“O universo científico insiste em formar pesquisadores indígenas deslocando-os de seus modos específicos e de seus modelos de conhecimento. Se a ciência quer de fato diálogo entre os diferentes modelos de conhecimento (modelos de conhecimentos sobre as plantas, sobre a água, sobre o cosmo… precisa entender nossos pensamentos, nosso jeito de ser, de pensar e de viver… nós construímos nosso conhecimento pela oralidade. A ciência precisa fazer uma experiência de mergulhar nos nossos modelos de conhecimento. Nós, com todo esforço, nós fazemos essa experiência de mergulhar no conhecimento da ciência…”

João Paulo Barreto

A fala do doutor João Paulo Barreto, indígena do povo Tukano, resume a perspectiva dos indígenas em relação à aproximação de conhecimentos com a academia, expressa na Conferência Livre Preparatória para 5ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia (5ª CNCTI, que será em junho) realizada no dia 21 de março, no auditório da ciência do INPA, intitulada “Sistemas de Conhecimentos: Conhecimento Tradicional indígena e Conhecimento Científico: Diálogos Possíveis”.

A comissão organizadora do evento foi composta pelo diretor do Inpa, Henrique Pereira, os pesquisadores Adalberto Val, que representa a Academia Brasileira de Ciências – ABC Norte, Ana Carla Bruno (que foi membra afiliada da ABC em 2011-2015) e Noemia Ishikawa (que foi membra afiliada da ABC em 2009-2014), e dois indígenas: o doutorando em Botânica do Inpa, Gildo Feitoza (Makuxi), e o pesquisador membro do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena da Universidade Federal do Amazonas (Neai/Ufam), Silvio Sanches Barreto (Bará), atualmente bolsista do Instituto Serrapilheira. 

Adalberto Val e Henrique Pereira, diretor do INPA

Compareceram fisicamente em torno de 100 pessoas ao evento, representando diversas instituições de ensino, como a Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Instituto Federal do Amazonas (IFAM), Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, entre outras.

Também se fizeram representar organizações, associações e grupos indígenas de diversos povos, como por exemplo, Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (MEIAM), Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (APIAM), Centro de Medicina Indígena Bahserikowi; Colegiado dos Alunos de Pós-graduação Indígena do Programa de Pós Graduação em Antropologia da UFAM, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas (Makira Eta). Estavam presentes os povos Bará, Makuxi, Tukano, Munduruku, Baré, Dessano, Sateré Mawé, Borari e Waikahna.

Nos últimos 20 anos, vemos uma presença de pesquisadores e intelectuais indígenas nas instituições de ensino, nas universidades, mas ainda percebemos que a presença de pesquisadores indígenas, como produtores de conhecimentos, nas instituições de pesquisas do MCTI e seus laboratórios é quase inexistente.

De acordo com a relatora Ana Carla Bruno, a história da ciência apresenta uma série de hierarquias de sistemas de conhecimentos e campos de saberes que subordina e relega outras formas de conhecimento como secundárias ou menos importante. “O próprio tratamento que damos aos conhecimentos indígenas quando o denominamos, classificamos e reconhecemos como ‘saberes’ é uma forma de hierarquização. A relação de pesquisa entre indígenas e não indígenas, por muito tempo, foi permeada pela condição onde os indígenas eram temas, objetos, auxiliares e ‘informantes’ das pesquisas.”

“Nada para nós sem nós!”

Este lema, que vemos sendo acionado pelo Grupo de Trabalho (GT) Indígena da América Latina e Caribe da Década das Línguas Indígenas (2022-2032),  foi dito de diferentes formas e por diferentes vozes, recorrentemente, pelos estudantes e pesquisadores indígenas e suas organizações.

No evento e discussões realizados, ficou claro que, assim como em diferentes pautas, como educação, cultura e saúde, no universo da ciência e tecnologia os povos indígenas também querem espaços e instituições de CT&I que respeitem, dialoguem e reconheçam suas epistemologias, técnicas, métodos e formas de conceber e observar o mundo.

