Em artigo sobre sua experiência no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), publicado no Jornal da Ciência, o Acadêmico Cylon Gonçalves da Silva fala sobre a arquitetura de gestão idealizada para o sucesso do empreendimento.

Leia, abaixo, o artigo na íntegra:

”Já tive oportunidade de abordar no Jornal da Ciência, em dois artigos anteriores, alguns aspectos da história, dos projetos e das contribuições do LNLS e da Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTluS). Hoje, volto-me para uma questão complementar.

A ambição da equipe que construiu o LNLS era a de, para usar a mesma expressão coloquial daqueles tempos, ”introduzir um bicho novo na ecologia do sistema de C&T brasileiro: um grande Laboratório Nacional”. E o que significava isto para nós? O modelo que tínhamos a nossa frente, e que não queríamos reproduzir, era o modelo universitário e dos centros de pesquisa, ancorado nos laboratórios individuais e seus ”patrões” ou ”patroas”, donatários de equipamentos científicos adquiridos com recursos públicos e imediatamente privatizados. Era o modelo do pagamento de pedágio para uso de um equipamento científico por um pesquisador ou grupo de pesquisa, sob forma de inclusão entre os autores dos artigos dos ”donos” dos equipamentos, sem que estes houvessem dado qualquer contribuição intelectual significativa para a pesquisa.

Nosso objetivo não era concorrer com ou suplantar Departamentos universitários. Não é à toa que nos referíamos a uma ”ecologia”. Ecologia significa diversidade, cada espécie ocupando um nicho específico, mas também, construindo o seu nicho em uma interação dinâmica e permanente organismo/ambiente. Nós queríamos desenvolver e ocupar um nicho muito específico, o do nosso ideal de Laboratório Nacional. Este ideal, passados trinta anos, ainda é válido? Ou as mudanças pelas quais passou o País o tornaram tão deslocado como uma máquina de escrever no escritório moderno?

Antes de mais nada, explicitemos um dos elementos centrais deste ideal. (Enquanto escrevo, dou-me conta de que até a palavra ”ideal” soa um pouco anacrônica atualmente, mas vou fingir que não percebi isto.) Para tanto, comecemos por uma dificuldade evidente no caso de um Laboratório Nacional: a baixa taxa de renovação de seus quadros. Ao contrário da Universidade, um Laboratório Nacional, não recebe a cada ano um contingente de neurônios novos. Portanto, o risco de envelhecimento intelectual é grande. Sabemos que pesquisadores possuem um período muito fértil de criatividade cedo na vida. São os jovens que fazem a Ciência avançar. Então, concebemos o LNLS como ”uma sala de espera de primeira classe”. Esta expressão data do início do século passado quando a Escola Politécnica Federal de Zurique era o ponto de passagem para uma cátedra em Universidades mais prestigiosas: Schrödinger (Berlim), Weyl (Göttingen), Debye (Leipzig).

Em nosso modelo ideal, não haveria linhas de pesquisa definidas ex-ante – exceto as técnicas associadas às linhas de luz -, mas ”linhas de pesquisadores”. Traríamos os melhores para passarem os mais produtivos anos de suas vidas científicas no LNLS, com condições excepcionais de trabalho, para, depois de alguns anos, migrarem para a Universidade, mantendo-se como usuários do Laboratório. Assim, a cada cinco ou dez anos, as linhas de pesquisa se renovariam, os neurônios rejuvenesceriam, e o Laboratório não decairia cientificamente. A ideia de definir previamente ”linhas de pesquisa” e depois procurar pessoas nos parecia incompatível com este ideal. Nós tínhamos primeiro que identificar os melhores pesquisadores – a ”linha de pesquisa” viria com eles.

Em segundo lugar, não permitiríamos nem a formação de feudos nem a cobrança de pedágio, um risco extremamente elevado quando o líder da linha de luz ou do laboratório de microscopia eletrônica era a pessoa que provavelmente mais entendia daqueles equipamentos. Os pesquisadores tinham a sua pesquisa própria e a obrigação de auxiliar o usuário externo a fazer a pesquisa dele ou dela. Apenas em circunstâncias excepcionais, onde existia uma verdadeira parceria intelectual, o pesquisador do LNLS poderia colocar seu nome no artigo com algum usuário externo. Criamos a figura do Ombudsman, independente da Direção Geral, para que os usuários pudessem ter um canal confiável e anônimo de fazer chegar suas reclamações à Administração sem correr o risco de ”vendetas” pessoais. Ideais são ótimos, mas a prática requer vigilância constante e fiscalização atuante.

Quando nos transformamos em Organização Social, estava claro para mim que, para além dos sempre necessários controles oficiais, se alguns princípios elementares de respeito à coisa pública não fizessem parte do universo mental e moral de seus gestores, o sistema ficaria vulnerável a ”desvios de comportamento”. Para ingressar na ABTLuS, ou em outra OS’s qualquer, o pesquisador não precisava fazer concurso público. Bastava um processo simplificado de seleção. Esta modalidade de contratação foi concebida precisamente para dar às OS’s a rapidez de resposta que uma grande instituição de pesquisa precisa, naquilo que é seu patrimônio mais importante: as pessoas. Se a instituição quer um pesquisador de ponta, com um currículo invejável, ela pode negociar com ele diretamente as condições de sua contratação. Se surge uma nova área de pesquisa ou uma oportunidade de criar uma inovação, a instituição pode, rapidamente, identificar pesquisadores com o perfil desejado e montar uma equipe para atacar o problema.

Os perigos da distorção deste modelo, especialmente no país do ”jeitinho”, sempre estiveram muito presentes para mim. Na época em que dirigia o LNLS e, depois, a ABTLuS, instituí algumas regras para garantir a integridade do processo de seleção de pessoal. Por exemplo, condição sine qua non para ingresso na carreira de pesquisador era um pós-doutorado no Exterior. Outra regra: todas as contratações passavam pela mesa do Diretor-Geral da ABTLuS, que fazia o crivo final. Dependendo do caso, poderia até ir ao Conselho de Administração. Nenhum pesquisador podia contratar pessoas que com ele(a) compartilhassem genes biológicos ou intelectuais. A intenção era prevenir o nepotismo e sua nefasta irmã siamesa: a endogenia acadêmica. À facilidade do processo de seleção, teríamos de contrapor o rigor na seleção. Nenhum Diretor ou chefe de departamento teria um grupo de pesquisa próprio dentro do LNLS ou da ABTLuS. A razão era clara: a tentação do indivíduo de se promover às custas da coletividade, com as facilidades acordadas pelo modelo, mais cedo ou mais tarde, seria irresistível e nociva ao ideal que buscávamos.

Em um próximo artigo, quero abordar um outro elemento importante de nosso ideal: a excelência em pesquisa por meio de instrumentação científica de ponta.”

Cylon Gonçalves da Silva é ex-diretor do LNLS e ex-diretor geral da ABTLuS. Possui graduação em física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutorado em física pela Universidade da Califórnia. É professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador emérito do CNPq e membro titular da Academia Brasileira de Ciências.