Confira o artigo do Acadêmico Hernan Chaimovich publicado no Jornal da USP:

Quando penso em ensino superior, não posso deixar de considerar, como cientista, limites da designação. Em um extremo, e quiçá o mais importante, está a manutenção das disparidades sociais do país. Aliás, tenha cautela ao usar o termo “doutor”, pois, em determinados setores, particularmente no contexto do Poder Judiciário, se perguntar para certos funcionários públicos em qual instituição de ensino obteve o doutoramento, você pode ser preso por desacato. A nossa desigualdade social, além de ser uma construção estrutural e fortemente enraizada, é escancarada quando se acredita que a universidade é a única forma de ensino superior. Quem disse que um químico é um ser humano superior a um faxineiro? Por que um doutor é um ser humano superior a um técnico que dirige trator em uma plantação de soja? Essa pretensa superioridade está expressa em uma lei, em um texto sagrado ou é pura e simplesmente o resultado de uma disparidade que é, simultaneamente, embasada na combinação entre construção social e diferença salarial? No Brasil, o tal “doutor” pode ganhar ao mês muitas ordens de magnitude a mais do que um técnico em eletrônica ou um professor primário, e isso pensando exclusivamente em salários, pois os ricos de verdade recebem rendimentos não somente salariais.

Este artigo trata de ensino após o término do ensino secundário. Prefiro chamar esta etapa do aprendizado de “ensino pós-secundário” (EPS), pois a qualificação de “ensino superior” pode implicar, em oposição, a existência de um “ensino inferior” a ser aprendido fora das universidades. Por muito que possamos criticar o nível de ensino em algumas universidades, creio que seria inadequado qualificá-las como instituições de ensino inferior.

A inclusão de percentagens crescentes dos jovens entre os 17 e os 24 anos no EPS no mundo todo, mas em particular nos países desenvolvidos, é parte dos projetos estratégicos de todas as nações. Esse objetivo representa um esforço de inclusão numa sociedade que vêm sendo denominada como sociedade do conhecimento. É inaceitável desejar uma governabilidade democrática, criar empregos dignos, combater a pobreza e construir uma sociedade isenta das iniquidades de hoje, se a juventude ainda tem acesso limitado a EPS. No Brasil, dados da OCDE mostram que a percentagem de adultos maiores de 25 anos que possuem EPS não ultrapassa 20%.

Em todos os países onde a percentagem de jovens matriculados no EPS é superior a trinta por cento, as instituições que ministram esse tipo de ensino integram um sistema diferenciado. Após o ensino secundário, vários tipos de instituições, programas e objetivos distintos podem constituir o sistema de EPS. Existem diversas dessas organizações no Brasil e, para não causar polêmicas desnecessárias, não vou citar nenhuma em particular.

A descrição que se segue não é uma classificação e pretende apenas oferecer exemplos de um sistema diferenciado de EPS. Creio que o exercício é necessário pois, em vários segmentos da sociedade, ideologias pouco dispostas ao diálogo e sequer interessadas em conhecer dados internacionais continuam a afirmar que o único tipo de instituição aceitável no EPS é a universidade de pesquisa, onde ensino, pesquisa e extensão são, por alguma definição, indissociáveis.

Comecemos, portanto, pelas universidades, instituições de ensino e pesquisa que oferecem formação de estudantes em programas de graduação e pós-graduação em uma grande variedade de áreas. As universidades concedem diplomas de bacharelado, profissionais, mestrado e doutorado. Dentro desta denominação, podemos caracterizar grupos de Universidades distintas. A Fundação Carnegie elabora, há anos, uma classificação de universidades e de outros sistemas de EPS nos Estado Unidos. Para diferenciar as universidades, a Carnegie usa critérios como o número de doutores formados e aportes externos para pesquisa. Critérios semelhantes são usados por membros da Comunidade Europeia ou a China.

Esses sistemas de classificação definem as atividades de cada uma das organizações que compõem o sistema de EPS, além de distinguirem as universidades que se dedicam à pesquisa e oferecem diplomas em todas as áreas do saber, tendo uma grande contribuição na formação de doutores. Outras universidades, sem as características mencionadas acima, podem oferecer excelente educação e formar profissionais em muitas áreas. Universidades podem, também, atender às necessidades regionais específicas, sem ter como objetivo graduação, pesquisa e pós-graduação em áreas do conhecimento que não são prioritárias para essa região em particular.

Existem, porém, outras instituições que podem participar na formação de estudantes graduados no ensino secundário.

Em determinados países, o termo “faculdade” é usado para se referir a instituições pós-secundárias que oferecem programas de graduação, em áreas específicas como cultura, ciências, negócios ou tecnologia. Essas faculdades podem, ou não, conceder diplomas ao nível de pós-graduação.

As faculdades comunitárias, também conhecidas nos Estados Unidos como junior colleges, community colleges ou escolas técnicas, oferecem programas de graduação de dois anos, bem como programas de treinamento vocacional e técnico. Elas oferecem boa educação, integram imigrantes e podem servir como ponte para transferir créditos para faculdades ou universidades. Os institutos pedagógicos, por sua vez, se dedicam, de forma prioritária, à formação de professores do ensino fundamental ou secundário. Os institutos vocacionais e técnicos se concentram no fornecimento de treinamento especializado em ofícios, profissões ou campos técnicos específicos. Eles oferecem programas de diploma ou certificado que preparam os alunos para carreiras como técnico automotivo, eletricista, cosmetologista, artes culinárias e muito mais.

As escolas profissionais oferecem programas especializados em áreas como direito, medicina, odontologia, farmácia, engenharia, negócios, jornalismo e outras disciplinas profissionais. As escolas de arte, finalmente, se concentram em fornecer educação e treinamento em diversas áreas artísticas, como artes visuais, artes cênicas, música, dança, cinema, design e muito mais. Essas escolas oferecem programas que levam a diplomas em áreas artísticas específicas. Com o avanço da tecnologia, a educação on-line e os cursos a distância têm se tornado cada vez mais populares. Muitas universidades e faculdades agora oferecem programas e cursos virtuais que permitem aos alunos estudar remotamente e de acordo com seu próprio ritmo.

O sistema de EPS pode ser flexível e ter uma consistência tal que estudantes graduados de certa instituição possam se juntar a alunos de outra com créditos reconhecidos e sem a necessidade de serem submetidos a processos de seleção.

Esta descrição sumária, ao propor o debate sobre a diversificação do ensino pós-secundário, denota também a minha rebeldia em relação a posições que afirmam que o único caminho a trilhar depois da escola é a universidade. Levanto, também, uma discussão sobre uma suposta isonomia, claramente artificial, que pretende que todas as instituições que se intitulam como “universidade” devem ter as mesmas missões, características, necessidades e estilos de governança. Em muitos países, sistemas diferenciados permitiram não apenas aumentar o número de adultos com grau pós-secundário, mas criaram condições para gerar melhores empregos e uma sociedade mais igualitária e, portanto, mais justa.

Acesse a versão original no Jornal da USP.