“Nas últimas duas décadas estamos observando uma importante e significativa presença de indígenas nas universidades, tornando-se produtores de conhecimentos neste universo. Mas ainda uma quase inexistente presença indígena nos institutos de pesquisas produzindo, realizando pesquisas e coordenando projetos”, apontou Ana Carla Bruno.

A Conferência foi organizada pelo INPA com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC). 

O Inpa e as comunidades indígenas

Nos seus 70 anos de existência, o INPA produziu e desenvolveu projetos de pesquisas e trabalhos em comunidades indígenas, mas apenas nos últimos dois anos começou-se a ver a presença de estudantes indígenas nos cursos de pós-graduação.

Esta conferência livre situada no eixo 3 “Amazônia, Ciência e os Saberes Tradicional” realizada no INPA buscou refletir e debater sobre qual o lugar dos conhecimentos, dos modelos de conhecimento indígena na constituição do conhecimento científico ocidental e de que forma podemos manter diálogos mais simétricos no universo da ciência e tecnologia do nosso país.

“Penso que este diálogo pode estimular, suscitar e fazer-nos olhar este processo de construção de conhecimento e formas de categorizar e classificar o mundo a partir, com e através de outras perspectivas. Mas também será necessário, como diversas vezes ressaltados nas intervenções dos indígenas participantes do encontro, que estes espaços sejam acolhedores e que respeitem a diversidade e a diferença dos povos indígenas do Brasil”, destacou a relatora.

Propostas e soluções

Para que o objetivo de todos os participantes do encontro de fato se realize, alguns tópicos fundamentais foram levantados. São eles:

Ambientes institucionais que estejam dispostos a respeitar as diferenças é o primeiro passo para que seja efetivado o diálogo. Neste sentido, é necessário compreender que cada pesquisador indígena pode ter trajetórias acadêmicas muito distintas, histórias de vidas e situações sociolinguísticas muito diferenciadas (povo, língua, vivência na aldeia/comunidade ou na cidade);

  • Que os editais da pós-graduação sejam elaborados em conjunto com pesquisadores indígenas;
  • Que sejam elaborados editais específicos para pesquisadores indígenas, onde pudessem concorrer entre si.
  • Laboratórios indígenas de pesquisa e inovação dentro das instituições de pesquisas do MCTI, para que os indígenas desenvolvam pesquisas a partir de suas epistemologias e técnicas de observação.
  • Bolsas de pesquisas para anciãos e jovens cientistas indígenas, dentro de suas comunidades, para que mantenham suas formas próprias de transmissão de conhecimentos.
  • Que os indígenas possam ter uma inserção mais efetiva nos debates de ciência e tecnologia do país, a partir do estímulo de projetos e bolsas de iniciação científica indígena, disciplinas de pós-graduação ministradas por pesquisadores indígenas em parceria com não indígenas, feiras nacionais de ciência indígena e outras iniciativas afins.
  • Que as instituições do MCTI possam conceder título de “Notório Saber” para indígenas que não possuem formação acadêmica, mas desenvolvem pesquisas em parcerias com os cientistas indígenas e não indígenas.

Ao final do relatório, Ana Carla Bruno destacou que a colaboração e parceria de doutores e doutorandos indígenas se deu desde o início da preparação do evento. “Pensamos juntos as palestras, os palestrantes e os temas que gostaríamos de debater e a inserção de parceiros indígenas na comissão do evento foi essencial para o sucesso dela”, comentou Ana Carla Bruno.

Ela destacou ter ficado intrigada pelo evento ter sido, até então, a única conferência livre do eixo 3 “Amazônia, Ciência e os Saberes Tradicionais” que se propôs a debater, refletir e pensar qual o lugar do conhecimento indígena no universo da ciência e inovação do nosso país – e como os indígenas querem participar deste debate. “ E, enfim, ressaltamos a necessidade de um diálogo maior entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e o Ministério dos Povos Indígenas”, concluiu a antropóloga.


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