O Acadêmico e editor-chefe dos Anais da Academia Brasileira de Ciências (AABC), Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional, conta sobre o estudo do qual participou que acaba de ganhar a capa da Revista Nature. Confira na coluna para o Ciência Hoje:

Capa da revista Nature apresentando a descoberta do Venetoraptor gassenae, liderada por pesquisadores brasileiros (Desenho de Caio Fantini)

Ano após ano, as descobertas no campo da paleontologia têm surpreendido e, muitas vezes, ajudado a reescrever a história evolutiva de alguns grupos de organismos que viveram há milhões de anos. Um dos países que mais têm contribuído com descobertas sensacionais é a China. Porém, mesmo que em menor escala, fósseis encontrados no Brasil têm despertado cada vez mais a atenção da comunidade científica mundial. É o caso do Venetoraptor gassenae, um réptil extinto com um metro de comprimento encontrado em rochas formadas há cerca de 230 milhões de anos na região onde hoje fica o Rio Grande do Sul.

Classificado no grupo Lagerpetidae, Venetoraptor exibe uma anatomia bem distinta daquela comum a todos os répteis triássicos – alguns considerados precursores dos dinossauros e dos pterossauros. Liderado por Rodrigo Müller, do Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica da Quarta Colônia (CAPPA), da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, o estudo que resultou na descrição da espécie contou com a participação de paleontólogos brasileiros (inclusive do autor desta coluna), argentinos e norte-americanos e foi escolhido para a capa da prestigiosa revista Nature – algo que não ocorre todos os dias…

Uma combinação inesperada

O Venetoraptor gassenae foi encontrado no sítio fossilífero Buriol, situado no distrito de Vale Vêneto, pertencente ao município de São João do Polêsine, no Rio Grande do Sul. O nome do animal vem da junção de Vêneto com raptor (do latim), em alusão ao possível hábito predador desse réptil. Já o termo que identifica a espécie é uma homenagem à Sra. Valserina Gassen, grande incentivadora do CAPPA/UFSM.

Apesar de esse réptil ser conhecido apenas por um único esqueleto incompleto, com partes do crânio, ponta da mandíbula, algumas vértebras de diferentes regiões da coluna e alguns ossos de braço, mão, perna e pé, suas características anatômicas causaram surpresa. A começar pelo crânio, que apresenta na ponta um bico alto e curvado, feição que somente apareceu nos dinossauros 80 milhões de anos mais tarde. Além disso, tanto a região do bico quanto a ponta da mandíbula têm uma série de orifícios (forames) que sugerem que eram revestidos por uma camada córnea (ranfoteca). Essa estrutura é semelhante à encontrada em aves, como os falconiformes, que utilizam o bico para esfacelar carne, ou os psitacídeos, que quebram frutificações envoltas em uma casca dura. Venetoraptor deve ter tido dentes de pequeno tamanho, como já foi reportado em outros lagerpetídeos – embora essas estruturas não tenham sido encontradas.

Detalhe da reconstrução em vida de Venetoraptor gassenae, réptil de um metro de comprimento que viveu há cerca de 230 milhões de anos na região do Rio Grande do Sul e foi precursor de dinossauros e pterossauros (Crédito: Paleoarte: Maurilio Oliveira; Foto: Diogo Vasconcellos)

A característica anatômica que mais chamou a atenção foi o tamanho das mãos do novo réptil – proporcionalmente bem maiores do que as de outras espécies e com garras longas e recurvadas, lembrando foices. Confesso que, quando vi a reconstrução do esqueleto, pensei em apelidar a nova espécie de Freddy Krueger do Triássico!

Outra feição de destaque foi encontrada na região metacarpal (ossos localizados entre as falanges dos dedos e o punho), onde o metacarpal IV é mais longo do que os demais, o que difere Venetoraptor dos outros lagerpetídeos. O mesmo ocorre nos pterossauros, sendo que, nesses répteis alados, o metacarpal IV é muito mais espesso e robusto.

Novas hipóteses

Com base na descoberta desse exemplar, os pesquisadores puderam fazer novas suposições sobre a história evolutiva dos répteis do Triássico. Para começar, Venetoraptor foi encontrado no mesmo depósito que o lagerpetídeo Ixalerpeton – que não possui bico –, sugerindo que ambos coexistiram, juntamente com alguns dos primeiros dinossauros. Ou seja, havia na região de Vale Vêneto duas espécies de lagerpetídeos que, a julgar pelas morfologias bem distintas, tinham diferentes hábitos.

O fato de Venetoraptor ter as mãos muito desenvolvidas demonstra que esse réptil não deveria assumir uma postura obrigatoriamente quadrúpede. Esse também é o caso de outros répteis precursores dos dinossauros e pterossauros. A maior liberdade de braços e mãos pode ter sido o principal agente para a diversificação e as modificações dos membros anteriores nesses grupos, de modo que se adaptassem para exercer distintas funções. Tais modificações foram variando ao longo do tempo: em alguns animais, o número de dígitos nas mãos diminuiu; em outros, os dígitos se alongaram, até chegar à hipertrofia do quarto dígito, que forma a base principal da asa dos pterossauros. No caso do Venetoraptor, os grandes dedos das mãos e as garras podem ter sido utilizados para manipulação da caça, bem como para subir em árvores.

O novo achado sugere uma variedade maior do que se esperava para os precursores de pterossauros e, possivelmente, também de dinossauros, demonstrando uma diversidade grande em termos ecológicos e morfológicos. Ou seja, antes mesmo de dinossauros e pterossauros serem dominantes no planeta, já havia uma variedade considerável de morfologias entre os répteis que os antecederam, algo que não havia sido detectado até agora.

A publicação da pesquisa com destaque na Nature deixa muito claro que o trabalho realizado pelos profissionais do CAPPA/UFSM tem um grande potencial para muitas novas e revolucionárias descobertas. Como tenho mencionado muitas vezes, se houver incentivo para a pesquisa brasileira, fósseis relevantes como o Venetoraptor se tornam possíveis.

Por último, gostaria de aproveitar para anunciar a criação do primeiro Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia dedicado à pesquisa de vertebrados fósseis – o INCT PALEOVERT. Essa iniciativa pioneira, que reúne 23 pesquisadores e 16 instituições brasileiras, caminha na direção de um maior financiamento para a pesquisa nacional, trazendo a expectativa de novas e importantes contribuições no campo da paleontologia. O trabalho realizado por Rodrigo Müller e colegas – também parte desse INCT –, assim como o de outros pesquisadores, certamente vai brindar a todos nós com novos répteis tão fantásticos como o Venetoraptor.

Leia o original na revista Ciência Hoje.