Leia entrevista de Fabricio Marques com o físico ex-ministro e Acadêmico Sergio Machado Rezende para a revista Pesquisa Fapesp, publicada em 30/11:

A 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação está programada para acontecer em Brasília entre os dias 4 e 6 de junho de 2024. O evento deverá reunir cerca de 2 mil pesquisadores, gestores públicos e empresários, entre outros interessados. Vai promover debates e formular recomendações para orientar políticas públicas e ações de governo nos próximos 10 anos. Seus resultados serão usados para dar corpo à Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, documento lançado em maio pelo governo federal, que prevê a recuperação da capacidade científica do país, enfraquecida em anos recentes pela escassez de financiamento, políticas para combater a desindustrialização, investimentos em pesquisa em áreas como saúde, energias renováveis e semicondutores, e iniciativas voltadas para o desenvolvimento social.

A primeira conferência nacional aconteceu em 1985, ano de criação do Ministério da Ciência e Tecnologia (hoje MCTI, com o acréscimo de Inovação no nome), e as duas seguintes ocorreram em 2001 e 2005. O país não organiza uma reunião dessa natureza desde 2010, época em que o ministro da Ciência e Tecnologia era o físico Sergio Machado Rezende, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Rezende, que no final do ano passado coordenou o grupo encarregado de formular políticas de ciência, tecnologia e inovação para os 100 primeiros dias de governo, foi nomeado secretário-geral da 5ª Conferência e agora está à frente de sua preparação. Na entrevista a seguir, ele conta como o evento está sendo planejado e o que se pode esperar de suas recomendações.

O senhor era o ministro da Ciência e Tecnologia quando foi realizada a última Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em 2010. Como compara os desafios de hoje e os daquela época?
A última conferência aconteceu no final do segundo mandato do presidente Lula, quando vivíamos um momento auspicioso. Os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) não estavam contingenciados, os laboratórios que precisavam de equipamentos mais caros estavam equipados. Havia um otimismo geral e o propósito da conferência era apresentar propostas que impulsionassem a ciência e a tecnologia no país até os 200 anos da Independência do Brasil. O que ocorreu de lá para cá é que aquelas expectativas foram frustradas. O final do governo da presidente Dilma Roussef já foi muito complicado. Tínhamos uma crise econômica e um Congresso preparando o impeachment dela. E os anos seguintes foram muito ruins. No governo Michel Temer, o Ministério da Ciência e Tecnologia foi incorporado ao das Comunicações, que é um ministério de uso político mais amplo. O governo Bolsonaro, então, foi um desastre. O FNDCT foi tremendamente contingenciado; os recursos de agências como o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] caíram muito. Agora, vivemos uma retomada, mas ainda de forma incipiente. Nesse ano de 2023, o FNDCT não está contingenciado, mas os recursos ficaram comprometidos, porque o governo anterior deixou encomendas muito grandes, fez editais em cima da hora, assinou convênios. O cenário muda de figura em 2024, quando o FNDCT promete ter um crescimento significativo, de mais de 20%. A comunidade está esperançosa, mas sabendo que é preciso ter uma estratégia. O grande objetivo da próxima conferência é criar um plano de ciência, tecnologia e inovação para o decênio 2025-2035. Nosso desafio é analisar o que aconteceu no passado, avaliar o quadro atual e fazer uma proposta para os 10 anos seguintes.

O tema da 5ª Conferência, Ciência, Tecnologia e Inovação para um Brasil Justo, Sustentável e Desenvolvido, é muito parecido com o da reunião de 2010, que foi Política de Estado para Ciência, Tecnologia e Inovação com Vistas ao Desenvolvimento Sustentável. Como foi definido esse tema e por que se decidiu voltar a esse mote?
A comissão organizadora, que é composta por representantes de cerca de 50 instituições, entre associações e autarquias ligadas à ciência e à inovação, 10 ministérios, conselhos de fundações estaduais de amparo à pesquisa e de secretarias estaduais de Ciência e Tecnologia, fez algumas sugestões sobre temas e o formato da conferência. Mas a escolha foi definida por um decreto do presidente da República no dia 12 de julho. O título ficou abrangente e parecido com o outro. Há muito em comum entre essa conferência e a anterior. O contexto da conferência é diferente mas de certa maneira se busca uma retomada daquele caminho que foi perdido. Em maio, a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, assinou uma portaria definindo as bases para uma estratégia nacional e definindo quatro eixos de uma política de ciência e tecnologia. Esses quatro eixos também são semelhantes aos que tivemos no Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação que vigorou entre 2007 e 2010. O eixo 1 é bem abrangente e trata de ciência de maneira geral. O número 2 é ciência e inovação para o desenvolvimento industrial. O 3 é voltado para áreas estratégicas. São mais ou menos 10 áreas, algumas não completamente definidas. Vamos fazer nos próximos meses reuniões temáticas preparatórias para a conferência nacional, em que vão ser discutidos temas importantes vinculados a essas áreas. Finalmente o eixo 4 é ciência e tecnologia para o desenvolvimento social.

