Estamos acostumados a viver e imaginar uma Universidade a partir da sala de aula e de seu professor. As “aulas práticas” ou até mesmo o acesso à bibliografia são apenas uma complementação da formação livresca. As nossas universidades foram pensadas e desenhadas neste ambiente e vêm cumprindo – nem sempre a contento – seu papel na formação de bacharéis. Porém, em geral elas se mostram incapazes de atender à formação de cientistas e engenheiros, assim como de gerar conhecimento para a produção de inovação e tecnologia, tão essenciais ao avanço de nosso país. Nesse ambiente “livresco-acadêmico”, as atividades de pesquisa científica, tecnológica e de inovação são na maioria das instituições tão-somente toleradas, e não essenciais.

É na pós-graduação que essas atividades tornam-se exclusivas. Contudo, em boa parte das instituições, a própria pós-graduação é tida como atividade não essencial, desconectada das finalidades “maiores” de ensino livresco. E o que é mais grave: o sistema legal atual ao qual estão submetidas as instituições de ensino superior público que, apesar de tudo, desenvolvem ciência e tecnologia, é incompatível com as necessidades de se fazer ciência.

Em outras palavras: não se pode fazer ciência, tecnologia e inovação competitivas globalmente tendo o mesmo marco legal de uma repartição pública. Ciência se faz num ambiente de liberdade e confiança. São necessárias rapidez, agilidade e facilidade para acessar a equipamentos, materiais e dados. Ciência não se faz com barreiras como ano fiscal; além disso não se pode prever com segurança os prazos, orçamentos e materiais, menos ainda quais resultados serão alcançados. É por isso que investigamos!

Como se pode desenvolver projetos em parceria com outras instituições e gerar patentes, se sequer o sigilo pode ser garantido dentro do sistema de transparência e controles “públicos”?

Assim sendo, temos de avançar, realizando uma profunda mudança jurídica que forneça as ferramentas legais e adequadas para se administrar e desenvolver ciência. Não há nada de excepcional em fazer isso e temos exemplos de sucesso no mundo inteiro. Basta vontade política. Podemos empregar como base de discussão o mesmo marco legal ao qual estão submetidos as instituições da defesa nacional. Para tanto, é necessário que instituições com maior tradição em pesquisa e infraestrutura assumam a missão de migrar do ensino livresco ao ensino pela pesquisa.

Numa universidade da pesquisa, a formação se dá por, pela e através da pesquisa. As atividades de graduação, pós-graduação e pesquisa são indissociáveis. Nestas instituições, as atividades em sala de aula são complementares às centrais, desenvolvidas em torno da pesquisa (científica, tecnológica e de inovação). Portanto, numa autêntica universidade da pesquisa, a célula unitária é o laboratório/atelier/clínica, e não mais as divisões clássicas disciplinares em departamentos. Assim, a interdisciplinaridade torna-se natural e, em muitas situações, essencial ao avanço institucional. Ao mesmo tempo, os discentes, pelo menos em parte das carreiras oferecidas por essas instituições, dispõem de tempo integral a exemplo do que ocorre hoje nas faculdades de Medicina.

Em resumo, recomenda-se a passagem de um ensino impessoal em salas de prédios “comerciais” para uma formação pessoal em laboratórios/ateliers/clínicas. O papel dos pós-graduandos (mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos) converte-se também em fator essencial na formação dos graduandos, uma vez que estes vinculam-se primariamente às atividades do laboratório/atelier/clínica. O espaço físico manifestado no desenho arquitetônico de seus prédios deve, portanto, centrar-se nesse sistema, onde prédios tipo shopping centers (“salas de aula”) têm papel muito reduzido ou deixam mesmo de existir.

Em algumas unidades, como por exemplo as engenharias, as ciências exatas e da terra, ciências agrárias, biociências e ciências da saúde, o departamento é atualmente apenas uma entidade burocrática, pois essas unidades já se movimentam em torno dos laboratórios/ateliers/clínicas (células unitárias), em geral intimamente ligada à pós-graduação e, em menor grau, à graduação. Nesses casos o sistema está maduro e com poucas mudanças essas células unitárias podem assumir por completo também a formação dos graduados. “Grosso modo” os graduados passam a ser todos estudantes de iniciação científica (alunos de tempo integral, dispondo de bolsa ou de demanda social ). Neste tipo de organização, o estudante não é apenas mais um na sala de aula, mas passa a pertencer a um grupo. Assim, estes estudantes de graduação passam a estar sob a responsabilidade da célula unitária constituída de discentes de pós-graduação (mestrado, doutorado e pós-doutorado), técnicos administrativos e docentes. O estudante passa a maior parte do tempo no laboratório e acompanha classes “magnas”, ministradas pelos professores, e classes “estruturantes”, ministradas no âmbito do estágio docente obrigatório para discentes de mestrado (um semestre), doutorado (3 semestres) e pós-doutorado (2 semestres). Essas classes passam a durar entre 45 min (mínimo) a 1h 30min (máximo) no dia. Os experimentos das atuais disciplinas ditas práticas deixam de ser obrigatórios, passando a ser oferecidos em blocos regulares. O discente pode, após reserva, realizar os experimentos (treinar ou ser treinado) e prestar o exame final no final do semestre.

Em unidades universitárias que trabalham com carreiras terminais (contábeis, direito, administração e economia, por exemplo), este tipo de organização, num primeiro momento é menos evidente e necessário. Mas a necessidade, hoje imperativa, dessas carreiras intimamente se relacionarem com o meio não-acadêmico (o chamado “mundo real”, “mercado”, etc.) levará inevitavelmente às suas reestruturações acadêmicas em sistemas não-disciplinares, isto é, interdisciplinares.

O Brasil dispõe de instituições que podem em pouco tempo assumir a identidade de universidade da pesquisa. São aquelas que apresentam grande tradição e programas de excelência na pós-graduação, contando com, no mínimo, sete programas conceituados entre 6 e 7 no ranking da CAPES; além disso, 75% de seus docentes de tempo integral são doutores, dentre os quais 30% detêm bolsas em produtividade em pesquisa do CNPq e 30% de seus discentes vinculam-se à pós-graduação (mestrado, doutorado e pós-doutorado) e IGC 5.

As instituições que atendem a estes requisitos estariam aptas a migrar para a autonomia irrestrita, gozando do marco jurídico similar ao da defesa nacional, segundo o qual se executa e depois se justifica, em vez de primeiro justificar e, na sequência, executar. Neste tipo de instituição, o número de estudantes (graduação e pós-graduação) pode facilmente chegar a 20 por docente de dedicação integral. Com a criação de tais universidades da pesquisa, o Brasil disporá de instrumento essencial para a universalização com qualidade do ensino e de base de conhecimento para o país gerar tecnologia, inovação e condição para fornecer melhor situação de vida a todos.

Caso não haja mudança, muito provavelmente perderemos o momento histórico e a oportunidade de passar de espectadores a atores num mundo onde o conhecimento científico e tecnológico é poder.