Leia artigo do Acadêmico Marcos Buckeridge, biólogo, diretor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, publicado no Jornal da USP em 22/8:

Todos nós temos ideias sobre como a sociedade deve avançar e discutimos propostas o tempo todo com os amigos. Impossível, numa roda de conversa entre cinco pessoas por algumas horas, não surgirem pelo menos cinco ideias sobre como poderíamos resolver um problema na nossa instituição, na cidade, no estado, no País e até em outros países. Imaginando que estejamos em um jantar com seis amigos(as), quando surge um tema, primeiro cada um (ou alguns membros do grupo) coloca o seu ponto de vista enquanto os outros ouvem. Depois o processo passa por um período de comentários, com concordâncias e discordâncias. Na discussão, as ideias vão sendo lapidadas até que se consolidem como propostas de como fazer (melhor) as coisas no futuro.

Quando o tema da discussão é algo que tem implicações para o coletivo, já começa um processo que poderá se tornar uma política pública. Este termo tem muitas definições. Uma delas, mais genérica, seria uma proposta para resolver um problema real, ou um anseio de um grupo social através de um procedimento que pode ser implantado e controlado. A conversa entre os amigos pode acabar nos comentários e as opiniões podem permanecer como memórias e nesse caso não se transforma efetivamente em política pública. Mas pode-se ir mais além.

Por exemplo, com nossos seis amigos, podemos combinar uma viagem. Se for de fato realizada, significa que passou por um processo decisório mais complexo. Isto está relacionado com o fato de que as propostas deverão ser aceitas pela maioria, um plano precisará ser elaborado e aceito pelo grupo e, se tudo der certo, executado em grupo. Ao executar o plano, algumas coisas poderão não acontecer exatamente como planejado e por isso o plano precisará ser reajustado durante o curso da atividade. Quando o evento finalmente acontecer, o resultado será tão bom quanto forem as ideias iniciais, os planos feitos, seu desenvolvimento e seus ajustes. No final, o que determina o sucesso daquela “política pública” acordada entre as seis pessoas depende de todo um processo que começa na “ideia” (vamos viajar juntos) e termina num “produto” (a viagem realizada).

O processo relativamente simples de combinar uma viagem guarda uma semelhança estrutural curiosa com o desenvolvimento de tecnologias e de lançamento de novos produtos. Na década de 70, a agência espacial americana (Nasa) sistematizou o processo de compor uma missão ou de obter um produto necessário para uma determinada missão. Esta sistematização acabou se transformando num método que foi consolidado em 1989 e é hoje conhecido como TRL (do inglês Technology Readiness Level). Em português seria traduzido como “Nível de prontidão (ou de maturidade) de uma Tecnologia”.

Definido por Stan Sadin e Ray Chase, da Nasa, o conceito dos TRLs foi capturado pela Comunidade Europeia, que passou a usar os nove níveis da seguinte sequência (ver a Figura 1 no texto original): 1) princípios básicos são observados e publicados; 2) as possibilidades de aplicação são formuladas; 3) provas de conceito da aplicação do princípio são apresentadas; 4) a tecnologia é validada no laboratório; 5) a tecnologia é validada em maior escala, fora do laboratório; 6) a tecnologia é demonstrada num ambiente industrial; 7) um protótipo é colocado para funcionar; 8) o funcionamento do sistema é validado em larga escala e 9) a nova tecnologia é colocada à prova numa situação de “mercado” em um ambiente competitivo.

Atualmente, os TRLs vêm sendo aplicados para vários setores industriais, ao ponto de se tornar uma metodologia considerada confiável para obter inovações. Em essência, o sistema de uso dos TRLs consiste em uma metodologia de tomada de decisões que pode ser utilizada em vários processos que requeiram decisões tomadas coletivamente numa determinada direção. Em alguns casos os nove níveis têm sido divididos em fases, de forma que superposições e frações dos TRL podem ser significativos (exemplo do lado direito da Figura 1 no texto original). Por exemplo: 1) pesquisa básica (magenta); 2) prova de factibilidade (azul); 3) desenvolvimento tecnológico (verde); 4) demonstração da tecnologia (amarelo); 5) desenvolvimento do sistema tecnológico (laranja) e 6) lançamento e operação da tecnologia (vermelho).

Isto quer dizer que o conjunto de amigos planejando uma viagem poderia utilizar TRLs para maximizar o sucesso de seu projeto. Assim, colocando sobre a mesa a ideia inicial e em seguida avaliando a sua praticidade quanto aos custos e logística, a viagem pode acabar se tornando realidade.

