A segunda sessão do evento promovido pelo GT de Educação Superior da ABC com o tema “Modernização da estrutura de ensino superior brasileira para o desenvolvimento socioeconômico sustentável” contou com apresentações de Luiz Augusto Campos e dos Acadêmicos Débora Foguel e Marcelo Knobel. O Acadêmico Ado Jório de Vasconcelos foi o moderador.

O foco da mesa era o combate à evasão, melhorias do processo de seleção dos ingressantes e o estímulo à sua permanência na instituição, pela adoção de um modelo flexível que permita ao estudante definir seu itinerário acadêmico.

Diploma de nível superior no Brasil hoje tem vários significados

O doutor em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Luiz Augusto de Souza Carneiro de Campos, onde atua como professor adjunto de Sociologia e Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ), atua em pesquisas sobre desigualdades raciais e democracia, e cienciometria. Ele é editor-chefe da revista DADOS e colunista do jornal Nexo. Coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e o Observatório das Ciências Sociais (OCS). Na ocasião, falou sobre as mudanças recentes e os desafios futuros para o ensino superior público no Brasil.

“Havia um sistema de transição específico. No ensino básico, as escolas públicas têm menor qualidade e o ensino privado, pago, tem qualidade superior.  Já no nível superior, a relação era inversa. Então o sistema era invertido, havia uma reprodução das desigualdades”, ressaltou Campos.

O processo de massificação e diversificação, com as ações afirmativas, mudou o sistema como um todo. “Essas mudanças serviram para mitigar as desigualdades. Houve uma diversificação étnico-racial e socioeconômica, sendo esta última a maior diferenciação interna.

Luiz Augusto Campos mostrou que, em 2001, a classe A ocupava 55% das vagas no ensino superior público e hoje ocupa 28%. A soma das classes C, D e E reponde por 50% das matrículas. “A universidade não estava preparada para isso e passou a procurar ‘dar seu jeito’.  Alguns cursos conseguiram resolver bem o desafio; outros, nem tanto. “Nos cursos de engenharia e medicina houve inclusão, mas muito menor do que nas outras áreas”, destacou.

Tratando do problema da evasão, Campos apontou que ela não se distribui de forma equânime em relação a gênero, raça e socioeconômica. “Não há diferença entre cotistas e não cotistas, mas ocorre com muito mais frequência com as mulheres e os homens negros”, relatou.

A evasão, de acordo com o sociólogo, tem questões internas. Campos ressaltou que o SISU demora muito a oferecer opções para os alunos. “O indivíduo queria medicina, não passou, mas deu pra entrar em enfermagem. Aí ele não gosta e consegue uma vaga em outra universidade ou na mesma; abandona a enfermagem e ocupa essa outra vaga. Então ele é computado como evadido, sendo que às vezes foi apenas transferido”, explicou. Outro problema são as milhares de opções que, quando apresentadas, provocam muitos erros de escolha por parte dos alunos, já que nosso ensino médio não prepara para a escolha de carreira.

Mas Campos vai além do diagnóstico, aponta soluções. Ele propôs a adoção de ciclos básicos, num sistema baseado em seleção por grandes áreas e especializações posteriores. Essa organização em grandes áreas implicaria na redução do número de opções no SISU e viria acompanhada das diplomações do ciclo completado, o que facilitaria a entrada no mercado de trabalho e reduziria o abandono.

“Além dos diplomas intermediários, que existem na maioria dos países, o novo sistema abriria múltiplas entradas no ensino superior e possibilitara também um maior trânsito entre áreas. A pessoa poderia receber um diploma com dois anos de curso, outro depois de mais dois anos numa área macro e mais um, depois de um ano se especializando numa área micro”, avaliou Luiz Campos.

O sociólogo abordou ainda o problema crônico da permanência dos alunos nos cursos. “É preciso que haja uma política de permanência unificada, que venha a fundir as políticas nacionais existentes e unificar os programas locais. E precisam ser simplificadas, com redução das complexidades burocráticas”.​

Fatores que podem levar à mobilidade ou evasão são extremamente diversificados

A Acadêmica Débora Foguel, doutora em Bioquímica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é professora titular do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ. Segundo seus estudos e sua experiência, a evasão é maior é nos dois primeiros anos, período que Foguel chama de “Vale da Morte”. “Nas licenciaturas, a evasão é muito grande. Na licenciatura em física, 70% evadem”, apontou.

