No Simpósio e Diplomação dos Membros Afiliados da ABC de SP 2023-2027, realizado na Universidade de São Paulo (USP) no dia 29 de agosto, a palestra magna foi apresentada pelo presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Ele foi ministro da Educação em 2015, é doutor em filosofia e professor titular da Universidade de São Paulo (USP), atuando na disciplina de Ética e Filosofia Política.
O filósofo deu início ao tema “Ciência, ética e democracia” esclarecendo os conceitos, que, nesse caso, envolvem três palavras muito fortes.
O conceito de “ciência”
Para Janine, a definição “menos pior” que existe é de Karl Popper, que rompeu com a ideia de que as leis científicas eram derivadas por indução, ou seja, quando se constata o mesmo fenômeno após a experimentação e, não havendo exceções e nenhuma refutação, se proclama a lei científica.
“É uma tese bem interessante [a de Popper], pois deixa claro que as leis científicas estão subjugadas aos avanços da ciência. Quando o conhecimento avança, algumas ‘verdades’ são superadas por novas descobertas. Toda lei científica é de algum modo provisória, está em sursis, até ser refutada ou, o que é mais frequente, aprimorada, matizada”. Porém, Janine destacou que não é uma definição ideal, pois não abrange, pelo menos, a matemática e a filosofia. “A matemática evoluiu, é uma linguagem que serve de base para todas as ciências modernas. O que fizeram os cientistas do século 17? Eles geometrizaram o saber científico. A geometria permite uma qualidade de argumentação exemplar, ela permite o avanço da descoberta.” O filósofo apontou que Descartes tem um papel importantíssimo nisso e que a ideia da geometrização da ciência, também muito forte na física, aparece ainda na filosofia política, com Thomas Hobbes, e na ética, com Spinoza.
Janine avalia que o melhor a fazer, portanto, é considerar que a ciência é um conhecimento rigoroso e que a maior parte das ciências se adequa à formulação de Popper. “Deixemos a filosofia e a matemática penduradas de lado, porque também são conhecimentos rigorosos. A ciência busca de alguma forma a verdade, embora a própria ideia de verdade seja cada vez mais fraca nas últimas décadas. Muita coisa está sendo contestada nas ciências humanas, por exemplo, em função de preconceitos que mobilizaram tais e quais teorias no passado e que passaram a ser contestadas nos nossos dias.”
O conceito de “ética”
O filósofo abordou então a ética, afirmando que ela também não é um conceito óbvio. “Muitas vezes a ética é entendida como o conhecimento do certo e do errado. Eu não aprecio esta distinção, prefiro colocar uma coisa mais matizada, porque pela mesma razão pela qual é muito difícil afirmar que existe uma verdade absoluta, afirmar um certo e um errado absolutos também é muito difícil de se fazer – embora a gente tenha muita vontade de fazê-lo”, apontou o palestrante.
Enfim, na ética se discutirá o que é justo e o que é injusto, o que é mais certo ou mais errado, não o que é absolutamente certo ou errado, segundo Janine. “Nas últimas décadas, tem havido um certo deslizamento da ideia da verdade ou do bem – e isso é muito importante. Como professores, temos um trabalho intenso de formar o sujeito que vai decidir eticamente. A educação ética significa, essencialmente, fazermos as pessoas lidarem com dilemas”, explicou. Os dilemas aparecem, de acordo com o filósofo, quando a pessoa tem diante de si uma escolha difícil. “Escolha fácil não tem problema, pois é quando o bem e a vantagem estão do mesmo lado. Escolha difícil acontece quando o bem está do lado oposto à vantagem. Ela também pode acontecer quando não está muito claro qual é o bem, qual é o mal, quando dos dois lados nós temos matizes do bem e do mal, e a gente tem que escolher entre eles. E temos dilemas, por exemplo, a ideia de que fazer o bem a curto prazo pode gerar o mal a longo prazo”, disse, destacando claramente a complexidade do processo.
Janine exemplificou com uma questão proposta por Benjamin Constant a Kant, o qual afirmava que devemos sempre falar a verdade. “Mas se um assassino me pergunta se eu sei onde está a pessoa que ele quer matar, o que eu devo dizer?”, inquiriu Constant, levando Kant a uma resposta que, entre outros, já foi zombada por Umberto Eco”.
Já outra linha de pensamento, expressa por exemplo pelo professor Yves de la Taille, da USP, diz que a verdade é relacional: há pessoas a quem temos a obrigação de dizer a verdade; já a um assassino, a um criminoso, não temos essa obrigação. “Isso é interessante, torna a coisa mais complexa”, observou. Então, o que podemos dizer é que, na base da ética, estamos procurando soluções justas, mas que essas soluções não estão prontas. “Elas não se resolvem pelos Dez Mandamentos, mesmo atualizados, e não fazem parte do universo da lei – porque a lei não pretende ser ética, embora haja bastante convergência entre lei e ética.”