Minha proposta é que a mesma ideia possa ser adaptada para políticas públicas bem mais complexas no domínio de um município, um Estado e mesmo da União. A ideia de usar os nove níveis, seguindo o padrão dos TRLs, serve para que as metodologias em franca expansão possam ser adaptadas para a gestão pública de forma automática, quando necessário. É a inovação nas políticas públicas.

Ao invés de TRL, chamarei cada passo de MPP, que significa Maturidade da Política Pública. As mesmas três letras também servem para uso na língua inglesa: Maturity of Public Policies. Na Figura 2 (veja no texto original) são mostradas as fases e as entidades na sociedade que trabalham em conjunto para desenvolver uma política pública. As fases na figura são colocadas de forma arbitrária e os comprimentos das fases podem mudar de acordo com a política pública.

Como no caso dos seis amigos planejando uma viagem, a ideia original é crucial. No caso da viagem, saber para onde ir, porquê ir para lá e o que há no destino que seja de interesse coletivo. Para uma política pública de grande porte sendo desenhada e colocada em ação num período de gestão governamental é absolutamente essencial que os fundamentos sejam cientificamente embasados. Portanto, é importante que, ao surgir uma ideia, seus fundamentos sejam buscados.

Para isso, via de regra, a universidade e os institutos de pesquisa são os locais onde procurar. O tipo de conhecimento de que se fala aqui é não somente a descoberta básica (MPP1), mas também a visão de sua aplicação (MPP2) e se possível alguma prova de conceito local, mesmo que seja parcial (MPP3). As universidades e os institutos de pesquisa são os produtores de conhecimento e os dados primários que podem ser utilizados nos próximos passos. Mas note que em MPP3 já se faz necessária a colaboração com outras entidades, como órgãos de governo, política e setores da sociedade.

Se o conhecimento já existir, após a obtenção de indícios de que possa haver aplicação, pode-se avançar para MPP 4. A fase em laranja na Figura 2 (no texto original) denominei o Desenvolvimento da Política Pública. Ainda que parte do processo esteja sendo desenvolvida junto à academia, o comando passa para outro domínio. Nesta fase, órgãos de governo, ONGs e a política são elementos importantes, pois é uma fase em que é necessário transformar aquela ideia inicial em algo que possa ser aplicado na prática. Se possível, será importante produzir testes que permitam saber se o caminho é seguro. Ou seja, é preciso obter prova de conceito de que, segundo indicadores reais e no domínio das aspirações da sociedade, o plano poderia realmente funcionar.

Uma vez que uma política pública ainda embrionária seja validada por dados e algumas aplicações isoladas, o plano se torna gradativamente mais apto à aplicação no mundo real e em maior escala. A partir de MPP6-7, tornam-se progressivamente mais importantes os papéis da gestão pública, das empresas e da sociedade. Nesse nível, já é possível fazer um lançamento do projeto, testar suas aplicações e fazer o projeto funcionar na prática. É também o momento de avaliar se a política pública está funcionando e se necessário fazer ajustes.

Usarei aqui como exemplo um conjunto de processos que acompanhei na Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (Sima). Os processos de concessão de áreas de preservação, como a Serra do Mar e a Cantareira, seguiram um padrão muito parecido com o que descrevi acima. Partiram de uma base sólida de conhecimentos, que foram produzidos pelas universidades e institutos de pesquisas paulistas. Foi feito um plano que, a partir de MPP3,5 passou a ser comandado pela Sima. Em meio ao planejamento, foram feitas consultas à comunidade (várias comissões com membros da academia e da sociedade) e antes de iniciar o processo de licitação, foram feitas audiências públicas de forma que a sociedade pôde opinar sobre o plano.

Nos dois casos citados, o processo funcionou e resultou na concessão dentro dos parâmetros planejados e com as alterações propostas pela sociedade. Agora, o processo encontra-se em MPP9. Há casos, porém, em que há dificuldades devido à falta de informação ou resistências imprevistas, o que pode invalidar todo o projeto. Isto provavelmente se dá porque é muito difícil antecipar todas as barreiras possíveis quando se inicia o planejamento de um sistema complexo. Porém, ao usar um método como o MPP, ao invés de simplesmente partir de uma ideia e tentar aplicá-la sem testes ou planejamento prévios, diminuímos a probabilidade de fracasso. Em outras palavras, o uso do MPP evita que a probabilidade de sucesso de uma política pública seja de 50%. Em outras palavras, que dê certo ou não.

É nítida aqui a importância da democracia neste processo. O método MPP tem a democracia em sua essência, pois tem a participação da sociedade em todo o processo. Olhando desta perspectiva, quanto mais sólida for a democracia e quanto maior a qualidade do conhecimento produzido por uma sociedade, melhores serão os resultados de suas políticas públicas e, consequentemente, maior deverá ser o bem-estar e a satisfação da sociedade com os resultados.