Leia o artigo do Acadêmico Hernan Chaimovich para o Jornal da USP:
A contratação de docentes de excelência requer que a universidade assuma sua autonomia constitucional. Há décadas, interpretações da Constituição, leis, decretos e resoluções têm afetado negativamente a liberdade que as universidades deveriam ter ao conduzir processos de seleção de funcionários acadêmicos. Destarte, é necessário relembrar o conteúdo do artigo 207 da Constituição Federal: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.
Nos concursos, bancas ou comitês de seleção são impedidos de usar os currículos dos candidatos como critério de exclusão. Não há nenhuma lei que explicitamente declare que o currículo não pode ser critério de exclusão na contratação de docentes na universidade. Porém, interpretações infraconstitucionais dos artigos 205 e 206 da Constituição Federal, de 1988, bem como da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, levam a impossibilidade de utilizar o currículo como critério de exclusão de docentes. De acordo com estas interpretações, o uso do currículo como critério de exclusão pode violar o direito à educação de todos os brasileiros. Assim, análise do currículo pode ser utilizada, exclusivamente, como critério classificatório.
Dificilmente encontramos, alhures, universidades que, antes de aceitar candidatos a posições acadêmicas, deixem de excluir aqueles com currículo inadequado para a posição oferecida. Os membros dos comitês que fazem esta seleção preliminar podem variar, dependendo do país, da universidade ou do departamento, mas costumam ser acadêmicos experientes da unidade que oferece a posição. Os membros desses comitês de pré-seleção podem, ou não, fazer parte daqueles que vão participar da seleção final.
Outros absurdos acadêmicos se cometem quando, por exemplo, concursos exigem que graus acadêmicos tenham um peso definido pela natureza do título. Por exemplo, um título de mestre valeria três e um doutorado valeria quatro. Preliminarmente poder-se-ia concluir que um candidato que possui um título de doutor valeria menos do que outro que concluiu o mestrado antes de iniciar o seu doutoramento. Além desse método descabido, é importante ressaltar que, ainda nesse contexto, um doutoramento obtido na Universidade de São Paulo (USP, Brasil) ou em Cambridge (Reino Unido) teriam, no limite, a mesma pontuação que um título obtido em instituições de muito menor renome. O suposto “valor” atribuído desconsidera a instituição na qual o candidato obteve o título e nem mesmo cogita analisar o conteúdo da tese elaborada.
Como se isso não bastasse, em determinados concursos nos quais temas (ou subtemas) de determinada área são sorteados para que os candidatos depois escrevam uma prova erudita sobre o tema sorteado, esta prova usualmente tem valor considerável, pois se supõe que sua correção seja objetiva. Quantos candidatos criativos, que pensam fora das caixinhas, foram eliminados, pois no sorteio caiu um subtema sem importância, que desconheciam? Só podemos imaginar este número, já que não existem métodos para aferir essa perda.
Poderia continuar a lista de absurdos antiacadêmicos aplicados em muitos concursos de seleção, mas prefiro me ater à falta de coragem, ou simplesmente de interesse, das universidades que, ao aceitarem tamanhas afrontas, ao invés de reclamarem a sua autonomia constitucional, mantêm critérios incoerentes e inconsistentes na seleção de pessoal.
Universidades como a USP, ou departamentos como o meu (dentro do Instituto de Química desta mesma universidade), vêm contratando pessoas com históricos acadêmicos brilhantes. Porém, o meu ponto é destacar a afronta à racionalidade que constitui ação de continuar se submetendo a métodos de seleção que, por estarem longe dos critérios acadêmicos, não poderiam ser aplicados na universidade.
Quais, então, seriam os critérios para selecionar os melhores acadêmicos na universidade? É claro que, como escrevi em artigo anterior, estou pensando em uma universidade idealizada, não necessariamente inexistente, mas próxima àquela que existe entre os meus desejos e meus preconceitos.