O senhor se referiu a reuniões temáticas. E haverá também conferências estaduais e regionais preparatórias. O que está programado?
Estendemos o prazo das reuniões temáticas e das conferências estaduais ou municipais até fevereiro, porque estava muito apertado fazer tudo nesse final de ano. Várias reuniões temáticas foram propostas. Em algumas delas, ainda estamos amarrando com a entidade anfitriã e o organizador. As reuniões e conferências estaduais terão de dois a três dias de duração e o objetivo delas é produzir documentos que servirão de base para as discussões da conferência nacional.

Quais são os temas já definidos para as reuniões temáticas?
Vamos ter, por exemplo, uma conferência temática sobre Ciência, Tecnologia, Inovação e a Juventude. O organizador é o Guilherme Rosso, foi bolsista do programa Ciência sem Fronteiras, trabalhou com o professor Sérgio Mascarenhas [1928-2021], da USP [Universidade de São Paulo] em São Carlos. Vamos ter uma reunião sobre Energias Renováveis, organizada pelo Enio Pontes, da Universidade Federal do Ceará. Teremos em Brasília uma reunião temática sobre a Integração das Ações do Sistema Nacional de CT&I, em que vai se discutir como fazer funcionar marcos legais que foram definidos há alguns anos e estão de certa maneira patinando. Quem vai organizar será o próprio MCTI. O coordenador deverá ser o Guilherme Calheiros, que é o secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do ministério, e também integra o grupo executivo da conferência, juntamente comigo, o Anderson Gomes, meu colega na Universidade Federal de Pernambuco [UFPE], e o Fernando Rizzo, do CGEE [Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, organização social vinculada ao MCTI]. A Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] vai fazer uma reunião sobre política industrial. Vamos ter outra sobre semicondutores em Porto Alegre, onde funciona o Ceitec [Centro de Inovação e Tecnologia], fábrica estatal de semicondutores que entrou em liquidação no governo anterior e agora está se tentando retomar. Vamos ter uma reunião sobre a Amazônia, Ciência e os Saberes Tradicionais. Tem também uma sobre saúde, que vai ser organizada pelo Ministério da Saúde, juntamente com a Fiocruz. Há um elenco de 11 conferências sendo definidas.

Não há desafios emergentes que deveriam ser discutidos? Não há o risco de a conferência, ao buscar retomar o caminho da conferência anterior, olhar pouco para o futuro?
Eu me referi às reuniões temáticas principais, mas não a todas. Vamos ter uma sobre tecnologias quânticas e inteligência artificial, que é um assunto novo e no qual o Brasil fez um esforço relativamente pequeno. Precisamos ganhar volume e nos aprofundar. Tem uma também sobre ciência básica na fronteira do conhecimento, que vai ser organizada pela Academia Brasileira de Ciências e pela SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência]. É muito amplo. Esperamos ter grandes cabeças no Brasil contribuindo para essa discussão.

As reuniões regionais, que virão depois, vão rediscutir os assuntos das reuniões temáticas ou só tratar de temas de interesse local?
Elas tendem a discutir questões regionais, mas alguns temas também devem reaparecer. A conferência da região Norte vai ter uma grande correlação com a reunião temática sobre a Amazônia. Ainda não foram definidos os locais. Sabemos, por exemplo, que Alagoas quer patrocinar a conferência regional do Nordeste, mas isso vai envolver discussões nos conselhos das fundações de apoio à pesquisa e das secretarias estaduais. Cada região vai definir sua agenda e nós não teremos ingerência sobre isso.

E aí, nos dias 4, 5 e 6 de junho, haverá a conferência nacional em Brasília. Como ela está sendo organizada e como deve aproveitar os documentos das reuniões preparatórias?
A conferência de 2010 reuniu cerca de 2,8 mil pessoas e aconteceu em um hotel muito grande, o Brasília Alvorada. Estamos esperando um número menor dessa vez, entre 1,5 mil e 2 mil pessoas, porque toda a programação poderá ser acompanhada pela internet. Estamos considerando três hotéis e está em curso uma licitação. Quem está cuidando disso é o CGEE. Teremos palestras de pessoas com muita experiência na sua área de conhecimento, mesas-redondas, um conjunto de sessões paralelas. Serão três dias com um grande número de atividades. Ainda vamos definir juntamente com a comissão organizadora e com a comissão executiva o tema e o autor de cada palestra e a composição de cada mesa-redonda.

