A Acadêmica Marcia Castro, membro correspondente da ABC e professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da da Escola de Saúde Pública de Harvard, publicou o seguinte artigo na Folha de S. Paulo em 7 de abril, no qual destaca que é relembrando, entendendo e aprendendo com o passado que se constrói um futuro melhor.

Para o título da coluna de hoje, pego emprestadas as palavras de Fernando Pessoa.

Este ano marca os 60 anos do golpe militar. A decisão do governo de não relembrar o golpe é lamentável. É relembrando, entendendo e aprendendo com o passado que se constrói um futuro melhor.

Foi durante a ditadura militar que a Amazônia começou a sofrer uma destruição ambiental sem precedentes. Ancoradas em ideais de integração regional e segurança nacional, as então chamadas políticas de desenvolvimento promoviam a exploração de recursos naturais ignorando por completo as demandas e cultura locais.

Isso fica claro no lema “homens sem terra para terra sem homens” promovido pelo presidente Médici que, em 1970, criou o Programa de Integração Nacional (PIN). O presidente via a Amazônia como a solução para problemas fundiários no Nordeste.

Abertura de rodovias, construção de barragens, subsídios fiscais para a agroindústria e a promoção de assentamentos agrícolas, que atraíram milhões de migrantes, transformaram a Amazônia.

Essas mudanças tiveram consequências ambientais devastadoras e impactaram a saúde pública. Entre 1964 e 1990, o número de casos de malária aumentou 412%. Em meados dos anos 80, Rondônia era considerada a capital da malária no Brasil.

A retomada da exploração desenfreada da Amazônia durante o governo Bolsonaro deixou um rastro de destruição cujas consequências ainda são sentidas. Considerando o garimpo em áreas indígenas (o que é ilegal), 62% da área garimpada desde 1985 foi aberta entre 2018 e 2022!

O resultado é semelhante ao visto durante a ditadura: malária, desnutrição, contaminação por mercúrio, violência etc. Problemas ainda não resolvidos dada a dificuldade em unir diferentes setores no efetivo restabelecimento dos serviços destruídos durante o governo anterior. Um trabalho recentemente divulgado pela Fiocruz revela as condições sanitárias precárias que yanomamis vivendo na região do alto rio Mucajaí (em Roraima) enfrentavam em outubro de 2022.

Cerca de 15% apresentavam anemia, com maior prevalência entre menores de 5 anos (27%). Com relação a medidas antropométricas, 47% apresentavam baixo peso. Entre os menores de 12 anos, 92% apresentavam baixo peso.

(…)

Somente 15,5% dos menores de 12 anos que possuíam caderneta de saúde estavam com a vacinação em dia. Além disso, anemia e deficiências na capacidade cognitiva estavam associadas a contaminação por mercúrio.

É provável que outros povos indígenas estejam enfrentando desafios semelhantes. Especialmente os Kayapó e Mundukuru que, junto com o povo Yanomami, são os mais atingidos pelo garimpo predatório. Digo “provável” pois não há dados nem monitoramento detalhados.

Esse problema foi ressaltado no plano de aperfeiçoamento da saúde indígena preparado pela Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde. A solução precisa ser rápida!

Entretanto, apesar da contaminação por mercúrio ser algo amplamente discutido, a necessidade de monitorar a presença de mercúrio na água e em alimentos consumidos pelos indígenas não foi incluída no plano de aperfeiçoamento, conforme eu já havia destacado em fevereiro.

O legado da ditadura militar para a Amazônia e os indígenas persiste. Não o relembrar é uma via para repeti-lo no futuro.


Leia a coluna íntegra na Folha de S. Paulo