O economista egípcio Ismail Serageldin, graduado pela Universidade do Cairo com PhD pela Universidade de Harvard, iniciou a palestra especial do dia 27/3 elogiando a iniciativa da Academia Brasileira de Ciências (ABC) em organizar a Conferência Internacional “Como Ciência e Tecnologia Podem Contribuir para a Redução da Pobreza e da Desigualdade”. “A ciência pode contribuir para alimentar os famintos, curar os doentes, proteger o ambiente, garantir trabalho digno, conectar o mundo, estimular a alegria da expressão pessoal. E tudo isso está associado aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável”, afirmou. “Ainda não podemos desenvolver alguns destes ODS por falta de tecnologia. Mas aqueles relativos à pobreza, fome e desigualdade estão integrados – não só com relação à economia, mas à situação social”, apontou.

 

Relatividade dos indicadores

Serageldin abordou um aspecto muito importante: a relatividade dos indicadores.  Os números “oficiais”, segundo ele – que foi presidente do Banco Mundial entre 1993 e 2000 -, não podem ser tomados como absolutos.

Começando pela definição de pobreza, ele diz que ela deveria ser multidimensional. “Mas geralmente a referência tomada é a renda; usa-se também o PIB per capita como indicador. Mas estes indicativos estão errados, porque a miséria absoluta continua existindo, sem solução”.

Segundo Serageldin, deveriam ser considerados consumo e bem estar em vez de renda. “Precisamos avaliar sustentabilidade como oportunidade. Este é um tipo de capital. Meu filho tem mais capital do que eu e mais chance de aumentar este capital. A academia  precisa mudar esses indicativos”, afirmou.

Alguns indicadores, por exemplo, mostram que 70% da população pobre do mundo vivem em regiões rurais. Mas segundo a Oxfam – confederação de 19 organizações e mais de 3000 parceiros, que atua em mais de 90 países na busca de soluções para o problema da pobreza, desigualdade e da injustiça, por meio de campanhas, programas de desenvolvimento e ações emergenciais -, este índice é de 85%. “A pobreza multidimensional é avaliada por três indicadores: padrão de vida, educação e saúde. Quando há muitos números, fica mais difícil de avaliar. E combinar os números dos múltiplos indicadores não é simples, é difícil atribuir o peso adequado a cada fator considerado”, destacou o palestrante.

Sobre a avaliação de populações que vivem abaixo da linha de pobreza – que hoje corresponde a viver com menos de U$ 1,90 por dia – ele afirmou que há uma certa subjetividade, que varia de sociedade para sociedade. “A avaliação parte do princípio que podemos definir a linha de pobreza. Mas existe a profundidade da pobreza. Um grupo pode estar logo abaixo da linha da pobreza ou estar lá no fundo da pobreza. Na África do Sul, por exemplo, vê-se uma grande diferença na pobreza de negros e brancos.”

 

Percepção da pobreza

Em sua visão, a pobreza relativa não é só falta de dinheiro. “Em algumas situações não há dinheiro, mas há cultura e conhecimento. Então, tem mais a ver com a marginalização na sociedade, a exclusão social, a pessoas serem abandonadas à própria sorte.”

A Nigéria tomou o lugar da Índia com o maior numero de pessoas em pobreza extrema. Na África, a situação está piorando: “O índice era de um dólar por dia em 1996 e em 2019 vai cair pra centavos. Posso não saber medir os índices com precisão, mas reconheço a miséria quando vejo pessoas vivendo assim”, disse ele, referindo-se as imagens projetadas.

A pobreza extrema está associada a desnutrição, à fome, mesmo havendo produção no país. “Esta situação não deve ser aceita por ninguém. É desumana, é indigna. A fome precisa ser eliminada, está abaixo da decência humana e deve ser abolida. E ela passa por valorizarmos os pequenos produtores. Sem eles, não há solução. A questão de gênero, como na Índia, tem que ser eliminada também”, exaltou Serageldin.

Diretor fundador da Biblioteca Alexandrina e da Nova Biblioteca de Alexandria, ele afirma que o mercado não vai dar solução para esse problema, porque seus representantes acham que todos têm escolhas. “Mas nestes casos, não há escolhas. Um milhão de pessoas vivem nessas condições. E o número de bilionários que há no mundo só faz aumentar.” E por que é assim? Porque as políticas econômicas, de acordo com o palestrante, se opõem às políticas sociais. “Elas consideram a pobreza como parte da estrutura social”, assinala Serageldin.

