Quando foi informado sobre a sua nomeação para Membro Afiliado da Academia Brasileira de Ciências, a primeira reação de Mirco Solé foi: “Alguém errou, conheço muitos jovens cientistas que eu considero muito melhores, muito mais brilhantes do que eu”. Porém, teve que se familiarizar com a ideia de que outros cientistas mais experientes da ABC acreditaram na sua pesquisa e apostaram nele.

Solé avalia que o universo acadêmico brasileiro está em ebulição e que a pesquisa já cresceu muito em quantidade e, mais lentamente, está crescendo também em qualidade. “Eu sou professor na cidade de Ilhéus e, como Membro Afiliado, quero explicar as pessoas do sul da Bahia o que eu entendo por ciência. Quero que eles entendam que seus filhos podem se tornar os cientistas de amanhã e que hoje em dia, num mundo permeado pelas tecnologias digitais, é possível fazer ciência em qualquer lugar da Bahia e do Brasil, desde o Planalto de Conquista as aldeias de pescadores de Caravelas.”

Essa é a postura do espanhol Mirco Solé, nascido em Barcelona, onde viveu até os 18 anos. Filho de uma professora de educação física e um representante comercial, ele tinha dois irmãos mais novos e sua infância foi muito ligada à natureza. Foi iniciado na pescaria por um tio que morava numa cidade próxima e se apaixonou pela pesca de trutas nos riachos dos Pirineus catalães. No verão e nos finais de semana, sempre iam para Calafell, um vilarejo da Catalunha onde mergulhavam e pescavam. A mãe os levava para passeios diários até uma fazenda que tinha patos e gansos ou até um vinhedo na frente de casa, onde Mirco recolhia insetos, lagartos, sapos e cobras. “Alguns destes animais eu levava para casa, para observar seu comportamento. Isso funcionou até que a empregada jurou que não ia mais limpar meu quarto se continuasse encontrando lagartixas e escorpiões em frascos embaixo da cama. Minha mãe então fez comigo uma lista dos animais que não poderiam mais ser mantidos ali”.

Segundo seus pais, Mirco já era cientista desde os três anos. Partia com sua lupa para o campo, onde virava pedras e observava os animais. “Há uns anos atrás a minha mãe me mostrou um dever de casa que fiz quando tinha uns seis anos. Tínhamos que responder o que queríamos ser quando crescêssemos, e ilustrar. Eu tinha colado em um lado uma foto do Jacques Cousteau pesquisando focas no mar e, no outro lado, tinha desenhado um pesquisador com uma lente de aumento, embaixo da qual estava uma formiga – um organismo com três partes do corpo e com três pares de pernas inseridas no segmento do meio.”

Aprendeu a ler em espanhol, alemão e inglês – amava os clássicos e preferia ler no original. No colégio, preferia a biologia, seguida por línguas e literatura. Entrou para o curso de biologia, como já era esperado, na Universidade de Tübingen, na Alemanha – o que, segundo ele, foi fantástico. Solé conta que durante o ensino médio, na Espanha, tinha sido confrontado em algumas disciplinas com um sistema baseado em decorar e depois simplesmente repetir o “aprendido”. “Percebi rapidamente que os alemães valorizavam os alunos que conseguiam entender o assunto. Lembro que durante uma prova oral de Zoologia o professor me mostrou o esqueleto de um pomba e me perguntou: Qual é este osso aqui?. Fui pego de surpresa e respondi: Olhe, não lembro do nome desse osso, mas posso explicar exatamente de onde ele veio evolutivamente e o que ele se tornou em outros grupos de pássaros. E ganhei a nota máxima.”

Um aspecto menos positivo, para Solé, foi o fato de na Alemanha não existir iniciação científica, nem bolsas para essa finalidade. “Durante as disciplinas práticas éramos incentivados a desenvolver pequenos projetos, mas nada que se compare com a iniciação científica que é praticada nas universidades brasileiras”. Sua principal influência nessa época foi o professor Wolf Engels, Membro Correspondente da ABC, que já mantinha colaborações e convênios com a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), além de outras universidades brasileiras. Seus primeiros passos com pesquisa científica, então, se deram durante o trabalho de conclusão de curso, já desenvolvido no Brasil, mais especificamente na Serra Gaúcha, no Rio Grande do Sul. “Finalmente consegui aplicar todas as ferramentas que tinha aprendido na teoria durante a graduação, e mais ainda, em um país com a impressionante biodiversidade do Brasil.”

Em seguida à graduação, o professor Engels convidou Solé para participar de um projeto de cooperação internacional que ele tinha com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior do Ministério da Educação do Brasil (Capes-MEC) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs). Fez o mestrado neste projeto, tendo como orientador o falecido professor Marcos di Bernardo. “Tive a sorte de contar com a ajuda do professor Axel Kwet, que na época estava fazendo o doutorado no Centro de Pesquisas Pró-Mata da PUC-RS. Desde o primeiro dia a comunidade herpetológica brasileira me recebeu de braços abertos”. Solé fez muitas amizades no Rio Grande do Sul e decidiu, então, dar continuidade às suas pesquisas sobre anfíbios no doutorado, ainda na Alemanha.

