Em novembro de 2020, trinta e três periódicos do grupo Nature anunciaram um novo modelo de publicação em Open Access (OA) que elevou as taxas de processamento de artigos (APCs) – valor pago exclusivamente pelos autores – para inacreditáveis US$11.390, algo em torno de R$60.000 na cotação atual. Esse valor equivale a mais de dois anos do valor médio pago pela Capes em bolsas de doutorado, e torna inviável a publicação de trabalhos brasileiros na mais prestigiosa revista científica do mundo.
A transição para o acesso aberto é uma tendência global, e suas consequências podem ser graves se não nos adaptarmos a tempo. Pensando nisso, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) convidou para sua 18ª mentoria, intitulada “Acesso Aberto: Impactos na Pesquisa Brasileira”, as Acadêmicas Alicia Kowaltowski e Márcia Barbosa, duas vozes ativas no alerta para os efeitos que as elevadas APCs têm na ciência brasileira.
Open Access: uma transição problemática
A ideia por trás do acesso aberto é tornar o conhecimento científico mais universal e inclusivo, e a pressão por sua adoção é cada vez mais forte nos países do Norte Global. Lançado em 2018, o Plano S é uma iniciativa de órgãos de fomento de 17 países, em sua maioria europeus, e demanda que seus pesquisadores publiquem exclusivamente em acesso aberto até o fim de 2024. Na mesma linha, a Secretaria de Políticas para Ciência e Tecnologia (OSTP) dos EUA anunciou recentemente que exigirá o mesmo de seus cientistas até 2026.
O Plano S até prevê isenções na cobrança das APCs para países de renda baixa, e descontos para países de renda média-baixa. O problema é que o plano utiliza as definições do Banco Mundial para essas classificações, englobando uma parte ínfima das nações que produzem ciência. Para se ter uma ideia, por essa definição nenhum país da América Latina é isento de cobranças, e apenas Honduras, El Salvador, Nicarágua e Bolívia têm direito a descontos. “Somos ricos o suficiente para ter pesquisa de ponta, mas pobres demais para arcar com o acesso aberto”, resumiu Kowaltowski.
A Acadêmica estimulou que os pesquisadores negociem com as revistas para reduzir as APCs. “A Fapesp estabelece um limite de R$12.000 para auxílio publicação, é preciso levar isso aos periódicos e se recusar a pagar além” sugeriu, “estudos recentes mostraram que o valor máximo gasto por revistas de ponta, como a Nature, para colocar artigos no ar é US$1.000, existe uma taxa de lucro alta no mercado editorial, se assemelha a um mercado de grife, então é possível barganhar”.
Kowaltowski reforçou que os pesquisadores dos países em desenvolvimento precisam se fazer ouvir pelas grandes editoras. Em março deste ano, a pesquisadora conseguiu espaço na própria Nature para publicar uma nota em que denunciava a falta de isenções e descontos para a ciência brasileira. Mas só a ação individual não basta, é preciso que as agências de fomento desses países tomem a dianteira, e tirem a responsabilidade da negociação das costas dos cientistas.
A situação do Brasil
Uma das regiões mais afetadas pela tendência atual do OA, a América Latina, curiosamente, já possui um ecossistema de publicações em acesso aberto bastante acessível – através de plataformas como SciElo, Latindex e CLACSO. “Até pouco tempo atrás, a Scielo respondia pela maior parte das OA brasileiras, mas num ciclo de financiamento muito nacional”, explicou Márcia Barbosa, “para fora da região, a maior parte das publicações brasileiras são nos chamados megajournals, como a PLOS One e o Scientific Reports, revistas transversais com muito mais áreas e artigos, cujos custos são acessíveis”.
Outra característica importante do ecossistema científico brasileiro é a plataforma Periódicos Capes, que permite a nossos pesquisadores acesso a diversas revistas internacionais com assinatura. “É preciso remodelar a plataforma para quando a transição para o acesso aberto se completar, senão corremos o risco dessa verba ser redirecionada para outras áreas”, afirmou Barbosa, “precisaremos gradativamente passar do pagamento de assinaturas para o pagamento de APCs”.
Assim como Kowaltowski, Márcia Barbosa também defendeu que as instituições precisam tomar a dianteira nas negociações, e destacou o papel da Academia Mundial de Ciências para o avanço da ciência nos países em desenvolvimento (TWAS). “A TWAS tem bastante força nos países do BRICS, que são os mais afetados pela transição ao OA, trazê-los para perto, sobretudo a China, nesse momento é crucial”.
Mudança de filosofia
A forma como as políticas para ciência são pensadas no Brasil ainda é muito quantitativa e pouco qualitativa, e isso contribui para manter nossos pesquisadores reféns de altas APCs e até de publicações predatórias. Kowaltowski defendeu que os princípios da Declaration on Research Assessment (DORA) deveriam ser mais seguidos. Em particular, a DORA defende que as métricas de impacto baseadas nos periódicos tem uma série de limitações, e por isso não deveriam ter um peso tão grande na hora de avaliar pesquisas individuais.
Para Márcia Barbosa, o fator de impacto das publicações tem um peso grande por conta do volume enorme de submissões e do tempo restrito que as agências tem para avaliar os pesquisadores. Ela defendeu que uma nova metodologia seja adotada, na qual os cientistas façam um recorte de seus principais trabalhos e expliquem suas contribuições principais, mas para isso é preciso uma mudança de filosofia da própria comunidade científica. “Na última avaliação da Capes, houve uma tentativa nesse sentido que foi fracassada porque os próprios pesquisadores não se dispuseram a fazer essa seleção”, contou.
Pre-prints e pos-prints
Uma tendência recente no mundo das publicações científicas são os repositórios de pre-prints. Plataformas como a ArXiv, bioRxiv e medRxiv permitem que cientistas depositem seus artigos antes da etapa de revisão por pares, com vistas a já iniciar discussões e salvaguardar autoria de ideias. Apesar de existir alguma curadoria nesses arquivos, o que evita que materiais abertamente não-científico ou falsificado sejam publicados, a falta de revisão por pares mais profunda é ponto de controvérsia.
A discussão em torno dos pre-prints ganhou força durante a pandemia. Para se ter uma ideia, o volume de artigos depositados por dia no MedRxiv cresceu mais de oito vezes no início da Covid-19, o que permitiu um intercâmbio mais rápido de conhecimento científico numa situação de emergência. Entretanto, esse modelo acabou por oferecer uma plataforma para que estudos chegassem à mídia antes de passarem pelos controles de qualidade tradicionais da ciência, o que é um risco para o debate público.
Também existem repositórios de pos-prints, ou seja, artigos que já foram aceitos e passaram pela revisão por pares. Nesse modelo, trabalhos podem ser disponibilizados imediatamente ou após algum tempo de publicados, dependendo de como fica acordada a questão de copyright junto aos periódicos. As Acadêmicas defenderam o papel que esses repositórios cumprem no acesso aberto, e que devem ser, pelo menos, considerados na elaboração de políticas sobre o tema.
Assista a mentoria completa: