Emocionante e amplamente ovacionada por um auditório cheio, prestigiado por representantes quilombolas e indígenas, entre outros grupos. A mesa “Saberes tradicionais e pesquisa científica – desenvolvimento de produtos e processos para enfrentar a pobreza” foi, nas palavras dos próprios participantes, uma homenagem a um Brasil extremamente diverso.

A sessão realizada no dia 27/7, durante a 64ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), foi coordenada pela bióloga Rute Maria Gonçalves Andrade, secretária-geral da SBPC e pesquisadora do Instituto Butantan. Como conferencistas, participaram a Acadêmica e química Vanderlan da Silva Bolzani, Alfredo Wagner Berno de Almeida, antropólogo e professor da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), e Lucia Fernanda Inácio Belfort, do Instituto Indígena para Propriedade Intelectual (Inbrapi).

Alfredo Almeida, Lúcia Fernanda, Vanderlan Bolzani e Rute Maria
A beleza embutida nas plantas

Em sua linha de pesquisa, Bolzani trabalha com a química de produtos naturais, buscando substâncias bioativas. Na natureza, segundo ela, o conhecimento tradicional também atua como uma valiosa fonte de investigação científica e tecnológica. “O saber sobre plantas nativas, em todas as culturas, nos mostra que elas podem ser benéficas ou maléficas. Algumas podem matar instantaneamente, enquanto outras curam. Essa riqueza acaba por atribuir um alto valor agregado à espécie”, observou.

Mas qual a importância desse tema dentro do contexto de Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I), indagou a pesquisadora. Em suas palavras, grande parte das plantas estudadas pertencem a ambientes temperados. “Temos ecossistemas que ainda precisam ser investigados, mas, em nosso país, existem uma diversidade e base científica fortes na tradição desse saber”.

Bolzani deu como exemplo, primeiramente, a morfina, cujo uso consta em relatos históricos de, pelo menos, 4.000 anos atrás. “Até hoje, existem muitas pesquisas científicas em torno dessa espécie e das substâncias que derivam dela e de sua matéria-prima, o ópio. Só nos Estados Unidos, o uso medicinal dessa substância equivale a 80 mil quilos/ano”, relatou a Acadêmica.

Outra espécie que povoa toda a costa americana, desde o Canadá até a região mais ao sul dos EUA, é o taxol. A pesquisadora diz que todas essas plantas são aprimoradas por anos de pesquisa para que os efeitos colaterais sejam reduzidos cada vez mais. “Investimento em pesquisa acaba atribuindo valor à planta, já que laboratórios farmacêuticos veem ali oportunidade, ou seja, novos remédios”, pontuou.

Contudo, antes de virarem mercadorias, essas plantas são raízes dos saberes tradicionais. Os países que dominam esse nicho da economia mundial são a China, entre outras nações asiáticas, alguns da Europa e Estados Unidos. O Brasil, de acordo com Bolzani, é um mercado em potencial na exploração de plantas medicinais, por ser rico em biodiversidade, mas incipiente quando comparado ao mercado internacional.

O açaí, um suplemento alimentar muito utilizado no país, conhecido no estado do Maranhão como juçara, é um exemplo que ultrapassou as fronteiras brasileiras. A Acadêmica explicou que, na indústria, o fruto tem valor agregado baixo, mas sua fibra é altamente cotada, por ser utilizada, assim como outras fibras naturais, no setor de polímeros, para fabricação de papel, entre outros. “Em 2007, recuperamos a patente da fruta, que antes pertencia ao Japão”.

Normatização dos saberes tradicionais

Como a universidade deve incorporar o conhecimento tradicional e como estabelecer normas para o uso devido e indevido do conhecimento autóctone? Alfredo Almeida deu início à sua exposição com essas duas perguntas, lembrando à plateia que os saberes tradicionais equivalem aos científicos. “O tema dessa sessão se tornou uma preocupação acadêmica, não é mais uma exclusividade de movimentos sociais”, complementou.

Segundo ele, o mundo vivencia uma mobilização significativa em torno desses saberes, especialmente no tocante ao reconhecimento internacional da igualdade jurídica de diferentes culturas e povos indígenas, “o que permite às entidades tradicionais um papel de maior relevância junto às universidades”.

“A emergência das biotecnologias modernas, da mercantilização da biodiversidade e do patrimônio genético mudou o jogo”, constatou. Hoje em dia, existe um valor econômico relacionado ao uso, que antes não era considerado. “Agora, é preciso normatizar essas questões, a fim de preservar e respeitar o direito desses grupos”.

O antropólogo atentou para a necessidade da modernização da legislação nacional, de maneira a contemplar e proteger essa herança para que seja incorporada às indústrias farmacêuticas, de cosméticos e comércio em geral de forma justa e igualitária. “Além disso, os grupos que detêm esse saber precisam ser consultados, já que eles têm o direito de serem contrários e não concordarem com o uso de uma planta ou qualquer outra manifestação própria conforme uma entidade deseja”, disse. “Isso está assegurado na Convenção 169 sobre povos indígenas e tribais da Organização Internacional do Trabalho”.


O quilombola Ivo Fonseca em intervenção no debate

No Maranhão, por exemplo, o óleo vegetal do babaçu é amplamente utilizado, principalmente por empresas de cosméticos. O problema, segundo o pesquisador, encontra-se no destino dado ao lucro conseguido pelas empresas. “Quanto a instituição pagará à comunidade que, inicialmente, investiu em conhecimento e em tecnologias para utilizar e melhorar aquela planta?”, explicitou.

Almeida também problematizou a inserção desses grupos na Academia, apoiando um convite aberto por parte das universidades para que representantes de grupos quilombolas, indígenas, seringueiros, quebradeiras, entre outros, ministrem aulas. “Tenho certeza que a aproximação seria surpreendente, porque a organização social desses povos não é de conhecimento da sociedade, mas é de interesse público, principalmente nos quesitos conservação e intercâmbio de valores”, defendeu. “Essa atitude também encorajaria os herdeiros dos detentores e produtores desse conhecimento a serem cientistas”.

“Nada vai avançar sem diálogo”

Bem-humorada e intercalando o português com algumas palavras da língua de seu povo, o Kaingáng, a diretora-executiva do Inbrapi e advogada Lúcia Fernanda é membro de um grupo indígena natural do Sul e Sudeste do Brasil, ocupante de pequenas terras e amplamente afetado pelo processo de colonização.

Artesanato Kaingáng

“Existem pelo menos 180 línguas faladas no Brasil que correm risco de extinção e nem sequer são estudadas”, afirmou. Segunda ela, fal
ta repartir o benefício com aqueles que geraram e compartilharam o conhecimento, mas que hoje se encontram na linha de pobreza e são postos à margem. “Toda pesquisa gera aspectos positivos para a sociedade, e muitas delas são baseadas em nosso patrimônio”.

Lúcia também ressaltou que são os povos tradicionais que, a partir de sua ciência, preservam as áreas de conservação ambiental. “Somos detentores de ¼ do território brasileiro e temos o direito do usufruto. Grande parte da floresta que ainda está de pé pertence a perímetros indígenas, o que indica que somos os responsáveis históricos por esse feito”, constatou.

Em relação à Rio+20, a advogada comentou o fracasso da mesa “Florestas”, que não tinha sequer um representante indígena. “Não sei como a conferência quis decidir o futuro do planeta sem participação e consulta aos gestores das florestas”. De acordo com ela, o texto final do evento, “O futuro que queremos”, teve pontos positivos: reconheceu – termo que indica, juridicamente, cumprimento – a declaração da Organização das Nações Unidas sobre a preservação dos povos indígenas; o acesso igualitário à educação; a proteção de florestas e metas de reconhecimento e proteção ao conhecimento tradicional. “No entanto, no parágrafo sobre florestas fomos ignorados”, apontou.

Por fim, Fernanda ressaltou uma conquista pessoal, que foi sua chegada ao mestrado, quando passou em primeiro lugar na Universidade de Brasília. “Perguntaram-me como consegui alcançar esse patamar: foi porque tive acesso à educação de qualidade”, relatou. “Os detentores dos saberes tradicionais têm o direito de chegar ao nível de mestrado e doutorado, além de serem professores, o que é extremamente necessário”.