Leia artigo de Francisco Gaetani, professor da Ebape/FGV e secretário Extraordinário para a Transformação do Estado, do Ministério de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. e do vice-presidente da ABC para MG e CO, Virgílio Almeida, professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard, professor emérito da UFMG e ex-secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação:

O avanço da inteligência artificial (IA), marcado pela explosão de popularidade do ChatGPT, atrai, seduz, assusta e preocupa. Um artigo recente do New York Times ilustra bem a dualidade do avanço tecnológico, ao mostrar que a tecnologia do ChatGPT mudará a prática da várias profissões, eliminado empregos, tornando  outros  mais produtivos e criando novas funções. Por exemplo, o artigo cita o caso de um advogado que usou um software acoplado ao ChatGPT na análise de um processo de mais de 400 páginas de documentos. O software analisou, revisou e escreveu um resumo que apontou uma lacuna importante no caso da defesa em poucos minutos, algo que levaria horas para ser feito por humanos. Um estudo da Universidade da Pensilvânia em conjunto com OpenAI, organização criadora do ChatGPT, indica que cerca de 80% dos trabalhadores americanos teriam pelo menos 10% de suas tarefas afetadas por essas tecnologias de IA generativas, que incluem o ChatGPT.

A ideia de destruição criativa – uma das grandes contribuições de Schumpeter à teoria econômica – encontra-se na origem de grande parte das discussões sobre desenvolvimentos contemporâneos. A centralidade do conceito de inovação é cada vez mais reconhecida, nos debates sobre política industrial, transformação do Estado, reestruturação produtiva, descarbonização da economia, ciência e tecnologia. A revolução digital potencializou isto. Generalizou sua importância para todos os setores e massificou seu significado para todo o conjunto da sociedade. As mudanças embutidas no combo da transformação digital têm se sucedido em uma velocidade perturbadora. Não obedecem mais ao ciclo de gerações.  Distintos países, em diferentes estágios de desenvolvimento, encontram-se diante de dilemas para os quais não há soluções óbvias, até porque não há clareza sobre as proporções das transformações em curso e sobre seu alcance. Os sentimentos dominantes nas organizações internacionais são de perplexidade, impotência, negação e desorientação. A questão que se coloca é se cabe aos governos fazerem alguma coisa a respeito e, em caso positivo, quais seriam as políticas públicas adequadas.  

A dupla face de inovações disruptivas traz a necessidade de estabelecer com a sociedade políticas que minimizem efeitos negativos e habilitem a dimensão criativa dessas novas tecnologias. Várias mudanças de impacto podem ocorrer com a disseminação de software como o ChatGPT. Dentre elas estão a redução de empregos, o aumento da sofisticação dos mecanismos de desinformação, o risco das pessoas confiarem nesses sistemas para obter conselhos médicos e emocionais imprecisos ou prejudiciais,  a concentração de poder nas poucas empresas globais de tecnologia  e  a possibilidade de causar danos  aos processos democráticos, com a geração de conteúdo convincente para confundir o discurso público. 

No Brasil, nossos sistemas políticos seguem em permanente estado de congestionamento de agenda, com dificuldades de compreender a radicalidade das mudanças globais em curso. O debate sobre regulação das big techs acaba de ser atropelado pelas potencialidades e desdobramentos dos possíveis usos da inteligência artificial. Estados às voltas com necessidades básicas e pactos sociais que datam do século XIX não tem se revelado capazes de acompanhar – quanto mais antecipar – as demandas por novas governanças.

Em um artigo recente publicado na imprensa americana, Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia, antevê que as tecnologias de inteligência artificial podem trazer mudanças sistêmicas na economia, com profundos impactos sociais. Isso, segundo Krugman, provavelmente não ocorrerá muito rapidamente. Há, portanto, uma janela de oportunidade para o Brasil planejar estratégias e políticas públicas para se preparar para um futuro ainda mais tecnológico.  O custo da inação é alto e a defasagem tecnológica pode ser mais um fator para atrasar o desenvolvimento.  Embora o advento de algumas novas tecnologias possa exigir estratégias, regras e leis de governança igualmente inovadoras, o ritmo acelerado do desenvolvimento da inteligência artificial não significa que não haja nada que possa ser feito para direcionar as tecnologias emergentes para um caminho que beneficie a sociedade. Aparentemente as ações prioritárias apontam na direção do básico: focar em prioridades, investir em ciência e tecnologia, criar infraestruturas avançadas, apostar no capital humano jovem e aproximar governos, de escolas, mercados e cientistas. Difícil, mas factível.

A infraestrutura   computacional necessária para pesquisar e desenvolver grandes modelos de inteligência artificial está fora do alcance dos países em desenvolvimento. Além do custo, essas infraestruturas demandam enormes quantidades de energia, que podem ter alto impacto ambiental. Portanto, há nesse contexto do avanço da inteligência artificial uma preocupação estratégica com a possível dependência da economia e sociedade em relação a essas tecnologias.   No plano geopolítico, o Brasil pode não ter autonomia para desenvolver a IA de fronteira de maneira alinhada com seus valores e objetivos de desenvolvimento.  Possibilidades de acordos com países em desenvolvimento, como por exemplo com países do BRICS, podem levar   a formação de massa crítica necessária para criar infraestruturas de ponta. Os chamados países do Norte – em especial a União Europeia – podem também estabelecer parcerias estratégicas com emergentes, dadas as possibilidades de configurações da nova geopolítica global.

Na cacofonia global onde nos encontramos, cabe às sociedades pautar seus governos sobre os caminhos a seguir. A ação coletiva é sempre difícil, particularmente em países onde a prática democrática é recente ou fragilmente consolidada. Talvez as mudanças em curso obriguem as democracias jovens a darem um salto de qualidade. Não se trata mais apenas de “chegar junto” (“catching up”) às revoluções em curso, mas de pensar formas de se “passar à frente” (“leapfrog”) na forma de lidar com elas.