A Reunião Magna Virtual da ABC 2020 convidou líderes políticos e especialistas para um encontro no dia 29/9, sobre a conservação e o desenvolvimento sustentável da floresta amazônica. Com o tema “Amazônia: Desafios para o século XXI”, Maria Fernanda Espinosa Garcés, o Acadêmico Carlos Nobre e José Gregório Mirabal apresentaram suas perspectivas e propostas para o futuro da região. O vice-presidente da ABC para a Região Norte, Adalberto Val, atuou como moderador do painel.
Amazônia: um local de paradoxos e diversidade
A pandemia de COVID-19 tem afetado povos indígenas de vários países da América Latina. Para María Fernanda Espinosa Garcés, ex-ministra das Relações Exteriores do Equador, esse quadro não expõe apenas a desigualdade atual, mas toda uma história local de pobreza e segregação relacionada à colonização na América Latina.
“Falar da Amazônia é falar das minhas raízes”, disse Garcés, que foi professora associada e pesquisadora da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais. Em 1998, quando começou a escrever artigos sobre a Amazônia equatoriana, ela não imaginava que 22 anos depois não apenas o Equador, mas todos os países que compõe a Bacia Amazônica continuariam a enfrentar os mesmos problemas. “Vemos, através da história, que a Amazônia sofre com a expansão constante das commodities agrícolas para ganhos em curto prazo”, lembrou. Ela relaciona o modelo econômico vigente à desatenção aos povos indígenas e à sua própria economia local, capaz de gerar mais recursos para os países amazônicos, como o Brasil.
Grcés avalia que há na região amazônica um cenário de abundância de recursos e escassez de direitos e de uma boa economia. “Indicadores socioeconômicos dos países latino-americanos apresentam números terríveis. Toda a região levaria até 80 anos para chegar a um patamar adequado de bom desenvolvimento”, alertou ela. “A Amazônia é um desses lugares de paradoxos e diversidade, onde vemos a vida e a morte interconectadas. Uma região de riquezas e de práticas econômicas predatórias”, disse. Para ela, que foi diretora regional para a América do Sul e consultora de biodiversidade na União Internacional para Conservação da Natureza, em Genebra, uma das causas de toda essa iniquidade vem da dominação da cultura ocidental em detrimento dos conhecimentos da floresta guardados pelos povos nativos.
Os números do desmatamento da Amazônia dispararam em 2020. No Brasil, dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) detectaram um aumento de 34% nos últimos 12 meses na destruição da floresta. “Estamos em um momento de não retorno com o desmatamento da região amazônica e podemos herdar uma biodiversidade 7% menor, além do empobrecimento dos povos locais”, disse Garcés. Com mais de 20 anos de experiências com negociações internacionais em assuntos sobre biodiversidade e povos indígenas, ela demonstrou preocupação com a situação de vida de cerca de 34 milhões de pessoas que habitam a Amazônia. “Temos que considerar a complexidade da região a partir de uma abordagem transterritorial e transnacional, investir nas economias locais e no conhecimento tradicional”, disse, ao chamar a atenção para o movimento destrutivo da pecuária e das monoculturas para dentro da floresta.
Bioeconomia com floresta em pé e rios fluindo
“Precisamos que os países amazônicos se transformem em potências ambientais da sociobiodiversidade”, disse o Acadêmico Carlos Nobre, ex-presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e um dos mais importantes estudiosos brasileiros do clima e das mudanças climáticas. Responsável pela retirada de carbono da atmosfera, a floresta amazônica, segundo o cientista, é um estoque de água doce e pode conter até mais de 15% de toda a biodiversidade do planeta. “Um paraíso verde”, disse. “Em um hectare do território amazônico, é possível encontrar mais espécies de plantas tipo angiospermas do que em toda a Europa”, ressaltou.
Apesar do valor para a vida humana e das demais espécies, a floresta amazônica corre o risco de desaparecer. Nobre apontou para a possibilidade de savanização da região, em virtude das mudanças climáticas extremas. “Esse risco foi ativado com o aquecimento global, com os incêndios e o enorme desmatamento na região. A estação seca na Amazônia já está três ou quatro semanas mais longa”, alertou Nobre. O cientista explicou que é preciso frear o desmatamento para evitar um ponto de não retorno, em que a degradação, hoje em 16% em toda bacia Amazônica, alcance a marca de 20% sobre o território nacional.
