Leia artigo publicado no Valor Econômico pelo Acadêmico Virgílio Almeida – vice-presidente regional da ABC para MG e CO, professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard, professor emérito da UFMG e ex-secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação –  e o professor da EBAPE/FGV Francisco Gaetani, secretário extraordinário para a Transformação do Estado, do Ministério de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos:

Nas últimas décadas, Watson, Siri, Alexa, Google Assistant e algumas outras inteligências artificiais (IA) surgiram e vinham se desenvolvendo. Isso sem mencionar as especulações pseudo-científicas sobre ameaças existenciais devido ao possível aparecimento de máquinas superinteligentes.  A aceleração da transformação digital decorrente da covid-19 vinha introduzindo uma velocidade crescente nas mudanças nas relações políticas, sociais, produtivas e culturais. Mas a irrupção do ChatGPT mudou tudo. Não estamos sós nessas preocupações. Em artigo recente publicado na mídia americana, o presidente Biden pede uma “legislação forte e bipartidária para proteger nossos dados e privacidade, combater a discriminação algorítmica, proteger nossas crianças e enfrentar a falta de concorrência no setor de tecnologia” e anunciou novos esforços e recursos para promover a pesquisa, o desenvolvimento e a implementação de inteligência artificial (IA) responsável, que protege os direitos e a segurança das pessoas e oferece resultados para o povo americano.

O momento global atual, em especial no Brasil, aponta para uma conjugação de fatores tecnológicos, políticos, sociais e econômicos, que pode ser  caracterizada como  “policrise digital’”,  expressão cunhada pela professora  Alondra Nelson da Universidade de Princeton,  ex-assistente de  política científica e tecnológica do presidente Biden. A  “policrise digital”  refere ao conjunto complexo e interconectado de desafios e crises que surgem no âmbito digital.  São vários os desafios, incluindo  violações de privacidade,  desinformação, campanhas de ódio, manipulação, viés algorítmico, ameaças de ciber-segurança,  impacto da tecnologia nos sistemas sociais, econômicos e políticos e incerteza gerada pelo avanço da IA. A idéia de policrise destaca a natureza multifacetada e interconectada dos problemas decorrentes da crescente dependência de tecnologias digitais e da necessidade de abordagens abrangentes para enfrentá-los.

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A discussão da arquitetura regulatória do Brasil para enfrentar a “policrise digital”  é preocupante. O país possui uma agência encarregada de regular as empresas de telecomunicações – a Anatel – cujo papel hoje encontra-se em discussão à luz das novas realidades decorrentes das múltiplas revoluções tecnológicas em curso. Mais recentemente o país criou uma Agência Nacional de Proteção de Dados – dados são tudo -, parcialmente implementada, que ainda não dispõe de quadro próprio. O Congresso está em vias de votar uma proposta de regulação do modus operandi das big techs no país, empurrado pela potência destrutiva das fake news e pelo potencial amplificador dos conteúdos veiculados nas redes sobre variadas formas de violência. Finalmente, um clamor mundial ergue-se com a finalidade de se buscar regular de forma antecipatória, na tradição do “princípio da precaução”, o desenvolvimento e a adoção de agências reguladoras de Inteligência Artificial. Não é difícil imaginar o que a coexistência de quatro agências reguladoras no Brasil com atividades relacionadas e sobrepostas pode ocasionar.

A internet proporcionou à humanidade a produção de uma inteligência coletiva que vem revolucionando o mundo. A Inteligência Artificial Generativa, como ChatGPT,  produziu uma nova nascente de inovações com limites inconcebíveis à luz do momento atual. O mundo não vai parar para discutir o que isto significa, mas talvez devesse. Cadeias produtivas globais, geopolítica de recursos naturais, concentração global de poder em poucas grandes empresas de tecnologia, guerras regionais e locais, armas autônomas, dinâmicas de funcionamento dos organismos multilaterais, seguranças alimentar, hídrica e energética, competitividade de setores da economia, movimentos de capitais, decisões de investimentos, alianças políticas … tudo está em mutação.

A inovação tecnológica não necessariamente produz progressos reais para as pessoas comuns.  A história nos lembra que o impacto da digitização e da IA para a sociedade responderá  às escolhas o país fizer, inclusive do ponto de vista de conflitos distributivos. Se o Brasil aspira um futuro digital, sustentável e inclusivo precisa começar a construí-lo com a urgência necessária. Não podemos “perder a hora”, sob pena de acordarmos do lado de fora do admirável mundo novo em explosão criativa.


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