Ela falou sobre as dificuldades de se obter informações sobre evasão. “Não temos dados, não sabemos quando é evasão ou quando é mobilidade. Os levantamentos não possibilitam identificar as razões ou os fatores que ocasionaram a evasão, que podem estar relacionadas aos próprios estudantes, ao curso e à instituição ou a aspectos socioculturais e econômicos externos”, relatou.​ De fato, conhecer as causas da evasão permitiria que a instituição e os governos desenhassem estratégias e políticas adequadas para mitiga-la.​ “Nada é monitorado, é preciso termos dados robustos”, apontou. 

Procurando então identificar os fatores que podem levar à mobilidade ou evasão, Foguel compreendeu o quanto são diversificados. Podem ser relacionados a características individuais dos estudantes, como habilidades de estudo​, formação escolar anterior​ deficiente, incompatibilidade entre a vida acadêmica e as exigências do mundo do trabalho. “Muitas vezes há uma desmotivação dos alunos com cursos escolhidos em segunda ou terceira opção​. Já vi turmas inteiras em odontologia, por exemplo, onde nenhum tinha escolhido o curso como primeira opção”.

Há também fatores internos das instituições que levam o aluno a abandonar o curso, como currículos desatualizados, falta de formação pedagógica ou desinteresse dos docentes, o que pode levar a ​critérios impróprios de avaliação do desempenho discente​, uma cultura institucional de desvalorização da docência na graduação​. “O pequeno número de programas institucionais para o estudante, como iniciação científica, monitoria etc.​, também desestimula ou até impossibilita a permanência do estudante no curso, assim como a estrutura de apoio insuficiente, como laboratórios de ensino e equipamentos de informática, por exemplo”. E há os fatores externos, como necessidade de trabalhar e consequente falta de tempo para estudar, por exemplo. 

Pesquisando sobre o tema, Débora Foguel encontrou num relatório do grupo SoU_Ciencia (um centro de estudos formado por pesquisadores e em diálogo com a sociedade que visa contribuir para as políticas públicas e a valorização da ciência brasileira), uma tese de doutorado de um aluno da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Gustavo Bruno de Paula, intitulada “Desigualdades Sociais e Evasão no Ensino Superior: uma Análise em Diferentes Níveis do Setor Federal Brasileiro” ​e orientada pelo Prof. Cláudio Marques Martins Nogueira.

Eles analisaram uma amostra de 184.936 estudantes ingressantes em 2016 e estudaram cuidadosamente a evasão. “Conseguiram separar as duas categorias, evasão ou mobilidade, e a pesquisa mostrou que 93% dos evadidos estavam cursando outra coisa um ano depois”, apontou a Acadêmica. Ela levantou alguns tópicos que mereciam destaque:

  • A maior parte dos ingressantes era composta por estudantes negros e por aqueles que concluíram o ensino médio nas escolas públicas.
  • Estudantes brancos vindos da rede privada estavam nos bacharelados de maior prestígio, ao passo que os negros estavam mais nas licenciaturas.
  • Estudantes de licenciaturas e bacharelados de menor prestígio tinham mais probabilidade de evadir mais do curso.
  • Cursos noturnos tinham mais negros oriundos de escolas públicas.
  • Negros oriundos de escola pública receberam mais apoio social.
  • Não havia diferença quanto a participação de negros e brancos em atividades extracurriculares.
  • Estudantes que recebiam apoio social ou participavam de atividades extracurriculares tinham mais probabilidade de permanência.
  • Estudantes mais velhos evadiam mais do que os mais jovens.
  • Mulheres não evadiam mais que homens.
  • Cotistas não evadiam mais que não-cotistas.
  • Negros não evadiam mais que brancos
  • Estudantes dos cursos noturnos não evadiam mais que os dos cursos diurnos.

Enfim, Foguel alertou para a urgência de uma reforma do modelo de universidade e questionou alguns tópicos repetidos em discussões sobre o tema. Ela apontou que sim, é preciso que a universidade seja mais relevante. “Mas para quem?” É preciso que esteja mais conectada às necessidades do setor empresarial. “Sim. E por que não para as necessidades dos pequenos produtores, movimentos sociais, governos e outros setores da sociedade?” Precismos de uma universidade que dê menos aula e que deixe mais tempo livre para os estudantes. “Pode ser. Mas quando eu fecho a porta da minha sala de aula, ali é meu mundo com minhas alunas e alunos”.

