O clima da Terra está mudando rapidamente – o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) prevê um aumento na temperatura entre 1,4 e 5,8 graus entre 1900 e 2100, um aquecimento bem mais veloz do que foi no século 20 – e essas transformações têm efeitos na agricultura, na geração de energia elétrica, nos mares e oceanos. No entanto, pouco se sabe sobre como as mudanças climáticas podem afetar a água doce do planeta. O tema foi discutido no Simpósio ”Recursos Hídricos na Região Sudeste: Segurança Hídrica, Riscos, Impactos e Soluções”, promovido pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e realizado no Instituto de Botânica de São Paulo, no fim de novembro.

A publicação ”Águas do Brasil: Análises Estratégicas”, produzida em 2010 pelo grupo de estudos da ABC sobre recursos hídricos, é um dos únicos documentos sobre os efeitos das mudanças climáticas nas águas continentais. Um de seus organizadores, o Acadêmico Carlos Bicudo, falou sobre os impactos da deterioração da qualidade da água na biodiversidade aquática. Ele relatou que o aquecimento global vem intensificando os efeitos do processo de eutrofização artificial, que consiste no enriquecimento da água por nitrogênio e fósforo, devido à ação antropogênica. ”Isso leva a uma grande simplificação estrutural da comunidade aquática, crescimento não controlado de macrófitas aquáticas e ‘floração’ de cianobactérias”, relatou o

Doutorado em botânica pela Universidade de São Paulo (USP), Bicudo explicou que o crescimento exacerbado das cianobactérias pode fazer com que se chegue à incidência de 20 mil células por mililitro. ”Acontece que há espécies tóxicas, que podem causar problemas no fígado, sinapses nervosas, trato digestórios e até mesmo levar à morte.” A maior parte dos ambientes aquáticos continentais é rasa (menos de cinco metros de profundidade), ou seja, extremamente vulnerável às mudanças climáticas. ”Neles, o processo de eutrofização pode ser catastrófico”, alertou.

O Acadêmico, que atua no Núcleo de Pesquisa em Ecologia do Instituto de Botânica de São Paulo, informou que o aumento da temperatura da água superficial leva a uma maior estabilidade da coluna d’água, à diminuição do teor de oxigênio no fundo e ao consequente aumento do processo de autofertilização de fósforo a partir de sua liberação do sedimento. Essas duas causas contribuem para a aceleração da eutrofização, aumentando o risco de dominância de cianobactérias e a redução da transparência da água, além de mudanças na cadeia trófica.

 

Um lago que virou ”sopa de ervilhas”

No Lago das Garças, um reservatório construído em 1986 onde Bicudo realiza quase 18 anos de amostragem mensal ininterrupta, as cianobactérias floresciam em determinadas estações. ”Agora, elas não desaparecem mais”, afirmou o pesquisador, comentando que a água do lago se tornou uma ”sopa de ervilhas” (veja a foto abaixo). Segundo Bicudo, em 1997, o reservatório contava com 36 espécies de cianobactérias, mas, entre dezembro de 2003 e outubro de 2008, houve uma queda brusca da riqueza e da diversidade, reduzindo o número de espécies a quatro.

”A eutrofização é uma das ameaças mais imediatas à biodiversidade, que pode levar à extinção de espécies, ”, concluiu. Entretanto, poucos pesquisadores mediram a magnitude dessa ameaça em escala global. Vinte e cinco hotspots em diferentes partes do mundo já sofreram considerável perda de hábitats, o equivalente a 44% das espécies de plantas e 35% das espécies de vertebrados em uma área equivalente a 1,4% da área do planeta. ”São perdas que excederam 2 mil espécies de vegetais superiores na Região Florística do Cabo, no Caribe, na região Indo-Kalimantanense, na Bacia do Mediterrâneo, no sudoeste da Austrália e nos Andes Tropicais”, relatou Bicudo.

