O físico e historiador da Ciência Ildeu de Castro Moreira escreveu o ensaio a seguir sobre as visitas do físico norte-americano J. Robert Oppenheimer à Academia Brasileira de Ciências (ABC) em 1953 e 1961. Ildeu é voz proeminente no estudo sobre a história da ciência brasileira e recebeu a Medalha Henrique Morize da ABC em 2022 por suas contribuições.

 

Oppenheimer e a Academia Brasileira de Ciências

Ildeu de Castro Moreira

Instituto de Física – UFRJ

ildeucastro@gmail.com

 

O físico norte-americano Julius Robert Oppenheimer esteve por duas vezes no Brasil. Na primeira vez, em 1953, veio a convite do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), em uma viagem que durou cerca de seis semanas. Fez seminários e palestras, visitou muitas instituições científicas no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte e concedeu diversas entrevistas. Havia grande interesse da mídia e do público, naquele momento, sobre os avanços na área da física atômica e nuclear e sobre a produção de armas atômicas. Na Academia Brasileira de Ciências (ABC), Oppenheimer fez uma comunicação científica sobre “Megalomorfos” (partículas atômicas pesadas), em uma sessão ordinária, e, no CNPq, discutiu a questão da ciência e da educação no Brasil. Ele retornou ao Brasil em 1961, em viagem patrocinada pela OEA, após a tormenta política que o atingiu e quatro anos antes de seu falecimento. Nesta visita, bem mais curta, deu seminários e palestras, concedeu entrevistas e foi condecorado pelo governo brasileiro com a comenda Cruzeiro do Sul. Foi homenageado pela ABC com uma sessão extraordinária e ali fez uma interessante conferência sobre Cultura e Ciência. (1)

I – A primeira ida de Oppenheimer à ABC em 1953

No dia 14 de julho de 1953, Oppenheimer fez uma comunicação científica na ABC, em uma sessão ordinária que ocorreu no prédio da Escola Politécnica (atual IFCS), uma vez que a ABC não tinha sede própria naquele momento. A recepção na ABC contou com a presença de cerca de 40 acadêmicos e convidados, inclusive Katherine Oppenheimer. Ela foi presidida por Artur Moses, presidente da ABC, e teve entre seus assistentes a presença de Guido Beck, Costa Ribeiro, Bernard Gross, Fritz Feigl, Carlos Chagas Filho e Aristides Leão. Nela, o físico norte-americano foi saudado por José Leite Lopes – que já interagira anteriormente com ele, em um período em que esteve em Princeton a convite do próprio Oppenheimer – que destacou suas importantes contribuições para a física e, também, o seu papel como professor universitário na formação da escola norte-americana de físicos. Posteriormente, Leite Lopes escreveu um artigo para homenagear Oppenheimer, em nome da ABC, em dezembro de 1967 (2).

i – Saudação de Leite Lopes a Oppenheimer na ABC

“O nosso presidente Artur Moses pediu-me que dissesse algumas palavras esta noite, dando-lhe as nossas boas-vindas a esta reunião. É evidente que o seu nome não necessita de apresentação aos nossos físicos. Conhecemos todos os seus trabalhos, que o distinguiram como um dos físicos teóricos proeminentes de seu país, os quais trouxeram importantes contribuições ao progresso dos nossos conhecimentos no campo correspondente: a teoria quântica das moléculas, problemas na teoria das colisões atômicas, problemas e discussão das dificuldades na teoria do pósitron, o teorema de Oppenheimer-Ehrenfest sobre a estatística dos núcleos atômicos, o processo Oppenheimer-Phillips, a teoria da forte interação das forças nucleares, a teoria da produção múltipla de mésons, eletrodinâmica.

Temos também notícia, através de seus discípulos e de seus trabalhos científicos de vigorosa contribuição que deu, como professor universitário, à formação da escola norte-americana de físicos. Este é um aspecto da sua experiência de particular interesse para nós, pois começamos hoje, neste país, a enfrentar o problema de atrair Jovens para a carreira cientifica e de formá-los bem, a fim de que o desenvolvimento da ciência seja assegurado por um tal crescimento de valores humanos. Nos dias presentes, é sob a sua inspiração que uma grande soma de pesquisas em física teórica é realizada no Instituto de Altos Estudos de Princeton, que teve suas atividades consideravelmente aumentadas desde que o Professor Oppenheimer assumiu sua direção. Por estes motivos, estamos felizes em tê-lo esta noite em nossa companhia. Um tal intercâmbio de ideias com colegas do exterior é indispensável se desejarmos contribuir aos progressos de conhecimento e partilhar dos seus benefícios. É meu privilégio dar-lhe as boas-vindas a esta Academia.”