Hoje, Mirco Solé é professor adjunto no Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), que fica em Ilhéus, na Bahia. É bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq e atua também nos Programas de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Biodiversidade e Zoologia da mesma universidade, assim como é colaborador do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Solé explica que os anfíbios são o grupo de vertebrados que mais sofre com os efeitos das mudanças climáticas. E sendo o Brasil o país com a maior diversidade de anfíbios do mundo (875 espécies formalmente descritas e ainda muitas por descrever), ele acredita que não exista lugar melhor no mundo para pesquisar este grupo de animais. “Para traçar planos de conservação efetivos para os anfíbios precisamos conhecer a história natural de cada espécie, saber de que se alimenta, quais substratos ela utiliza e como ela se reproduz”. Ele observa que para uma espécie que se reproduz em poças, de nada serve evitar o desmatamento de uma área se ao mesmo tempo o dono está aterrando a única poça existente. E que para uma espécie que se reproduz em bromélias, de nada serve proteger as poças se os visitantes levam todas as bromélias embora como lembranças do passeio. “Se juntarmos as informações de cada espécie, podemos estimar como deveria ser uma área para oferecer proteção ao maior número de espécies de anfíbios”, esclarece o Acadêmico.

Além destas pesquisas básicas, Solé ressalta que é preciso entender as limitações destes animais como, por exemplo, as limitações fisiológicas. “Precisamos descobrir qual é a temperatura máxima e mínima que os girinos conseguem suportar e qual é a temperatura ideal para eles completarem o seu desenvolvimento para que, após a metamorfose, se tornem sapos, rãs ou pererecas”. Com esses dados, o pesquisador explica que é possível modelar a distribuição de cada espécie e estimar se ela conseguirá resistir nas áreas que habita atualmente ou, se com o aumento da temperatura resultante das mudanças climáticas, essas espécies correm o risco de se extinguir local ou globalmente. E o desequilíbrio, segundo o pesquisador, não pára por aí: os anfíbios, como qualquer outro grupo de animais, fazem parte de teias tróficas, então se seu número diminui, animais que se alimentam deles – como cobras, garças ou cegonhas -, po
dem ter as suas populações diminuídas também. Ao mesmo tempo, alguns grupos de insetos, como formigas e besouros, podem ter seus efetivos aumentados, se tornando inclusive pragas.

Mirco Solé diz que aqui no Brasil, na sua área, quase tudo que observa e descobre é novo. “É fantástico poder ir a campo com os alunos e saber que, a qualquer momento, podemos descobrir uma espécie desconhecida até esse dia. E cada resposta que conseguimos dar nos faz formular dez novas perguntas”. Para ele, fazer ciência em um país que ainda tem a chance de preservar a maior parcela da sua biodiversidade é muito gratificante, “ainda que sofrendo reveses como o novo código florestal e o rápido avanço da fronteira agrícola.”

Ele concorda que um cientista precisa ser curioso, precisa questionar tudo e a toda hora. Porém, ser curioso não é o suficiente para se tornar um cientista, na opinião de Solé: além de perseverantes, hoje em dia os cientistas precisam ser cada vez mais disciplinados. “Na era digital tudo se tornou mais rápido, são inúmeros e-mails que precisam ser respondidos a cada dia. Cientistas hoje em dia fazem parte de enormes redes, nas quais cada participante tem uma tarefa pré-definida para poder responder uma pergunta que foi formulada em nível global.”

Além do trabalho em colaboração internacional, o cientista de hoje precisa achar o equilíbrio entre atividades acadêmicas e burocráticas. “Isso, às vezes, é muito difícil. Acabamos gastando grande parcela do nosso tempo fazendo cotações de preços de material de pesquisa, escrevendo pareceres e participando de longas reuniões, durante as quais pouca coisa é resolvida. É cada dia mais difícil achar um equilíbrio entre todas estas atividades”, alerta Solé.

Pesando os prós e o contras, Mirco Solé certamente tende a destacar os “prós”, pois é apaixonado pelo que faz. Ele recomendaria aos jovens que estão no processo de escolha da profissão que estudem aquilo de que gostem, pois em sua avaliação cada vez mais, para se destacar em qualquer profissão, é preciso ser muito bom no que se faz. “Aproveitem as chances que o Brasil está dando aos estudantes e jovens cientistas. Nunca foi tão fácil conseguir passar um ano estudando em uma universidade de excelência no exterior”. Ele recomenda que o estudante aproveite esse tempo no exterior para se inserir em um grupo de pesquisa consolidado, pois após o seu retorno terá que construir o seu próprio grupo. “E nunca esqueça de nutrir a criança curiosa que há em você, pois muitas grandes descobertas aconteceram em decorrência de ideias malucas ou palpites que, aliados a metodologia científica, ajudaram a fazer a ciência avançar.”