A situação no Brasil é agravada pela falta de base científica consolidada para o país e para as partes mais quentes do planeta de modo geral, o que pode levar a estratégias mal sucedidas de gerenciamento dos ecossistemas aquáticos. Assim, é urgente a criação de programas maiores e multidisciplinares de pesquisa que busquem sínteses e inferências. ”As agências de fomento não entendem monitoramento como pesquisa, então não subvencionam”, lamentou Bicudo, ressaltando que o tema precisa ser veiculado na mídia e nas escolas.

”A sociedade cresceu dependente da água, mas não a respeita”

Para a diretora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBCCF-UFRJ), Sandra Azevedo, os impactos decorrentes desses processos na qualidade da água e, consequentemente, na saúde pública, denotam uma necessidade urgente de mudança de paradigmas sociais. ”Quando um alimento está contaminado, temos alternativas, podemos comer outras coisas. Mas não há um plano B que substitua a água”, apontou a bióloga.

”Consideramos o rio que passa em periferias um penico, algo feio, as casas são construídas de costas para ele”, provocou Sandra, afirmando que ”a sociedade cresceu dependente da água, mas não a respeita”. Ela disse, ainda, ser incabível falar sobre doenças de veiculação hídrica em pleno século 21. ”Doenças diarreicas agudas, como cólera e disenteria, parasitoses, como esquistossomose, doenças transmitidas por vetores aquáticos, como malária, parecem algo distante, porque costumam matar os pobres. Mas agora passamos a dar atenção porque esses males estão mais socializados. A dengue não fica só na periferia.”

Sandra informou que o percentual de óbitos por doenças diarreicas agudas em menores de cinco anos diminuiu muito entre 1990 e 2009, mas em eventos de seca a situação piora. ”Isso porque o indivíduo só pensa em qualidade depois que tem acesso à água – ou seja, primeiro vem a quantidade, depois a qualidade”, avaliou a pesquisadora.

A pesquisadora afirmou que, apesar de o conhecimento científico a respeito das doenças de veiculação hídrica estar completamente consolidado, há ações políticas muito mais sérias para, por exemplo, controlar metais pesados e pesticidas do que em relação ao saneamento. E enquanto o acesso da população à rede elétrica, de telefonia e à rede geral de água cresceu entre 1992 e 2009, o acesso à rede coletora de esgoto permaneceu quase estagnado.

 

Cianotoxinas: ameaça à saúde pública

Em relação às mudanças climáticas, Sandra informou que a microbiota aquática se adapta, pois microrganismos como cianobactérias estão muito mais adaptados a essas mudanças do que os demais organismos. Para nós, humanos, isso pode ser um problema. Uma seca no Reservatório de Tabocas, em Pernambuco, no final dos anos 90, fez com que, após uma estiagem prolonga, quando o reservatório secou se tivesse uma cultura de cianobactérias na água do manancial quando a chuva voltou a encher o reservatório.. ”E o que vocês acham que vai acontecer com a Cantareira?”, indagou a palestrante.

As cianobactérias se desenvolvem mais facilmente onde há estabilidade da água, que é o que acontece na seca. Ventos fracos, temperatura da água entre 15 e 30 graus, pH entre 6 e 9 e abundância de nutrientes também estimulam sua proliferação. Sua presença já foi constatada em ambientes como a Lagoa de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, no litoral carioca e no Reservatório do Funil, que é o represamento do Rio Paraíba do Sul antes da formação do Rio Guandú. Os tipos toxinas produzidas por cianobactérias são diversos: há as neurotoxinas, hepatotoxinas, citotoxinas e endotoxinas. No Brasil, há muita preocupação com as saxitoxinas, uma neurotoxina hidrossolúvel. Para ser letal, bastam oito microgramas por quilo de peso do indivíduo afetado.

O contato com essa água contaminada se dá de várias maneiras: consumo de alimentos, consumo com animais aquáticos contaminados, prática de esportes aquáticos e até mesmo inalação. ”Não é só a água de beber. A boa notícia é que o Brasil foi o primeiro país no mundo a obrigar o monitoramento de cianobactérias e cianotoxinas na água de consumo humano. ”Ainda assim, cuidar da qualidade da água é um desafio multidisciplinar e não só acadêmico, que não podemos mais adiar.”