Figura 1. Assinaturas de Katerine Oppenheimer e Robert Oppenheimer no livro de Atas da ABC

ii – A comunicação de Oppenheimer na ABC

Em seguida, Oppenheimer agradeceu a saudação de Leite Lopes, exprimindo sua satisfação em ser recebido pela Academia Brasileira de Ciências, que conhecia de longa data, à distância, acompanhando os trabalhos publicados nos seus Anais. Abordou, então, o tema de sua comunicação: “Megalomorfos”.

”Propunha este nome para designar as partículas pesadas, recentemente descobertas, instáveis, dando ao desintegrar-se, outras partículas de massa menor e energia sob a forma de fótons ou neutrinos. As propriedades dessas partículas são ainda pouco conhecidas e ignoramos ainda a razão profunda de sua existência e as interconexões que existem entre elas. O cálculo teórico de sua vida média, segundo dados provisórios, dá resultados em desacordo com a experiência. Existe a indicação de regras de seleção que proíbem certas desintegrações e dificultam outras tornando-as mais lentas.

Em 1932 as partículas conhecidas eram o elétron e o próton, que são constituintes fundamentais da matéria e, por sinal, os únicos estáveis. Naquele ano, foi descoberto o nêutron, que também é constituinte dos núcleos atômicos. Quando está isolado, o nêutron é instável e desintegra-se dando como produtos um próton, um elétron e um neutrino. Neste processo, a vida média do nêutron é de cerca de 10 minutos. É uma transformação lenta, quando está em núcleos atômicos pesados, e é esta desintegração que torna o elemento radioativo com emissão de raios beta. Em núcleos leves a transformação não ocorre; é preciso que haja conservação de energia.

Em 1935, um físico teórico japonês, Yukawa, pouco conhecido na época, propôs que as forças de atração entre os constituintes do núcleo atômico — os prótons e nêutrons – eram devidas a uma nova partícula, de massa entre a do nêutron e a do elétron. Estas novas partículas foram chamadas mésons. Deveriam também ser instáveis. Foi notável a concordância qualitativa entre algumas propriedades das forças nucleares e algumas propriedades de tais mésons. Estes mésons de Yukawa foram descobertos somente em 1948 e hoje são chamados de mésons “pi”. Outra variedade, denominada mésons “mi”, mais leves que os primeiros, já havia sido detectada na radiação cósmica em 1936. Desintegram-se em méson “mi” e neutrino, com vida média de dez elevado a menos oito segundos.

Os mésons “mi”, por sua vez, se decompõem em um elétron e dois neutrinos e a vida média desta transformação é dez elevado a menos seis segundos. Existem também mésons “pi” sem carga elétrica, também preditos teoricamente, e mais tarde descobertos no laboratório. Decompõem-se em dois raios gama, com uma vida média de dez elevado a menos quinze segundos. É notável a propriedade chamada de “independência da carga”: nêutrons e prótons e mésons pi positivos, negativos e neutros apresentam entre si propriedades de atração, de produção e absorção de partículas, que não dependem da carga das partículas consideradas. Estas propriedades de simetria e invariância, gostaríamos de relacionar com propriedades mais profundas, de estrutura espaço-temporal, analogamente às leis de conservação de energia e momentum que resultam da inexistência de pontos privilegiados no espaço e no tempo.

Ultimamente, novas partículas mais pesadas foram descobertas por vários físicos, usando câmaras de Wilson e chapas fotográficas nucleares. São megalomorfos sobre os quais conhecemos hoje pouca coisa e compreendemos menos. A partícula V, assim chamada porque a sua descoberta foi feita ao detectarem-se traços em forma de V originando-se de um único traço em câmara de Wilson. A partícula V neutra é mais pesada que o próton e o nêutron e se decompõe num próton e um méson pi negativo. Tem uma vida média de dez elevado a menos dez segundos. Foram descobertas também partículas V carregadas.