Os índices citados não falam tanto de desigualdade, porque referem-se só aos pobres; a desigualdade fala dos pobres e dos ricos – e da relação entre ambos. “Os ricos não se importam com os pobres. A lacuna entre poucos que gastam muito e outros que não têm como comprar comida está presente em todos os países, mesmo os que já conseguiram tirar grande parte da população da pobreza absoluta”, aponta.

Na visão de Serageldin, cada país tem que ter politicas e objetivos sociais para acrescentar aos objetivos econômicos. “Temos que falar de promover mobilidade social, estes são objetivos sociais e não econômicos. A pesquisa social é fundamental para que os pesquisadores entendam as necessidades e as ações que podem ou não funcionar. Temos que continuar estudando e medindo a pobreza. Mas temos que mudar a forma de fazê-lo.”

 

Fome: um problema crônico que precisa de ciência

Mesmo com tantas pesquisas, Serageldin diz que não há ainda acordo, por exemplo, sobre quantas pessoas passam fome no mundo. Os números diferem a cada fonte. “As medidas de produção de cada país são diferentes e a comparação entre eles não é realista de fato. O Banco Mundial adora fazer isso, mas os países tem moedas diferentes. Temos que voltar ao que interessa, que são as pessoas”, reiterou.

Na África, onde está a maior parte da população pobre, esta vem aumentando rapidamente. Na região subsaariana, 95% da agricultura está relacionada ao ciclo de chuvas e ciclos de seca, que levam à fome e a situações devastadoras. “A variabilidade provocada pelas mudanças climáticas está piorando a desertificação, os poços estão secando, o gado está morrendo.”

E como se não bastasse, há outros conflitos resultantes dessas condições de subsistência. No leste do Sudão há guerra entre as tribos, que vivem em conflito permanente. A quantidade de pessoas que vem se deslocando parte basicamente da África e Oriente Médio, deixando um rastro de destruição e um número crescente de refugiados. E tudo, de acordo com Serageldin, está relacionado ao preço da comida. “Não há governo que consiga solucionar isso. Os recursos aquáticos precisam ser estudados, porque é um caminho para acabar com a fome. É preciso aumentar a produção. Precisamos de 70% a mais de comida até 2050.  Não temos como aumentar a terra, então temos que aumentar a produção no mesmo espaço de terra. Precisamos trabalhar o solo, precisamos de sementes geneticamente modificadas para ampliar a produção, precisamos diminuir o desperdício oriundo do transporte inadequado. E temos que investir na urbanização, porque a pobreza urbana está crescendo sem agricultura urbana, nem infraestrutura”, listou.

E como transformar a agricultura? “Hoje é preciso um litro de agua para produzir uma caloria de comida. Isso só vai mudar com ciência, para melhorar o solo, melhorar a gestão da água, fazer o beneficiamento de sementes para torná-las mais nutritivas”, reafirmou. Serageldin relatou que o uso de drones tem ajudado em regiões remotas da África, pois podem analisar plantações, fontes de água e gerar muitos dados que podem ser levados com precisão e rapidez aos centros de pesquisa, para subsidiar o trabalho dos cientistas.

Ele destaca a técnica CRISPR, que usa séries de bactérias para aumentar componentes de uma determinada cultura, e diz que ela pode ser usada na agricultura sem medo. “Isto irá transformar a realidade, enriquecendo a nutrição dos solos e preservando água. O que virá dos estudos na biologia ainda não conseguimos nem imaginar.”

O pesquisador conta que, quando fala sobre isso, às vezes é acusado de “estar querendo ser Deus”. Ele responde que o homem já faz isso há muito tempo. “Desde que acendemos uma luz, estávamos transformando noite em dia”, observa.

O que o mundo precisa agora é transformar o “falatório” em ações. Destacou o compromisso dos cientistas, mostrando o livro produzido pelo Conselho InterAcademias (IAC, na sigla em inglês) em 2004 e assinado por 92 Academias de Ciência, intitulado “Inventando um futuro melhor”. “Ciência pode ser feita para uma geração ou para o mundo inteiro. Kennedy já dizia nós podemos acabar com a fome – só precisamos da vontade política.”

 

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