mundo.
Mas Abramovay é otimista: há como reverter este cenário. Além da ampliação de áreas protegidas, o cientista destaca a importância crucial de reforçar a agricultura tropical regenerativa. “O foco deve ser em criar vida, não a destruir”, ressaltou. A ciência contemporânea avança na compreensão das interações complexas entre microrganismos, plantas e animais. O movimento ganha força no Brasil, com pesquisas da Embrapa – em inoculantes para soja, por exemplo – e adesão de grandes grupos de agricultores, como o Grupo Associado de Agricultura Sustentável (GAAS), no coração da produção de soja.
A redução do uso de antibióticos em fazendas industriais e de fertilizantes e pesticidas é fundamental, sendo inclusive meta da ONU: menos 30% e 50% até 2030, no caso dos antibióticos. “Isso implicará uma desintensificação da produção animal. No segundo caso, o ataque à biodiversidade e o impacto nas emissões exigem limites internacionais para o uso”, destacou o palestrante.
Abramovay concluiu afirmando que a agricultura regenerativa tropical é uma oportunidade histórica, agora reconhecida por organismos multilaterais como o Consultative Group on International Agricultural Research (CGIAR) e o G20, e que a rapidez da ação é a questão crucial.
Resumo e conclusões
A sessão temática destacou a urgência de integrar ciência, conservação e sustentabilidade como pilares da ação climática. Os palestrantes convergiram na defesa de uma nova visão integrada entre clima, biodiversidade e sociedade, em que conservar e restaurar a natureza é também garantir segurança alimentar, saúde pública e equilíbrio climático. A ciência, afirmaram, deve orientar políticas baseadas em evidências e promover cooperação internacional para transformar modelos de produção e consumo. Às vésperas da COP30, o consenso foi claro: sem biodiversidade viva não há estabilidade climática possível — e sem justiça socioambiental não há sustentabilidade duradoura.
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