Uma nova abordagem para o sucesso da educação superior brasileira 

O Acadêmico Marcelo Knobel, físico, reitor da Unicamp entre 2017 e 2021, apresentou um caso de sucesso: o Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS) da Unicamp, que ele ajudou a criar e que provou que é possível se implementar soluções muito simples e alcançar excelentes resultados.

Quando foi reitor, Knobel tinha metas. Uma delas era desconstruir o vestibular, para oferecer um futuro a estudantes com menos oportunidades. Foram criadas, então, outras formas de ingresso na Unicamp: a entrada pelas Olimpíadas de Matemática, pelas cotas raciais, um vestibular indígena feito em São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, além do ProFIS. Hoje são seis modalidades diferentes pelas quais alguém pode se tornar aluno da Unicamp.

O Acadêmico contou que pensava que o ProFIS seria replicado pelo Brasil afora, que outros fariam algo parecido, mas isso não aconteceu. “Internacionalmente repercutiu muito, até hoje eu sou chamado pra falar do programa. Mas aqui ainda é novidade”.

Para contextualizar, ele apontou que 60% das escolas públicas de Campinas nunca tinham colocado um aluno na Unicamp.  “O vestibular da Unicamp tem 70 mil candidatos para 3.300 vagas. Sabendo da dificuldade pra entrar, os jovens de baixa renda ou de escolas mais fracas nem prestavam o vestibular”, destacou. A proposta então era tentar furar essa bolha.

A distribuição das 120 vagas é feita por meio de cotas geográficas para as 96 escolas de ensino médio de Campinas, oferecendo no mínimo uma vaga por escola. “Temos escolas de excelência e outras fracas.  A vaga é para o melhor estudante daquela escola, naquele ano. Ora, há estudantes excelentes em escolas ruins e vice-versa. Então, alunos não tão bons, que são os melhores de escolas fracas, entram”.

Depois de dois anos de discussões, foi estabelecido, em 2011, o ProFIS – um programa universitário interdisciplinar de educação geral, de dois anos, visando a inclusão social. Nesse período, os estudantes têm acesso a um currículo bastante diverso, visando o desenvolvimento das chamadas “soft skills”. As disciplinas envolvem análise crítica, comunicação oral e escrita, trabalho em equipe e solução de problemas, pesquisa quantitativa e qualitativa, inglês, literatura, matemática, estatística, humanidades, artes, ciências naturais, mudanças climáticas, ciências da saúde, enfim, oferecem uma ampliação da visão de mundo.

Depois desses dois anos iniciais, cada estudante, baseado no seu desempenho, pode escolher qualquer curso dentro da Unicamp, de acordo com as vagas oferecidas. Os cursos têm liberdade para oferecer vagas para egressos do ProFIS. “Usamos as vagas ociosas, não precisamos criar vagas novas”. No início, a medicina ofereceu duas vagas. Mas, segundo Knobel, deu tão certo que agora a medicina oferece dez vagas. “É um curso com 300 candidatos por vaga no vestibular. Dez delas são oferecidas para os alunos egressos do ProFIS.”

Com a implementação do programa, o perfil da Unicamp mudou. “O percentual de pretos e pardos aumentou muito. No ProFIS, 80% dos estudantes tem renda familiar per capita menor que um salário mínimo e meio”.

No caso de alunos em situação de renda familiar muito baixa, o ProFIS oferece bolsa especial de um salário mínimo e meio. Outros alunos têm bolsas de valor menor. “Mas todos recebem transporte, alimentação, suporte médico e psicológico, assistência social e têm muitos monitores para ajudar no estudo de línguas, por exemplo, e dar apoio em outras dificuldades que os alunos do ProFIS possam ter.”

Enfim, o programa conseguiu de fato efetivar a inclusão social. Hoje, existe uma fila de professores da Unicamp querendo ensinar no ProFIS, de acordo com Knobel. Ele afirmou que os estudantes são diferenciados e que depois que entram nos cursos tradicionais, performam no mesmo nível dos estudantes que entraram pelo vestibular.

“Temos que pensar fora da caixa para conseguir não mudar nada que já existe, mas criar coisas novas”, concluiu o Acadêmico.


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Conferência Livre do GT de Ensino Superior: 3ª e 4ª Sessões