A Reunião Magna Virtual da Academia Brasileira de Ciências (ABC) foi encerrada com o painel “Futuro Pós Pandemia”, realizado no dia 2/10. A vice-presidente da ABC, Helena Nader, o Acadêmico Celso Lafer e o presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), Marco Lucchesi, se reuniram com o objetivo de debater sobre os desafios deixados pela pandemia. O presidente da ABC, Luiz Davidovich, participou como moderador da reunião.
Relações internacionais pós-pandemia: desafios da diplomacia brasileira
A Reunião Magna da ABC, neste ano em modelo virtual, foi uma experiência de intercâmbio de conhecimentos entre cientistas de diferentes áreas e origens. A programação refletiu a prática contemporânea da pesquisa científica, em um cenário globalizado, sem fronteiras para o conhecimento. “É o poder da sociedade de dar rumo ao seu destino”, comentou o Acadêmico Celso Lafer. Ele foi ministro das Relações Exteriores e presidiu por oito anos a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), trajetória que o levou a tratar, no painel, da relação entre ciência e diplomacia.
A pandemia de COVID-19 evidenciou desafios que afetam todo o mundo, como a desigualdade. Por outro lado, a busca da criação de uma vacina contra o novo coronavírus em tempo recorde está aproximando os cientistas e as instituições do mundo. “A cultura da pesquisa expande as fronteiras do conhecimento e traz mudanças significativas para as condições de vida, em escala planetária”, disse Lafer. “A porosidade das fronteiras entre diferentes países ajudou a desenvolver uma interdependência que torna a presença da ciência na diplomacia algo indispensável”, afirmou o Acadêmico.
Além da crise provocada pela pandemia, o Brasil enfrenta crises ambientais em diferentes regiões. Queimadas afetam o Pantanal e a floresta Amazônica. Há escassez de água e temperaturas acima da média em algumas regiões, provocadas pelo aquecimento global. Ainda hoje, ecossistemas importantes se recuperam de desastres ambientais, com a costa do Nordeste após um derramamento de óleo e a Bacia do Rio Doce após o rompimento de uma barragem com minério de ferro. A ciência, nesse âmbito, é a ferramenta para enfrentar os desafios e dar soluções, em prol do meio ambiente. “O conhecimento científico é fonte de grande parte das normas de direito ambiental e da diplomacia entre nações, para lidar com o dano ambiental que se projeta para o futuro”, disse Lafer.
Em meio a tantos desafios complexos, o Brasil convive com o negacionismo científico e um governo desatento à ciência. “Precisamos situar o Brasil no mundo e assegurar, diante desses desafios, o controle do país sobre o seu próprio destino”, disse Lafer. “A pandemia catalisou desafios de ordem mundial que precisam de políticas nacionais efetivas e baseadas em ciência para a sua superação”, concluiu.
A cultura: um projeto de unidade
A interlocução entre diferentes saberes foi um marco da Reunião Magna da ABC. Perspectivas complexas, como as apresentadas durante a pandemia, pedem, muitas vezes, respostas complexas da ciência. “Esse é um momento de grande reflexão, não podemos mais operar em categorias dualistas e semelhantes, como matemática e física ou cultura e poesia. Precisamos criar novos paradigmas”, afirmou Marcos Lucchesi, que, como presidente da ABL, desenvolve projetos literários em comunidades, escolas, associações comunitárias, presídios e hospitais.
“Em nossas universidades, vemos a burocracia impedindo o diálogo entre diferentes saberes e realidades”, disse Lucchesi. Para ele, a pandemia de COVID-19 evidenciou a necessidade integrar conhecimentos e esforços. “Devemos nos desespecializar para nos comunicar melhor”, afirmou.
A ciência, num momento difícil para a vida humana no planeta, se mostrou essencial.
“Temos que sair melhores desse processo, que trata da sobrevivência do planeta, de modo que a Terra não se torne um único grafite perdido no universo. Temos que pensar sobre tudo o que deixamos de fazer”, disse. Mas Lucchesi não se mostrou pessimista. Citando o filósofo Martin Heidegger, destacou que acredita que “onde há perigo, cresce o socorro”.
O futuro da saúde: uma visão global
A vice-presidente da ABC, Helena Nader, abordou aspectos importantes, como a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) na COVID-19, inclusive na lida com a saúde mental dos pacientes, durante e após a pandemia. Apontou que outras doenças negligenciadas também precisam de atenção do SUS no Brasil, pois afetam as populações pobres de diversos países. E falou sobre a “saúde única”.
Nader destacou o papel do SUS na linha de frente no enfrentamento da pandemia de COVID-19. O SUS, segundo ela, ajudou a evitar a morte de milhares de pessoas no país. “O Estado brasileiro precisa se comprometer com o financiamento do SUS para melhorar e implementar ações buscando a melhoria do serviço”, afirmou.
A pandemia evidenciou o quanto o país precisa investir, inclusive em tecnologia, para promover melhores condições de saúde para todos. “E teremos que adequar o SUS a isso”, completou. Ela ressaltou que a medicina de precisão, por exemplo, já é uma realidade em diversos lugares, bem como o uso da inteligência artificial, além da telemedicina. “Esta realidade deve ser trazida para o SUS”, disse.
A saúde mental da população está sendo muito afetada pela pandemia, não só no Brasil, segundo Nader. Mas aqui, os múltiplos problemas psicológicos oriundos da COVID-19 exigirão uma resposta muito mais organizada do que é atualmente possível, em função da falta de atendimento psiquiátrico público em muitas partes do país. Novamente, vai ser necessário o atendimento pelo SUS e o sistema precisa de estrutura nessa área da saúde para dar conta dos problemas que virão.
Helena Nader também ressaltou que, além da COVID-19, há diversas doenças negligenciadas que se manifestam em meio a realidades de pobreza e falta de saneamento. “Essas doenças afetam mais de um bilhão de pessoas no mundo e custam às economias dos países em desenvolvimento bilhões de dólares todos os anos”, apontou.
O mundo em que vivemos está mudando e essas mudanças afetam nossa saúde, na visão de Nader. Ela avalia que as diversas epidemias que ocorreram no mundo nas últimas décadas, como a influenza, o ebola e a zika, têm origem num descompasso do avanço humano, que provocou a degradação ambiental. Nas últimas três décadas, vem ficando cada vez mais claro que a maioria das novas doenças infecciosas zoonóticas emergentes se originam especialmente nos animais selvagens e que os principais motores de sua emergência estão associados às atividades humanas, incluindo mudanças nos ecossistemas e no uso da terra, intensificação da agricultura, urbanização, viagens e comércio internacional.
É urgente, segundo ela, que o mundo adote o conceito de ‘saúde única’ (em inglês, one health). A saúde planetária, segundo Nader, envolve a vida humana, animal e do ambiente, de forma interdependente e integrada. O conceito citado rompe as fronteiras da saúde animal, humana e ambiental para compreender o aparecimento e desenvolvimento de cada doença zoonótica emergente e propor planos de resposta e controle. “Para isso, precisamos de uma abordagem colaborativa e multidisciplinar”, disse Nader. “Precisamos desenvolver um olhar holístico e transdisciplinar”.