Quiçá um dos critérios mais esquecidos é que o processo de seleção, de início, deve ser ativo e justo. Não se trata de contratar, em particular, uma pessoa definida, mas de divulgar de forma clara, transparente e agressiva os atributos de quem se quer contratar. E aqui a palavra agressiva é intencional e resume, de certa forma, o meu pensamento sobre a necessária atitude ativa quando se quer adicionar ao quadro da universidade talento e diversidade.
É evidente, também, que a composição das bancas e dos comitês de seleção deve ser discutida, sobretudo pois, para fazer da inclusão e da diversidade uma realidade, os componentes que decidem também têm que ser diversos. As pessoas que constituem as bancas podem trazer seus preconceitos inconscientes para o processo, favorecendo inadvertidamente candidatos com perfis e/ou formação similar a eles. É claro, também, que esse tipo de reflexão requer que os acadêmicos estejam convencidos da vantagem de um corpo docente criativo e efetivamente diverso.
A experiência recente mostra que o número de candidatos por vaga pode ser significativo. Assim, uma seleção racional, e não burocrática, ao exigir um contato pessoal entre a banca e os candidatos, pode ser facilitada por uma pré-seleção, baseada no currículo e no projeto de ação de cada candidato. Essa pré-seleção é necessária até por motivos práticos, por ser cada vez mais difícil encontrar acadêmicos qualificados dispostos a investir muitos dias em um único concurso.
Os critérios a serem usados para avaliar os candidatos devem ser claros, tanto para a banca quanto para os candidatos. Somente assim a banca poderá selecionar, respeitando a individualidade dos membros, sem que cada um use critérios díspares para julgar os candidatos em potencial. Assim, a pesquisa, tanto demonstrada quanto potencial, pode vir de artigos publicados, mas também pode vir do plano de pesquisa que a pessoa apresenta, no qual aborda o quão profundamente pensou em seu projeto acadêmico. Este, além de pesquisa, deve incluir docência e extensão criativas. Da mesma forma, é importante saber se houve cuidado no planejamento de novos cursos, trazer estratégias de ensino inovadoras ou mecanismos de extensão disruptivos.
Os candidatos devem ter acesso no edital a descrições detalhadas das necessidades dos cargos em disputa, mas o departamento, ou a unidade, deve ter cuidado para não especificar o sub(sub)campo do conhecimento de maneira muito restrita. Candidatos de alta qualidade podem não se apresentar se o edital for restrito demais. Todos os candidatos devem ser respeitados. A clareza do edital é um ponto essencial. A inclusão dos critérios de seleção e pré-seleção precisa ser explicitada e, a todo momento, os candidatos que não prosseguirão no processo devem ser comunicados formalmente em relação aos motivos para sua dispensa com base nos critérios do edital. Isso confere maior humanidade ao processo, o qual é deveras estressante para todas e todos que dele participam. Os outros devem ser informados prontamente sobre os próximos passos. As expectativas em relação à carga de trabalho devem ser declaradas claramente nas entrevistas.
A internet e as mídias sociais facilitaram a divulgação de vagas na universidade, mas é imperioso ir além, para atrair uma gama diversificada de candidatos. Entrar em contato com colegas para identificar candidatos em potencial e convidá-los a se candidatar ainda é um dos métodos de recrutamento mais eficazes, pois os relacionamentos são importantes, assim como é imprescindível garantir a imparcialidade do processo. A universidade deveria, também, anunciar suas vagas em faculdades e universidades que histórica ou recentemente formam alunos de minorias, ou populações vulneráveis, bem como de outros grupos pouco representados no corpo docente. Entrevistas virtuais são uma excelente chance não apenas para aprender sobre o candidato, mas também para o candidato aprender sobre o departamento. Isso pode evitar muitas dores de cabeça no futuro.
Editais claros, entrevistas e pré-seleção podem ser mecanismos acadêmicos de valor, mas para usá-los a universidade deve mudar a atitude, sem aceitar passivamente as interpretações que hoje regulam os concursos de ingresso de docentes. Assumir autonomia plena das universidades para ampliar a qualidade e a diversidade do corpo docente implica manter a sua autonomia didático-científica e administrativa, decidindo internamente os critérios de seleção de seu corpo docente.