Confira trechos da entrevista concedida pela Acadêmica Mayana Zatz ao jornal O Globo. A bióloga estuda o genoma humano e recentemente publicou o livro “O legado dos genes” (Editora Objetiva) em parceria com Martha San Juan França.
Por que envelhecemos?
O envelhecimento é resultado de uma série de fatores e começa nas células. À medida que elas se dividem, o material genético, o DNA, pode sofrer quebras. O jovem tem bons mecanismos de reparo. O idoso, não. Um dos genes encontrados em centenários está ligado justamente ao reparo do DNA.
O que acontece quando o DNA não é reparado?
Quanto mais as células se dividem, mais acumulam mutações. Algumas são inofensivas. Outras não. É o caso das associadas ao câncer. Não à toa o câncer é mais frequente na velhice. Há também mutações nas mitocôndrias (as usinas de energia das células). O envelhecimento é o resultado do acúmulo de uma série de processos que levam à perda de eficiência do organismo.
Quantos genes já foram associados ao envelhecimento?
Pelo menos uma dúzia. O envelhecimento está relacionado à combinação de uma série deles e também a fatores ambientais e sociais, como alimentação, atividade física, estresse, acesso a serviços de saúde, saneamento. As pessoas têm diferentes combinações de genes e fatores ambientais.
E o que a ciência busca nos genes?
Procuramos em centenários variações genéticas que proporcionem uma longevidade maior. Isso nos ajuda a compreender melhor o processo de envelhecimento e também a buscar a desenvolver formas que possam aumentar a nossa healthspan (termo usado para se referir ao tempo que uma pessoa vive com qualidade, sem doenças comumente associadas ao envelhecimento).
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Qual a importância da atividade física?
Ninguém questiona mais que a atividade física é essencial para envelhecer com qualidade. A healthspan depende da prática de atividade física.
Por que a atividade é tão importante?
Porque está ligada a vários mecanismos cruciais do funcionamento do corpo e da mente. A atividade física ajuda a preservar força, equilíbrio e capacidade cardiovascular, por exemplo. Há alguns anos se descobriu em centenários italianos uma variante genética ligada a uma microcirculação sanguínea maior que a média. A maioria das pessoas não tem essa variante, mas a atividade física compensa o papel dos genes. E isso vale para uma série de outros genes. Você pode não ter os genes de centenários, mas pode compensar a falta deles com atividade física.
E qual o papel da alimentação?
É fundamental. Genes incríveis sozinhos não lhe farão viver mais, se comer mal. Precisamos ter políticas públicas para possibilitar o acesso a alimentos não industrializados e de qualidade. Não é socialmente justo que alimentos saudáveis custem mais caro. Deveria haver uma campanha para popularizar o consumo de legumes e frutas. A microbiota (a comunidade de microrganismos benéficos que vive em nosso corpo) muda com a idade. A capacidade de digerir carne do idoso não é a mesma de um jovem.
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A senhora frisa a importância de estudar o genoma da população brasileira. O que já descobriu?
Os estudos internacionais de genomas se concentram em populações de origem europeia, que representam cerca de 80% das amostras globais. O Brasil tem uma miscigenação única e descobertas feitas em outros países podem não ter o mesmo significado aqui. Estudamos os genomas de 1.200 pessoas com mais de 60 anos, a maior amostragem da América Latina. Descobrimos o assombroso número de dois milhões de variantes genéticas inéditas. E nossa amostra tem pessoas originárias de todo o país, é bastante representativa.
Essas descobertas já levaram a alguma conclusão?
Ainda há muito o que estudar. Mas vimos, por exemplo, que uma mutação considerada altamente patogênica em populações de origem europeia aqui parece não ter esse papel. Me refiro à mutação ligada ao câncer de mama no gene BRCA1, a mesma que levou a atriz Angelina Jolie a extirpar as mamas para tentar evitar a doença. Encontramos essa mutação numa senhora brasileira de 93 anos e sem qualquer sinal de problema nas mamas. O que vale para certas populações pode não ter impacto em outras. Também já encontramos mutações ligadas a distrofias musculares em pessoas saudáveis no Brasil.
Como a pandemia afetou o seu trabalho?
Como tantos outros cientistas, redirecionamos nossas pesquisas para o combate à pandemia. E o trabalho com centenários que sobreviveram à Covid-19 tem muito a revelar. Essas pessoas são centenárias justamente porque resistem a insultos ao organismo, como a infecção por vírus. Elas são muito idosas, mas não são necessariamente vulneráveis ao coronavírus e estudá-las pode nos ensinar como tratar melhor a Covid-19.
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A senhora trabalha com nonagenários e centenários. Qual o segredo deles?
Não existe um segredo único. Mas eles compartilham o fato de saber ouvir o próprio corpo, perceber quando algo lhe faz bem ou o contrário. Permanecem ativos de corpo e mente. Colaboro com o cientista Silvano Raia, de 91 anos, num projeto de modificação genética de suínos para produzir órgãos para seres humanos. Conheço um doutor em veterinária que aos 105 anos passou a se interessar por edição gênica. Essas pessoas são muito boas em resistir aos desaforos ao corpo, isto é, às doenças, e aos da vida. Jamais se renderam ao mito preconceituoso de que estavam velhas e deveriam se acomodar.