De tanto se deparar com entraves burocráticos na pesquisa científica, o neurocientista Stevens Rehen resolveu acompanhar de perto o processo e, há dez anos, realiza enquetes com cientistas

À primeira vista, a pesquisa científica de ponta do Brasil parece estar ocupando espaços cada vez mais ambiciosos na corrida mundial, com número recorde de publicações de artigos e investimentos crescentes. A própria presidente Dilma Rousseff enfatizou, em seu discurso pós-reeleição, que o país está cada vez mais voltado para a ciência e a inovação. Mas quem está cotidianamente no front garante que a situação não é tão dourada, e o principal motivo da falta de competitividade científica são, sobretudo, as exigências burocráticas e os entraves jurídicos. Entre as dificuldades mais comuns está a importação de insumos e equipamentos, já que dependemos do mercado internacional. E um levantamento inédito revela que 46% dos cientistas já perderam material retido na alfândega; 95% já deixaram de fazer ou alteraram estudo por problemas na importação; e 51% já o modificaram ou cancelaram por não conseguir substâncias controladas.

O estudo foi conduzido pelo neurocientista da UFRJ e do Instituto DOr Stevens Rehen, que foi membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências (ABC) no período de 2008 a 2012, a partir de entrevistas com 165 cientistas de 35 centros de pesquisa em 13 estados. Sua principal motivação é cobrar melhorias, o que faz desde 2004. Mas, segundo ele, o cenário pouco mudou no período.

– O desenvolvimento da pesquisa continua emperrado pela burocracia – resume Rehen.

Quase todo pesquisador tem pelo menos uma história para contar sobre problemas relacionados a ela, e Rehen lembra que, há menos de um mês, um reagente importado foi confiscado no Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP), pelo serviço de vigilância agropecuária:

– O produto não era de origem animal ou de interesse veterinário, mas foi barrado pelo setor. Resultado: o reagente foi perdido, a pesquisa, atrasada, e o gasto, em vão.

 

Dinheiro a mais não se traduz em impacto

Esse foi um dos motivos que levaram o biólogo molecular Alysson Muotri a seguir carreira científica na Universidade da Califórnia em San Diego, nos EUA.

– As diferenças são consideráveis. Se não fosse pela burocracia, provavelmente eu estaria no Brasil afirma Muotri, ressaltando que o problema de modo algum se relaciona à competência dos cientistas nacionais:

– Eles (os brasileiros) têm o mesmo nível de capacitação e, no caso das ciências biológicas, um orçamento até maior do que o nosso (da Universidade da Califórnia). Mas acabam precisando de mais recursos para fazer a mesma coisa.

Um levantamento da empresa Thomson Reuters, detentora do maior banco de dados científico do mundo, mostrou que, em números de publicações, saltamos de 24ª para a 13ª posição no ranking mundial em 20 anos. E um estudo publicado em junho pela revista ”Nature” revela que o Brasil quintuplicou o número de publicações científicas e triplicou os recursos financeiros no setor em duas décadas. Ano passado, atingiu a marca de 46.306 artigos e de R$ 59,4 bilhões investidos (pelos setores público e privado), mais que o dobro do que foi gasto na Copa do Mundo (R$ 25,6 bilhões). Segundo a revista, entretanto, os números não se traduzem em competitividade, quesito em que, na América Latina, estamos atrás de Peru, Argentina, Chile e Colômbia.

O problema vai muito além da taxação ou da demora da importação. Estende-se a leis anacrônicas, que não acompanham o avanço dos estudos. E que se traduz, por exemplo, no veto legal ao uso de determinadas substâncias, como o canabidiol, derivado da maconha e proibido por aqui. Os pesquisadores Antonio Zuardi, da USP, e Fabrício Moreira, da UFMG, estudam as propriedades medicinais da erva e confirmam as dificuldades.

– Há dois anos, um laboratório inglês aprovou nossa pesquisa e nos forneceria o canabidiol sem custo algum, mas essa importação nunca foi realizada por questões legais – conta Moreira. O curioso é que o canabidiol nem é a substância responsável pelos efeitos da maconha. É segura e com potencial terapêutico.

Professora do Laboratório de Oncobiologia Molecular da UFRJ, Patricia Zancan desistiu antes mesmo de tentar importar amostras de plasmídeo (moléculas de DNA) da Universidade de Harvard (EUA). Isso por conta das inúmeras orientações que recebera, como ”autorização do Ministério da Agricultura, protocolo de inativação, destruição e disposição do material importado e seus resíduos”, entre outras obrigações.

– Como conseguiria registros e declarações de inspeção sanitária? Documentos veterinários? Obviamente esse tipo de burocracia nos obriga a fazer tudo na ilegalidade! – critica.

Franklin David Rumjanek, do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, diz que a ciência nacional vive num cenário cruel e critica os altos impostos e custos de importação. Ele cita que um produto que costuma importar custa 300 na Europa e chega aqui por R$ 3 mil.

– O cientista é penalizado – lamenta. É muito difícil o trabalho ser aceito numa revista científica relevante. Quando isso acontece, é comum os editores darem um prazo para a realização de mais testes. Comumente perdemos o prazo porque o material não chega. Às vezes, decidimos publicar numa revista de menor impacto e com menos exigências.