O que a lei procura é regular a vida em conjunto, afirmou Janine, mas ela não procura fazer a sociedade ser justa. “Nada garante nem quer dizer que a pessoa mais honesta, mais justa, mais adequada, vai ter prioridade. Nós obedecemos à lei, mas isso não tem nada a ver com o nosso grau ético. Pode até ter, a pessoa pode obedecer à lei por achar a lei justa. Mas pode obedecer apenas por medo da punição, da multa, da cadeia, dos pontos na carteira. De qualquer forma, o que a lei objetiva é uma vida social equilibrada – independentemente da motivação de quem obedeça a ela”, afirmou o presidente da SBPC. É verdade que a ética induz mudanças nas leis, como as que proíbem o assédio sexual e moral. “Vejam, o que diz respeito a sexo deixou de ser capitulado como ‘atentado ao pudor’ e passou a ser uma lei sobre a liberdade e dignidade sexual. Isso é um avanço.”
O conceito de “democracia”
E chegamos à democracia. Começamos em Atenas, no ano V antes de Cristo. O conceito: demos é povo, kratos é poder. É o poder do povo, embora não votassem mulheres, menores de idade, escravos nem estrangeiros. “É a democracia direta. A democracia ateniense é até hoje celebrada, quem estuda o assunto diz que foi uma espécie de ‘idade de ouro’”, apontou Janine.
De fato, a democracia ateniense tem um lado positivo: a participação de todos na praça, o direito de qualquer um pedir a palavra, a frequência enorme nas assembleias. O cidadão grego era convocado por volta de 40 vezes por ano para ir à praça, uma vez a cada nove dias, em média. “E hoje os modernos reclamam que votar é obrigatório – uma vez a cada dois ou mais anos…”, lamentou o palestrante.
Após analisar questões semelhantes e citar outros exemplos, Janine chegou à Revolução Americana e à Revolução Francesa, “quando não temos mais a democracia direta, mas temos a democracia representativa, dado que os países cresceram e seus habitantes não cabem mais na praça”, explicou. Um grupo de pessoas elege um representante – essa é a ideia.
Além disso, a vida privada se tornou extremamente importante para nós. “Para o ateniense, a vida pública era o seu ideal, era a coroação da sua vida. Nós damos muito mais valor ao privado, onde ganhamos dinheiro, onde fazemos nossa vida econômica e onde também desfrutamos das delícias da intimidade, como o amor”, informou. Janine aponta que essa mudança vem do século XVIII. Curiosamente, o mesmo Rousseau que celebra a democracia direta é praticamente o criador desse conceito de intimidade, do amor romântico, amor íntimo, amor do pai pelos filhos. “É um amor conquistado, como disse Elisabeth Badinter”, considerou Janine.
Com isso, passamos a ter uma sociedade na qual cuidar da coisa pública é cansativo. “Claro, a gente costuma dizer que os políticos querem o poder, que o adoram, mas, na verdade, eles conseguem todo o espaço nas decisões que nos afetam, em boa parte porque nós não queremos. Não queremos todo esse transtorno, todo esse estorvo, porque dá trabalho”. O palestrante envolveu os membros da plateia, afirmando que quem ali exercesse ou tivesse exercido funções públicas sabe que elas podem ter suas recompensas, mas que também são muitíssimo custosas.
Enfim, a democracia moderna não é direta, é representativa. E a representação, disse Janine, implica em traição. “Há um ditado que diz que um tradutor é um traidor. Ora, quando elegemos um prefeito, ou um presidente, sabemos que ele vai fazer coisas que não queremos, ou seja, vai trair a quem votou nele, porque vão surgir casos imprevistos que vão requerer uma tomada de posição que nem sempre é desejável”, explicou.
Porém, de acordo com o palestrante, temos um conceito muito importante na modernidade que são os direitos humanos, que não havia para os gregos. Direitos individuais, direito à propriedade, direito à cidadania, direito de votar e, mais recentemente, pensando de forma mais coletiva, chegamos ao direito ao meio ambiente. “Um direito que teria por titular a própria natureza, como a definimos… Uma sequoia tem o direito de estar viva, ou será a espécie de sequoias que tem esse direito? É complicado, porque vamos abater árvores, vamos matar animais, vamos colher plantas, mas há um direito crescente que a gente entende que não pode haver, que é o que dá apenas aos humanos o privilégio de desfrutar da natureza, a nós dada, digamos, por Deus”, filosofou o palestrante.