Outros corpúsculos, recentemente batizados com as letras gregas tau, qui e kapa, têm massa maior que a do méson “pi” e menor que a do próton. Desintegram-se dando como produtos mésons “pi” e “mi”. Desejamos compreender estes megalomorfos, mas muito pouco progresso temos feito neste sentido. No Instituto de Altos Estudos de Princeton um jovem físico, Pais, fez recentemente um trabalho, que me parece um bom passo na direção correta. Ele formula novas ideias sobre a estrutura espaço-temporal dessas partículas que me parecem de grande interesse. Pretendo expor estas ideias de Pais no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Mais uma vez senhor Presidente, os meus agradecimentos por esta oportunidade honrosa de falar perante esta Academia”.

Durante a discussão, Leite Lopes solicitou esclarecimentos sobre as partículas V. Oppenheimer respondeu que foram produzidas artificialmente no bevatron de Brookhaven. A outra pergunta de Leite Lopes, respondeu que não foram observados prótons negativos nessas experiências.

Nesta mesma sessão da ABC houve a apresentação de uma comunicação de Carlos Chagas Filho, trabalho feito em cooperação com Lauro Sollero e Maury Miranda, sobre “Utilização da acetilcolina durante a descarga da Narcinea brasiliensis”. Em seguida, Sergio Mascarenhas, então um pesquisador iniciante do grupo de Costa Ribeiro, apresentou a comunicação: “Interpretação do efeito Costa Ribeiro pela teoria da colisão molecular”, que foi comentada por Costa Ribeiro, Peter Weyl e Oppenheimer. Poucos anos antes de seu falecimento, Sergio Mascarenhas, em uma conversa particular, me declarou que havia ficado particularmente satisfeito com a intervenção positiva de Oppenheimer sobre seu trabalho, assim como ficara incomodado com a crítica que Feynman fez a aspectos do trabalho de pesquisa do grupo. Os comentários críticos de Feynman ocorreram em uma outra sessão da ABC, no dia 25 de agosto de 1953, quando Armando Dias Tavares apresentou resultados experimentais relacionados com o efeito Costa Ribeiro e com o trabalho de Sergio Mascarenhas.

II – A segunda visita de Oppenheimer à ABC e a conferência sobre Cultura e Ciência

O retorno de Oppenheimer ao Brasil se deu em 1961, vindo da Argentina, e sob o patrocínio do Programa da Cátedras da OEA, em articulação com o CBPF e a Universidade do Brasil. Foi uma visita bem mais curta, na qual permaneceu no Rio de Janeiro entre 17 e 22 de setembro de 1961. Fez seminários no CBPF, visitou novamente o Instituto de Biofísica, fez palestra no Instituto de Pesquisas da Marinha e foi recepcionado no CNPq. Oppenheimer foi também condecorado, na ocasião, pelo governo brasileiro com a Ordem do Cruzeiro do Sul, no grau de Comendador.

Figura 2. Oppenheimer e San Tiago Dantas no Itamaraty, em 1961

Nesse mesmo dia, 20/09, foi homenageado com uma sessão extraordinária da ABC, muito concorrida, à qual comparecerem cerca de 150 acadêmicos e convidados. Ali fez a interessante conferência “Reflexões sobre cultura e ciência”, cujo conteúdo foi publicado no Jornal do Commercio (outubro de 1961) e, no ano seguinte, na revista Ciência e Cultura da SBPC [vol. 14, n. 2, 1962, p. 87 a 94] (3).

Figura 3. Jornal do Commercio, 16 de setembro e 08 de outubro de 1961

A cobertura da imprensa local a esta segunda visita de Oppenheimer, especialmente do Rio de Janeiro, foi novamente intensa. Em sua entrevista coletiva, no final de sua viagem, fez uma apreciação geral sobre a educação e a ciência no Brasil, insistindo sobre a “prioridade para o talento do homem”, ou seja, a importância da formação de pessoas qualificadas, e defendeu enfaticamente o uso pacífico da energia atômica.

Referências:

  1. As principais fontes de informação para este artigo são as Atas da ABC de 1953 e 1961 (Acervo da ABC) e os periódicos que fizeram a cobertura das visitas de Oppenheimer ao Brasil e que podem ser encontrados na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Não conseguimos localizar fotos de Oppenheimer nas suas idas à ABC.
  2. Leite Lopes, J. Oppenheimer: Contrastes e Conflitos e de uma Nova Era. Ciência e Sociedade (CBPF) 04, 1996.
  3. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=003069&pasta=ano%20196&pesq=oppenheime r&pagfis=3816