A geneticista Mayana Zatz colaborou na elaboração de um projeto de lei em tramitação para agilizar importações, já que vive diariamente o drama de ter acesso a produtos e equipamentos

A geneticista e Acadêmica Mayana Zatz também lamenta não poder competir com outros países, ressaltando que o problema não é de financiamento:

– Enquanto os EUA testam uma ideia no dia seguinte, levamos meses para isso. Como estamos num campo muito competitivo, se a ideia for boa, outra equipe internacional pode chegar na frente. Se não for boa, perdemos um tempo gigantesco.

Mayana se lembra de não ter conseguido importar camundongos especiais para um estudo recentemente. Isso porque, no meio do caminho, nasceram mais três animais, e a autorização não contemplava o novo número. De tantas situações que diz serem vergonhas internacionais, a geneticista hoje milita pelo projeto de lei 4.411/12, que visa a desburocratizar a importação de material científico, simplesmente criando um cadastro e uma cota para os pesquisadores. O projeto já foi aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família e, agora, aguarda parecer da Comissão de Ciência e Tecnologia. Depois disso, passará por mais duas comissões, o que não deve ocorrer até o fim do ano. A preocupação de Mayana é que acabe arquivado, já que o autor, o deputado federal Romário (PSB-RJ), começará seu mandato no Senado. Para ele, no entanto, não há esse risco.

– Iniciarei o mandato já buscando agilidade na tramitação no Senado. A luta continua – afirma Romário. – Assim que a pauta do plenário for liberada, pretendo pedir urgência no projeto, com o auxílio do líder do meu partido, o deputado Beto Albuquerque, para buscarmos apoio.

Segundo a relatora, deputada federal Mara Gabrilli (PSDB-SP), o projeto permitiria um avanço no estudo de doenças raras e degenerativas.

– Há pessoas morrendo de doenças neuromusculares e que precisam de rapidez nas pesquisas – afirmou a deputada. – Inclusive por isso o projeto é bem específico para a importação e direcionado apenas a laboratórios sem fins lucrativos. Não é que não existam outros problemas burocráticos, mas desta forma aceleramos o processo de aprovação.

Já existe, por sinal, outro projeto de lei (2.177) que tramita desde 2011 e que definiria o Código Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Esse sim, mais abrangente, vem tendo dificuldade de aprovação e, por isso, sofrendo constantes ajustes. Em linhas gerais, o texto prevê a isenção de impostos de importação para materiais; facilita o acesso à biodiversidade para pesquisa biológica; e flexibiliza a Lei de Licitações (8.666/93), entre outras mudanças. Se sancionado, o projeto de Romário provavelmente seria um capítulo desse código.

 

Normas de Pesquisa Clínica serão revistas

Outro setor que sofre as consequências da burocracia é a pesquisa clínica, ou seja, aquela realizada em seres humanos. Para chegar a esse estágio, o pesquisador precisa passar pelas fases de testes in vitro e em animais. E, para iniciar o estágio em humanos, é preciso ter autorização tanto da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) quanto da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), ligada ao Conselho Nacional de Saúde. Enquanto o primeiro avalia se as normas sanitárias estão sendo seguidas, o segundo foca a segurança do voluntário. Ambas as entidades estão analisando mudanças em suas normas, pois admitem a necessidade de eliminar entraves. Questionada sobre prazos, a Anvisa não estabeleceu previsão, mas garantiu que se trata de uma ”alteração radical” na RDC 39 que ampliará a celeridade e eficiência nas aprovações dos ensaios. Já a Conep não respondeu.

– Não precisamos reinventar a roda, apenas realinhar com o que é feito em qualquer país, pois vários têm processos mais ágeis – afirma Vitor Harada, presidente do comitê gestor da Aliança Pesquisa Clínica Brasil, organização criada para cobrar essa série de mudanças. – Somos o único país com dupla aprovação ética (pelo Conep e pelo Conselho Nacional de Saúde, que são, na prática, o mesmo órgão, mas às vezes dão pareceres diferentes).

Para se ter ideia, a Coreia do Sul leva, em média, um mês para autorizar o início de uma pesquisa clínica; os EUA levam até dois meses; a Europa, dois meses e meio. Enquanto isso, o Brasil leva um ano, mais até do que a China, onde se aguardam nove meses. Com isso, a Aliança informa que o Brasil perdeu 112 pesquisas que poderiam levar à produção de remédios.

Ana Marisa Chudzinski-Tavassi é coordenadora de uma pesquisa no Instituto Butantan, em São Paulo, e espera autorização para iniciar estudos com humanos num projeto que pode resultar numa terapia contra o câncer.

– Ao longo de uma década tivemos muitos entraves que precisaram ser contornados. Estou ansiosa para saber como será agora – afirma, explicando que uma das dificuldades são as parcerias público-privadas, uma necessidade nesta fase da pesquisa. – É um gargalo encrencadíssimo, pois eles (as empresas privadas) não têm as mesmas regras que nós.