O Acadêmico, que é pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e foi coordenador-geral do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/INPE), apresentou algumas soluções a partir de novos modelos produtivos e econômicos que podem ser empregados pelos países amazônicos: a agrofloresta e a bioeconomia. “Os indígenas mantiveram esse modelo por milênios. É como utilizar, hoje, as ferramentas modernas para acessar os maiores recursos biológicos que existem no mundo”, disse.
O potencial de uma economia baseada na “floresta em pé”, pelas palavras do cientista, leva em consideração as culturas e os conhecimentos tradicionais, ajuda a diminuir a pobreza e a preservar a floresta. “Há um discurso de que a biodiversidade não tem valor econômico e de que, para diminuir as desigualdades, é preciso diminuir a floresta”, contou. Dados apresentados por Nobre, porém, demonstram que sistemas agroflorestais de produção de cacau, castanha e açaí podem gerar ainda mais valor e lucro do que as práticas atuais adotadas no plantio de monoculturas e pecuária.
Nobre integra um projeto que propõe a união dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas com o progresso científico-tecnológico, o Amazônia 4.0. Formado pelos Laboratórios Criativos da Amazônia e pelo Rainforest Business School, a iniciativa visa, dentre outras propostas, capacitar as comunidades locais, gerar indústrias que utilizem produtos das florestas amazônicas e desenvolver o empreendedorismo sustentável. “É um grande desafio levar essa revolução para o interior do país. As Academias de Ciências são essenciais para liderar esse novo conhecimento”, disse Nobre, que além de membro titular da ABC é membro da Academia Mundial de Ciências (TWAS) e membro estrangeiro da Academia nacional de Ciências (NAS, na sigla em inglês), dos EUA.
Isolamento e descaso
A degradação da Amazônia avança no Brasil e nos outros países que também dividem seu território com a floresta. A Bolívia, em setembro deste ano, decretou emergência nacional por queimadas em áreas verdes. Um vazamento de petróleo, em abril, na Amazônia equatoriana, provocou o maior derramamento de óleo dos últimos 15 anos na região. “Estamos vivendo uma catástrofe sanitária, ambiental, política e cultural na Amazônia”, disse José Gregório Mirabal, coordenador-geral da Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica), que reúne organizações indígenas dos nove países da região amazônica.
“Enquanto a humanidade se isola contra sua vontade por conta da pandemia de COVID-19, nossos irmãos indígenas vivem isolados há anos”, disse Mirabal. Para ele, a crise sanitária provocada pelo novo coronavírus evidenciou a vulnerabilidade social vivida pelos povos indígenas ao longo de séculos da história da humanidade. “São bilhões, trilhões de dólares destinados à exploração e destruição da natureza e poucos recursos para salvá-la e a seus povos”, destacou o líder indígena.
Mirabal destacou que no meio da maior floresta tropical do mundo, há povos que temem a fome e a pobreza extrema. Durante a pandemia, comunidades ribeirinhas e indígenas espalhadas pela região amazônica tiveram suas terras destruídas por incêndios, vazamentos de óleo e desmatamentos. “As leis nacionais favorecem o extrativismo e não fazem respeitar os territórios indígenas”, disse o líder indígena, ressaltando o descaso com que os povos originários da região são tratados pelos povos ditos “civilizados”.
A cada dez anos é realizada a Cúpula das Nações Unidas sobre Biodiversidade. Neste ano, com o tema “Ação Urgente de Biodiversidade para o Desenvolvimento Sustentável”, líderes políticos de diversas nações, inclusive o Brasil, discursaram sobre a situação da Amazônia. “Sempre falam que temos que viver em harmonia com a natureza, mas já se passaram anos e estamos em processo de extinção de espécies e não estamos cumprindo nenhum objetivo para a perda do mundo natural”, disse Mirabal. “Não puderam fazer o que os povos indígenas sempre fizeram: proteger cerca de 80% da biodiversidade das florestas sem apoio ou recursos”, completou ele.