É difícil definir a formação profissional de Ismail Serageldin. Nascido em Gizé em 1944, ele fundou a Biblioteca de Alexandria, foi vice-presidente do Banco Mundial, codiretor de painéis africanos sobre biotecnologia e inovação. Escreveu mais de cem livros e recebeu 37 doutorados honoris causa, de países tão diversos como Austrália, EUA, Índia, Líbano, Bulgária e Azerbaijão.
A trajetória de sucesso é definida em poucas frases em seu site: “O mundo é minha casa. A Humanidade é minha família. A não violência é meu credo. Paz, justiça, igualdade e dignidade para todos é meu propósito”.Serageldin abriu a conferência “Como ciência e tecnologia podem contribuir para a redução da pobreza e da desigualdade“, organizada em março pela Academia Brasileira de Ciências. Em entrevista ao GLOBO, ele conta como a desigualdade social cresce em ritmo acelerado, apesar dos benefícios da globalização, e critica o despreparo das autoridades para atender a população miserável. Há, no entanto, boas notícias — a comunidade científica internacional nunca esteve tão integrada, e isso pode ajudar no desenvolvimento de novos fármacos e em tecnologias que, no futuro, podem ajudar a combater a fome.
A ciência contribuiu para enormes avanços no desenvolvimento socioeconômico. Por que, então, ainda temos tantas pessoas sem condições básicas de sobrevivência, como acesso a água potável e a saneamento básico?
De fato, conseguimos progredir muito. No início do século XIX, 99% da população do planeta vivia em condição de pobreza extrema. Agora, esperamos extingui-la em dez ou 15 anos. Mas as transformações podem ser mais rápidas. Ainda nos deparamos com a fome crônica, e é difícil atacá-la, já que suas vítimas estão em locais de difícil acesso e, geralmente, sem condições de cultivo agrícola. Muitas vezes são refugiados, seja pela guerra ou pelos impactos das mudanças climáticas.
O senhor acredita que o planeta está atento a essa população?
Não. A fome é um Holocausto silencioso. Custa milhares de vidas e, ainda assim, não gera comoção ou debate.
Por que o fosso entre ricos e pobres é cada vez maior?
Acredito que isso tenha começado na década de 1980, quando governos neoliberais convenceram o mundo de que o setor privado poderia assumir tarefas básicas do serviço público. Era uma mentira, que aumentou a desigualdade em todos os países, da Suécia à Somália. Nos EUA, o país mais rico do mundo, 20% da renda estava nas mãos da metade da população mais pobre em 1980. Este índice caiu para 12,5% em 2014. No mesmo intervalo, a camada de 1% dos mais ricos, que controlava 10,7% da renda nacional, passou a ter 20,2% em suas mãos.
Por que muitas pessoas encaram a ciência como algo tão distante de sua realidade?
Em muitos casos, não há mesmo um diálogo direto entre cientistas e a sociedade. Ambos se conhecem apenas através da tecnologia desenvolvida nos laboratórios e incorporada ao nosso cotidiano. Mas outras finalidades da ciência também devem receber mais atenção, como o investimento na curiosidade. Na primeira metade do século XX, Albert Einstein desenvolveu trabalhos sobre a física quântica que, à época, não tinham qualquer aplicação prática. Depois, suas fórmulas tornaram-se fundamentais para a criação do computador e do celular. O setor privado, laboratórios nacionais e universidades devem proporcionar recursos a estas experiências.
Milhares de remédios foram desenvolvidos nas últimas décadas, mas somente algumas dezenas foram destinados ao tratamento de doenças tropicais. Falta diálogo entre países desenvolvidos e em desenvolvimento?
Acredito que este diálogo nunca foi tão intenso. Uma pessoa infectada por ebola na África pode parecer um caso isolado, mas, se ela viajar de avião, em poucas horas leva o sintoma da doença para o outro lado do mundo. Por isso, há cada vez mais colaborações, e não apenas na prevenção de doenças. Países como o Brasil e os EUA estão investindo no aumento da produtividade agrícola. Os avanços obtidos a partir daí deveriam ser levados a partes do planeta que serão mais atingidas pelas mudanças climáticas, onde os cultivos serão prejudicados por eventos como enchentes e secas. Também devemos pensar mais em biotecnologia, dando recursos a produtos como a carne artificial, que tem o mesmo gosto da natural, mas é feita em laboratório, sem que essa atividade ocupe terrenos enormes.
Qual é o futuro da ciência?
Ele é baseado em um princípio: o desejo de destruir a atual forma de se pensar. Isaac Newton revolucionou o mundo, até que um total desconhecido, de 26 anos, que nem sequer trabalhava em uma universidade, mudou a ciência. Era Einstein. Agora, procuramos um pós-Einstein. Precisamos estar abertos a novas ideias, que contrariem as nossas crenças, e muitas vezes estas descobertas vêm de jovens que ainda estão na casa dos 20 anos. São nossos alunos, às vezes alguém que trabalha em uma garagem.
O Brasil investe menos de 2% de seu orçamento em ciência. É possível avançar com a falta de recursos?
O país reduziu razoavelmente bem o fosso entre ricos e pobres no início do século XXI, quando atacou simultaneamente a desigualdade e a pobreza. Mas não adianta ter dinheiro sem seguir alguns fatores, como ter instituições públicas que deem amparo político à pesquisa. O Brasil aumentou sua produção científica, mas a qualidade ainda não avançou suficientemente.