Por fim, chegamos a uma característica muito interessante da democracia moderna, de acordo com o filósofo, que é a tendência dela a se expandir. Alguns teóricos a compreendem como um método de governo, uma forma de resolução de conflitos, mas Janine afirma que ela é muito mais do que isso. “A democracia é um valor. Ela tem que se expandir para áreas antes intocadas por ela – e eu frisaria duas: primeiro, as relações de trabalho; segundo, as relações íntimas, a vida amorosa, a igualdade entre parceiros de uma relação amorosa, o respeito aos filhos, o respeito nas relações de amor e nas de amizade.”
A articulação entre ciência, ética e democracia
Feitas essas três definições, Janine conduziu sua fala para o entendimento de como esses três conceitos se articulam. “Eu diria que é uma articulação positiva, mas que não é tranquila. Quando pensamos em termos éticos, vemos que a ética está muito associada ao que chamamos de verdade, que deve ser sempre provisória”, acentuou.
A verdade científica, de acordo como filósofo, está muito associada à ideia de que a democracia é um regime ético. Na gestão da política, porém, temos as ditaduras, as tiranias, que estão fora da esfera ética. “Me parece que também estão fora esses rapazes que estão indo jogar futebol na Arábia Saudita, um deles parece que com uma remuneração de um milhão e meio de reais por dia, e não sei mais quantos milhões a cada post que fizer em propaganda saudita. Num extraordinário contraste com essas meninas espanholas, que decidiram enfrentar o abusador sexual que preside a Federação Espanhola de Futebol”, exemplificou. “Uma coisa muito curiosa nessas situações é que parece que as mulheres são mais éticas – e digo isso com muita vergonha! Até na educação dos filhos, quando o pai diz: ‘sua mãe é uma santa, mas se você fizer tudo como ela diz vai se ferrar na vida’, ele estimula a ideia de que para viver bem, precisa enganar, ser antiético, enfim, todas as coisas que a educação machista traz.”
A incompletude necessária
Enfim, pode-se perceber que tanto a ética, quanto a ciência, como a democracia convergem na ideia de que cada uma é incompleta, cada uma necessita de desafios. “A incompletude da ciência é sua essência. Não podemos pensar em um dia chegar a dizer que alguma coisa ‘é definitiva’ em tal assunto, porque teríamos sempre novos desafios”, disse Janine.
Referindo-se a Freud, por exemplo, o filósofo avalia que hoje é muito controverso se a psicanálise é ou não uma ciência. “Nas categorias de Popper, é claro que ela não se encaixa – embora o criador da psicanálise flertasse com a ideia de chegar a determinantes biológicos da psique.”
Enfim, ciências podem desaparecer, outras que nem imaginamos podem surgir. “Ciência é work in progress, trabalho sempre incompleto”, reiterou.
No caso da ética, o filósofo destacou que, do mesmo modo, sempre teremos novos desafios. “Vejam as discussões que estamos tendo sobre gênero, sobre preconceito, questões que para nós eram absolutamente neutras e deixaram de ser. No caso da democracia, ela é um trabalho em construção”, refletiu o palestrante.
Assim, considerando que as três áreas são incompletas e sempre serão, podemos ir além e perceber que uma nutre a outra, de acordo com Janine. No momento, ele avalia que a democracia tem muito a ganhar com os avanços da ciência. “Nós vimos isso nesses quatro anos de campanha intensa contra a democracia, contra a ciência e contra a ética. Isso tudo que aconteceu indica para nós, que pensávamos que já tínhamos conquistado um determinado patamar democrático, que tudo o que temos está em risco. Democracia se constrói todo dia.”
“Helena Nader diz, com muita emoção, que nós fomos responsáveis por deixar toda uma juventude desconhecer o que foi a ditadura e, assim, considerar razoável sua volta, a volta da intervenção militar, etc. Agora, então, temos que educá-los para isso”, alertou Janine. Ele completou, divulgando que a SBPC, com várias outras entidades, inclusive a ABC, está promovendo uma chamada para deslanchar esse processo, começando no dia 6 de setembro, às 16h, com uma palestra do grande historiador Fernando Novaes sobre independência, na sua sede, em São Paulo. “A ideia é fazer de 31 de outubro o Dia Nacional pela Democracia”, ressaltou.
Por fim, Renato Janine Ribeiro fez um lembrete aos novos membros. “Para os que estão sendo acolhidos hoje no seio da Academia Brasileira de Ciências, não esqueçam que é um compromisso ético e democrático o da ciência. Os recursos da ciência vão para o cientista porque ele é o fiel depositário de algo que não é só dele: é um benefício social, um benefício de todos””, concluiu o presidente da SBPC.
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