A falta de planejamento e de uma gestão integrada e eficiente foram as principais razões que levaram à gravidade da crise hídrica pela qual a região Sudeste passa hoje. Os riscos eram conhecidos, mas não houve um preparo para lidar com eles, e o cenário decorrente disso pode ser mais devastador do que se imagina. Ainda há soluções possíveis, mas será preciso se estabelecer uma governança da água efetiva. O tema foi tratado em diversas análises durante sessão do Simpósio ”Recursos Hídricos na Região Sudeste: Segurança Hídrica, Riscos, Impactos e Soluções”, que aconteceu no Instituto de Botânica de São Paulo, no fim de novembro, promovido pela Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Segundo um dos participantes da sessão, o diretor da JNS – Engenharia, Consultoria e Gerenciamento Ltda. Nelson Luiz Rodrigues Nucci, não se tinha a percepção da expansão do centro urbano de São Paulo até a década de 60, e somente no final da década de 2000 se percebeu que o problema da água e do saneamento extravasava a região metropolitana. Do ponto de vista hídrico, ficou definida a macrometrópole paulista, com limites mais amplos, abrangendo o Sistema Cantareira e a extensão dos mananciais. ”Mas ainda existe um vácuo legal-institucional que dificulta gerir os recursos hídricos nessa área”, relatou Nucci.

Para o engenheiro, a crise deve ser entendida a partir de uma relação complexa entre disponibilidade, demanda e oferta, em que uma interfere na outra. A disponibilidade total é a água primária – aquela originada diretamente das fontes, ue é cada vez mais rara – somada à água secundária, que já sofreu ações antrópicas, agrícolas, domésticas etc. Ela depende da eficácia na preservação dos mananciais e do estágio tecnológico alcançado no processo de potabilização, inclusive por reuso. ”A disponibilidade per capita de água na macrometrópole é menor que no semiárido – quase a metade – e equivalente a um sexto do que se considera confortável pela Organização Mundial de Saúde”, afirmou Nucci.

 

Busca de soluções alternativas, como o reuso, é essencial

O especialista ressaltou que o padrão utilizado no Sistema Cantareira é assegurado com 5% de chance de falha, mas é possível que, hoje, esse risco seja bem maior, por conta das mudanças no ciclo hidrológico das bacias. ”Não temos nenhuma indicação efetiva de quanto podemos explorar o Cantareira.” Nucci completou que é preciso buscar alternativas de oferta não tradicionais, como reuso e a redução da demanda.

Um estudo recente sobre as possibilidades dos recursos hídricos na mcrometrópole paulista explorou 32 alternativas de captação de água e chegou a 11 arranjos, todos eles capazes de atender com 5% de falha as demandas no cenário tendencial. Ou seja, ainda existem soluções t radicionaispossíveis, mas não se sabe como esses parâmetros vão ser modificados pela crise atual.

”O fato é que a escassez trouxe a consciência de que é preciso atuar na redução das demandas e substituir parte da oferta tradicional pelo reuso”, apontou Nucci. ”A gestão tem que garantir a parte técnica, mas existe uma área que pouco evoluiu: a capacidade da sociedade de gerir os conflitos de uso e de competência e a capacidade de proteção dos mananciais. Essa gerência é muito ruim.” Ele lembrou, ainda, a necessidade de um processo de negociação e articulação intenso, diante dos conflitos de uso entre estados e municípios em relação a competências que são constitucionais.

O gráfico acima mostra a gravidade da crise hídrica no sistema Cantareira.
A incidência atual (em azul escuro) é mais baixa do que na menor média histórica (em laranja).
Fonte: JNS

 

O problema é qualidade, não quantidade

O diretor da Rhama Consultoria Ambiental e professor da Universidade Feevale, Carlos Tucci, lembrou que a crise atual é diferente das anteriores: ”Sempre tivemos o pensamento do ‘preciso de mais água, vou mais longe buscar’. Só que esse ‘longe’ não existe mais”. Para ele, um dos principais problemas é a falta de articulação entre os agentes ao lidar com o problema. ”Se há cinco médicos tratando de um paciente no CTI sem se comunicar, é provável que ele morra. E é isso que acontece no caso da água.”

Tucci afirmou que, apesar de sempre ter havido conhecimento do risco – no caso da Cantareira, de 5% de chances de falhar -, não houve planejamento para o caso dele ocorrer. Ele também ressaltou que o problema, na verdade, não se trata de quantidade, mas de qualidade. ”Temos, por exemplo, o rio Pinheiros, mas ele está contaminado.”

A falta de água é também falta de tratamento. ”Temos sérios problemas de saneamento que limitam a disponibilidade.” Ele deu exemplos de relação de custos na gestão das inundações na drenagem urbana: quando aplicado na prevenção e em medidas sustentáveis, o custo varia de 200 a 400 mil dólares por km2. Se for aplicado na correção com condução em estado avançado de urbanização, ou seja, se deixar para fazer a canalização no final do processo, o gasto será de 6 a 7 milhões de dólares.

 

Para professor, não há colapso

Tucci, no entanto, apresentou um ponto de vista diferente em relação à crise atual. Segundo o engenheiro, o clima nunca fui constante – nós é que queremos que ele seja. ”Falamos que no Sul, por exemplo, há 20 anos a temperatura está abaixo da média, mas 20 anos não é nada, considerando que o clima tem milhões de anos.”

Ele afirmou que, analisando-se a série hidrológica da Cantareira, o nível hídrico está abaixo da média desde os anos 90, o que é um sinalizador. ”Em outros lugares está acima da média. Existe o efeito de elasticidade. Hoje estamos preocupados com a seca, daqui a pouco vêm as inundações. Não significa que é um colapso. Pode até ser que dure alguns anos, mas depois volta ao modo anterior. O colapso é não estarmos preparados para isso.” Essa visão, todavia, não é unânime – o pesquisador do Instituto Internacional de Ecologia (IEE) e Acadêmico José Galizia Tundisi, por exemplo, alerta que a situação atual não está dentro da normalidade e que, por mais que essas fases ocorram na natureza, também há a interferência da ação humana e o uso dos recursos sem consciência.

Diante de um cenário que prevê um crescimento da população mundial de sete para dez bilhões de pessoas, das quais 70 % vivendo em áreas urbanas, é imprescindível lidar com o desenvolvimento urbano acelerado e desordenado, que envolve ocupação de áreas de risco e áreas irregulares. Tucci afirmou que a qualificação técnica deve ser a base das instituições e enfatizou que a gestão da crise hídrica pode ser uma oportunidade e não um problema. ”É necessário mudar a filosofia de governança. Precisamos de mais Estado e menos governo.”