Como serão compiladas as recomendações?
Todas as sessões terão relatores. Um papel dos relatores é produzir um documento com resumo do que foi discutido e com as recomendações. Ao final da conferência, teremos um conjunto extenso de sugestões. Na conferência de 2010, esse trabalho resultou em vários documentos. Os palestrantes e participantes de mesas-redondas se comprometeram a escrever um artigo sobre as apresentações, que foram publicados em livro pelo CGEE. Também tivemos um livro-resumo com as recomendações da conferência e, finalmente, o chamado Livro azul. Como havia mais de 300 recomendações, o Livro azul é mais sintético e propôs uma estratégia de ação para o decênio seguinte. O organizador e responsável pelo Livro azul foi o físico Luiz Davidovich, que depois seria presidente da Academia Brasileira de Ciências e está no conselho consultivo da conferência do ano que vem. A conferência tem uma comissão organizadora, um conselho consultivo e uma comissão executiva. As pessoas que estão à frente no momento sou eu como secretário-geral; o Anderson Gomes, como secretário-geral adjunto; o presidente do CGEE, Fernando Rizzo; e o Guilherme Calheiros, do MCTI.

Uma das recomendações da conferência de 2010 era exigir, nas políticas públicas de inovação, que as empresas fizessem investimentos em pesquisa e desenvolvimento como contrapartida dos investimentos públicos que recebessem. A preocupação também está presente no debate em curso sobre política industrial. Há condições mais favoráveis de engajar empresas em inovação hoje?
Acho que sim. O setor industrial do Brasil é historicamente muito conservador, formado por muitas empresas que fabricam produtos mais simples e inovam pouco. Há cerca de 15 anos, foram definidos dois instrumentos importantes, a Lei da Inovação e a Lei do Bem, e elas gradualmente começaram a ser encampadas pelas empresas. Mas, como não temos uma política industrial – o governo anterior dizia que a melhor política industrial era não ter política nenhuma –, esse arcabouço jurídico foi menos explorado do que poderia. Além disso, a política industrial certamente pode se beneficiar da experiência da academia. O número de empresas geradas nas universidades, nas incubadoras é cada vez maior. Houve a criação de um sem-número de startups. O meu colega, o fisico Carlos Henrique de Brito Cruz [diretor científico da FAPESP entre 2005 e 2020], sempre mostra uns slides com os logotipos de um grande número de empresas originadas na Unicamp. Na USP é a mesma coisa. Promover discussões que envolvam novos empreendedores e empresários de maior experiência é da maior importância. Uma conferência capaz de envolver academia, empresários, industriais, traz um componente importante para o sistema. A CNI [Confederação Nacional da Indústria] só em 2005 realizou sua primeira conferência sobre inovação e nos últimos tempos envolveu-se profundamente com o tema. Temos uma experiência acumulada e a discussão de política industrial na conferência virá em boa hora.

Livro Azul de 2010 estabeleceu metas ousadas para a formação de mestres e doutores, que foram alcançadas, embora, com a pandemia, o número de titulados tenha caído. Como será a discussão agora? Deve-se continuar propondo a ampliação do número de doutores?
A ciência é muito jovem no Brasil. Nós começamos a formar pesquisadores de maneira institucionalizada somente em 1968. Portanto, há 55 anos apenas. Temos no Brasil perto de dois pesquisadores para cada grupo de mil habitantes, enquanto em países industrializados, associados à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], a média chega a oito pesquisadores por mil habitantes. Nossa proporção ainda é relativamente baixa e há espaço para crescer. Tivemos no governo passado um ministro da Educação que dizia que o Brasil estava formando muito doutor, não precisava de tantos doutores. Essa é uma visão completamente equivocada.

Em que ritmo o sistema de pós-graduação deveria crescer, na sua opinião?
Talvez o ritmo de crescimento não precise ser o mesmo dos últimos 20 anos, mas não é o momento de dizer que já formamos o suficiente. Precisamos, de todo modo, expandir as opções de trabalho para os doutores. Dá para expandir um tanto na academia, mas precisamos ampliar bastante nas empresas. A indústria brasileira emprega, na comparação com outros países, um número de doutores ainda pequeno. Quero chamar a atenção para uma mudança que ocorreu nos últimos tempos. Há quase 20 anos, o MCTI começou a fazer programas em parceria com fundações estaduais de amparo à pesquisa. Um exemplo foi o programa de núcleos de excelência, o Pronex, a partir de 2005. O CNPq convidou fundações estaduais para fazer o programa em conjunto e a proposta era a seguinte: uma vez selecionados os projetos de uma unidade da federação, o CNPq entraria com uma parte e a fundação estadual com outra. Isso permitiria ter mais projetos aprovados para aquele estado. Isso se repetiu em 2008, quando foi feito o edital para os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia. Esses movimentos estimularam os estados a colocar para funcionar suas fundações de apoio à pesquisa e a maioria delas buscou seguir o modelo consolidado e bem-sucedido da FAPESP. O Brasil tem hoje 20 fundações estaduais que funcionam de verdade – há outras que existem no papel, mas não têm recursos para investir. É um número muito significativo. As fundações passaram a ter um papel cada vez mais importante, oferecendo bolsas nos estados. Isso contribuiu para o aumento do número de mestres e doutores formados. Estamos mais preparados para continuar crescendo.

Leia o original na revista Pesquisa Fapesp